Mostrar mensagens com a etiqueta cyberpunk. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta cyberpunk. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Robot Artists and Black Swans


Bruce Sterling (2021). Robot Artists and Black Swans : The Italian Fantascienza Stories. São Francisco: Tachyon Press.

Conheço mal a ficção científica italiana, e desconhecia de todo este Bruno Argento, discreto escritor turinense de curiosas fantasias científicas. Escreve como uma voz obscura de habitante de uma cidade italiana, não daquelas em que pensamos quando se fala de Itália, mas das que nos parecem de segunda linha, importantes à sua maneira, mas não tão sonantes como Roma, Milão ou Florença. Não que Turim, marcada pela indústria automóvel pela Fiat, seja uma cidade de província, mas de facto não é das terras que mais facilmente saltam à mente. 

Argento coloca um sabor de urbanidade provinciana nas suas histórias, falando do que é local com um inusitado olhar global. Quase como se este escritor fosse o alter ego de um escritor cyberpunk texano que se tivesse radicado em Itália, e explorasse o seu fascínio pelo país de acolhimento através da lente de uma ficção científica Cyberpunk diluída e globalista. 

Talvez seja esta visão dupla, a de um italiano que olha para a sua cidade imaginando-a vista pelo olhar de um texano envelhecido, que explique a assimetria destes contos. Temos saltos entre realidades paralelas, onde a cidade de Turim é um nexo entre múltiplos universos. Temos um recontar de experiências republicanas na Fiúme do pós- I guerra, vistas sob um lado de anarquia libertária. Um estranho conto non sequitur onde duas figuras históricas turinesas do renascimento se cruzam com uma inúmera galeria de personagens, de jograis a princesas sem trono. Ou a descida aos infernos do executivo da indústria automóvel italiana, que invocou o espírito de uma múmia para progredir na carreira, e terá de enfrentar Lúcifer, encarnado como um jovem engenheiro apostado em tornar os automóveis ecológicos. O inferno é uma cidade italiana cheia de trânsito, onde alfaiates de luxo são castigados passando a eternidade a servir num pronto a vestir. Isto sim, é um verdadeiro lugar de choro e ranger de dentes. Ou, também, o futurismo pós-apocalíptico de utopia ecológica, onde um robot que produz  arte percorre um mundo regressado ao estado selvagem, embora a civilização se mantenha nas cidades, tornadas utopias de ciência e elegância. 

Histórias curiosas, que cruza estéticas pós-cyberpunk e cli-fi com o substrato estético, histórico e cultural do norte de Itália. Argento não nos lega grandes histórias, mas leituras agradáveis que transmutam o fascínio por um local específico, pelo ambiente de Turim. Quase como se Argento fosse o alter-ego do texano Bruce Sterling, um dos pais do Cyberpunk e hoje guru da confluência entre arte, tecnologia e sociedade, que adotou Turim (e o seu fablab) como cidade para se radicar. Mas isso, já me soa demasiado fantástico, mesmo para um romance de fantascienza.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Flush

Francesco Verso (2014). Flush. Future Fiction.

Conto cyberpunk, que pega na iconografia do género - tecnologia, submundos urbanos e substâncias ilegais, e nos conta uma história sobre drogas. Uma altamente aditiva, que um homem decide experimentar. Fica surpreendido quando em vez de comprimidos ou seringas, lhe é vendida num par de auscultadores. E quando a experimenta, percebe. No ruído incessante da sociedade urbana, a alienação pelo silêncio é uma droga poderosa.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Waste Tide


Chen Qiufan (2019). Waste Tide. Nova Iorque: TOR.

Um misto curioso de cli-fi com cyberpunk, vindo da pujante FC chinesa. Os habitantes de uma ilha periférica, cuja economia depende da reciclagem de desperdício tecnológico, estão numa encruzilhada. O misto de interesses políticos e senhores quasi-feudais locais que os dominam está a ser abalado pela proposta de um forte investimento de uma empresa americana, que pretende transformar a perigosa reciclagem artesanal numa indústria segura e modernizada. No entanto, os interesses da empresa não são benignos. No meio disto, um jovem tradutor sino-americano, originário da ilha, apaixona-se por uma rapariga da classe mais baixa dos seus habitantes. Esta, ao ser oferecida em sacrifício num ritual supersticioso para salvar o filho de um dos senhores locais, acaba por despoletar estranhos acontecimentos. A sua consciência parece mesclar-se com os sistemas digitais de um robot, e com isso gerar uma inteligência artificial consciente. Tudo está relacionado com a empresa americana, fachada de um grupo que, nas sombras, procura usar a discrição de uma zona de fronteira para investigar os efeitos a longo prazo de tecnologias de controlo mental, originalmente criada por uma cientista exilada, também originária da ilha. Tecnologias essas que têm como efeito secundário o possibilitar o mesclar da consciência humana com sistemas computacionais.

Há muita coisa em jogo neste nem sempre interessante romance. Qiufan invoca conceitos interessantes, mas nem sempre os consegue levar dentro de uma história cuja estrutura nem sempre aguenta com a sua complexidade. O toque cli-fi, com a linha narrativa dos habitantes condenados ao trabalho sujo da reciclagem de desperdício eletrónico, nem sempre se conjuga com o lado cyberpunk do enredo sobre mesclas de consciência humana e digital. Toda a história sobre intrigas políticas e económicas ocupa mais espaço do que devia, e a parte sobre tecnologias secretas, que cola todo o romance, acaba por ser deixada muito no ar. Não sendo um livro excelente, é no entanto um sinal de maturidade da FC chinesa.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

The Edge of Human: Blade Runner 2


K.W Jeter (2000). The Edge of Human: Blade Runner 2. Nova Iorque: Spectra.

Jeter faz um bom trabalho de continuação dos temas e linhas narrativas de Blade Runner. Do filme, não do livro em que este se baseia. A narrativa segue o estilo cinema noir do filme, com uma história convoluta de conspirações. Deckard, exilado numa cabana na floresta onde tenta prolongar a vida da andróide Rachael, pela qual se apaixonou, é forçado a regressar a Los Angeles para dar caça a mais um replicante. É obrigado a isso pela sobrinha de Eldon Tyrell, a jovem que serviu de modelo aos andróides Rachael, e que nutre um ódio profundo ao tio e a tudo o que representa. Um ódio tão profundo que a leva a colocar em marcha uma tortuosa conspiração que levará à destruição das Tyrell Industries.

Pelo caminho cruzamo-nos com outros personagens do filme, como o inspetor Bryant, Holden, o caçador de replicantes cujo falhanço fez Deckard entrar em jogo e cujo corpo foi reconstruído, sendo talvez ele próprio um andróide, e o humano que serviu de modelo a Roy Batty, tão psicopata como o andróide do filme. Pelo meio de uma narrativa de ação constante, Jeter vai questionando as fronteiras fluídas entre o real e o simulacro, entre o artificial e o natural. O final é algo surpreendente, com Deckard a deixar-se enganar e a fugir para fora do planeta com quem pensa ser a sua adorada andróide Rachael, mas é na verdade a mulher humana que lhe serviu de modelo, herdeira renegada das indústrias Tyrell. Não é uma leitura profunda, nem o pretende ser. Jeter expande o filme seguindo as mesmas lógicas narrativas, sublinhando um pouco mais a fina diferença entre ser andróide e humano no mundo de Blade Runner.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Akira Vol. 1


Katsuhiro Otomo (2018). Akira Vol. 1. Lisboa: JBC Portugal.

Ofereci-me este livro como prenda de natal, mas resisti a lê-lo na consoada. Achei que deveria esperar por dia 1 de janeiro de 2019 para iniciar a leitura. Afinal, é nessa data que arranca a ação de Akira. É lamentável, bem sei, como fã de FC e cada vez mais apreciador de mangá, nem nunca ter ainda lido o livro o livro ou sequer visto o filme (a segunda explica-se com a minha pouca paciência para ver cinema em ecrãs que não o das salas de cinema). Esta edição portuguesa da JBC, se bem que um bocadinho puxada no preço, veio colmatar essa lacuna no meu espírito de fandom. Esperava iniciar a leitura no primeiro dia do ano, o que não esperava era ler tudo de uma assentada. A culpa é do ritmo alucinante da narrativa escrita e desenhada por Katsuhiro Otomo.

Akira faz jus à fama que tem. É cyberpunk clássico, com o inconfundível estilo futurista do mangá dos anos 80 e 90 a olhar para um hiperurbanizado futuro próximo. Agentes governamentais que ocultam experiências secretas, gangues de motoqueiros e rebeldes que procuram descobrir que segredos o governo oculta cruzam-se de forma explosiva nas ruas de Neo-Tokyo, a cidade que ressurgiu das cinzas da metrópole original, arrasada num conflito atómico mundial. No centro de tudo está o mistério do que poderá ser Akira, para já algo encerrado numa câmara estanque no terreno zero da explosão nuclear, mas que também terá a ver com mutações e drogas indutoras de poderes extraordinários nalguns seres. Este primeiro volume é explosivo, pura ação num brilhante registo gráfico. Agora resta-me aguardar pelos próximos lançamentos da JBC para continuar a história, prometo que me vou manter spoiler free e continuar a ignorar aquele ficheiro mkv intitulado Akira que está a apanhar pó no meu disco rígido.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Anjos



Carlos Silva (2017). Anjos. Vagos: Editorial Divergência.

Com este romance, Carlos Silva cimenta o seu estatuto como uma das mais dinâmicas e interessantes novas vozes do panorama literário nacional dedicado à FC. Já o sabíamos com o projeto Imaginauta e as suas iniciativas, especialmente no universo partilhado Comandante Serralves. Neste Anjos, a sua voz pessoal está mais evidente, num esforço concertado e bem sucedido de criar um mundo ficcional sólido que sustenta uma história que, se remete diretamente para o cyberpunk clássico, acabar por tocar no âmago de questões estruturantes da nossa sociedade digital contemporânea.

Apesar da sua premissa pós-apocalíptica, Anjos dá-nos um futuro luminoso, embora sob ameaça que das velhas instituições quer de novas forças capazes de cooptar o poder do mundo digital. Carlos Silva coloca-nos numa Lisboa futurista, reconstruída sob moldes hiper-modernos após um devastador terramoto. Uma cidade funcional e moderna, a remeter para as utopias arquitetónicas contemporâneas. Os anjos a que o título se refere são um grupo muito especial, de mensageiros bem treinados que protegem os espaços de informação. Claramente são inspirados no melhor que os conceitos wikileaks/anonymous têm para nos oferecer. Independentes, após o terramoto assumiram o controlo de YHVH (referência à mitologia cristã percebida), uma inteligência artificial capaz de, num mundo hiperdigital, controlar e manipular toda a informação. Uma ferramenta de hipervigilância temível nas mãos de entidades governamentais ou corporativas, mantida segura nas mãos dos Anjos.

Quando estes começam a ser assassinados por um cyborg biotecnológico, pensamos que são as velhas forças que buscam eliminar os anjos para voltar a dominar o poder social. Que velhas forças? Políticos corruptos e empresas que não olham a meios para ter lucro. Há uma inevitável componente de crítica social ao estado contemporâneo das coisas neste livro. As linhas narrativas focam-se nas desventuras dos anjos, caçados mas a reagir defendendo a sua liberdade que, no fundo, é a liberdade de toda uma sociedade e protegendo o acesso à inteligência artificial, e as investigações de uma inspetora que descobre que o mundo normativo que sempre tomou como adquirido não é tão limpo e linear como acreditava. Pelo meio, tempos operativos de segurança privada, empresas avançadas de biotecnologia capazes de criar novos humanos, ativistas digitais que se escondem no anonimato e muita ação explosiva.

Mais do que uma simples história de entretenimento que se socorre de elementos cyberpunk, Anjos constrói-se a partir de reflexões sobre a sociedade panopticon decorrente da progressiva intrusão da digitalização sobre o espaço social. Carlos Silva leva para a ação de forma divertida mas bem medida os impactos da perda de privacidade estimulada pelas redes sociais, pelas capacidades inauditas de cruzamento de informação, definição e agregamento de perfis individuais em bases de dados massivas. Não é por acaso que os "bons" protegem o super-computador capaz de coligir todos os dados de uma sociedade que abandonou a privacidade em troca de acesso a redes ou promoções económicas (essencialmente, um retrato da nossa contemporaneidade), não é por acaso que (atenção: major spoiler) o grande vilão seja um elemento dos próprios anjos seduzido pelo enorme poder que o domínio da informação nas redes digitais lhe confere. Reparem que a nossa corrente vida digital, mediada por algoritmos opacos criados por empresas gigantes que dominam os fluxos de informação globais, e com isso a nossa perceção sobre os acontecimentos, alimenta de forma sumptuosa vários anjos caídos, cujas biografias conhecemos e admiramos.

O grande foco deste livro está na reflexão sobre privacidade na era digital e o resvalar para uma sociedade panopticon. Leio nele uma enorme influência da obra de Cory Doctorow, da qual a referência aos Little Brothers é o sintoma mais visível. Mas Carlos Silva foi ambicioso e ousou ir mais longe no seu mundo ficcional, extrapolando tecnologias presentes e de futuro próximo nos domínios do cruzamento entre automação, robótica e biotecnologias. Algo que nos revela sem infodumps, como elementos de cenário na narrativa, o que enriquece a experiência de leitura. Por último, foge à tentação grimdark do cyberpunk e dá-nos algo que rareia hoje, uma visão otimista do futuro. Sente-se, nas palavras do autor, descrições luminosas dessa Lisboa reconstruída que sustenta a ação de Anjos. E há que adorar o pormenor final de transcendência do humano para o digital. Uma das tropes clássica do cyberpunk, a que Carlos Silva só cede no final.

Romance prémio Divergência, Anjos surpreende pela sua ambição e seduz pela forma como conduz a ação pelos seus pressupostos. Fundamentalmente uma história de ação, não se nega a reflexões com impacto direto na nossa perceção do mundo contemporâneo. Um excelente trabalho de um escritor que tem provas já dadas quer como autor quer como dinamizador cultural. Uma nota especial para a capa, com a forma simples mas eficaz como usa a glitch aesthetic para nos desperta logo as emoções para o mundo virtual.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Man:Plus



André Lima Araújo (2016). Man:Plus Electric Memory. Londres: Titan Comics.

Man:Plus veste muito bem e sem medo as suas referências. É um trabalho assumidamente derivativo, feito como homenagem ao cyberpunk clássico, ao mangá de FC e às séries policiais procedimentais. Não copia à sorrelfa elementos destes géneros, tentando passar-se por obra nova e inédita. A cópia é visível, intencional e assumida. Se a história é original, não tem medo de citar estilistica, temática e visualmente as influências que claramente fascinam André Araújo. Consigo ler este livro quer como aventura cyberpunk, no que é igual a tantas outras, mas o seu lado de homenagem, quase fan fiction de um fã conhecedor e talentoso, é o que desperta o interesse. Isso, e o estilo gráfico do autor, que já ouvi descrito como uma espécie de Shirow português.

Estamos num futuro próximo, na mega-cidade de Olissipo, não uma Lisboa futurista mas uma cidade nova, construída por um conglomerado chinês que vê nos territórios abandonados portugueses uma porta de entrada barata para a europa. Nas ruas da cidade surge um andróide em fuga, perseguido por temíveis mercenários ciber-aumentados. Uma unidade de investigação especial da polícia envolve-se, com agentes que também têm próteses cibernéticas e que não desdenham o submundo dos hackers para decifrar os mais avançados algoritmos. No cerne da narrativa, um cientista que fez o upload da mente da sua falecida mulher para o corpo de um andróide. O conflito entre a mente humana e a inteligência artificial provoca comportamentos anómalos num mecanismo que ultrapassa a condição de máquina, e o maior gestor do conglomerado faz tudo para capturar a andróide, em busca de novos produtos a mercantilizar.

Se estas linhas narrativas vos soam demasiado a Ghost In The Shell ou a Neuromancer, é porque o são. Os ingredientes estão lá todos, sublinhando este Man:Plus não como mais uma banal história cyberpunk, mas como uma homenagem conhecedora do género. Ciber-tecnologias, andróides conscientes que transcendem a fronteira entre o mecânico e a vida, intrigas nos corredores de mega-corporações que não olham a meios para assegurar lucros, a mistura high tech com decadência e a dose exagerada de fascínio oriental, todos os elementos do cozinhado cyberpunk são manipulados com gosto por André Araújo, com alguns retoques especiais, como a referência às séries televisivas de policial procedimental futurista (uma das personagens é uma referência directa à atriz americana Linda Hunt) e, no título, uma ligação a Man Plus de Frederik Pohl. Também se detectam laivos de Blade Runner (andróides avançados a ser usados no espaço exterior), e a referência estética ao mangá Cyberpunk, especialmente ao trabalho de Masamune Shirow, é omnipresente. Na fronteira entre obra de mérito próprio e fan fiction erudita, Man:Plus é uma declaração de amor ao cyberpunk, fantasticamente ilustrada.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Comics


Generation Gone #01: a mistura bizarra de filosofia com modernidade tecnológica que caracteriza  o trabalho do argumentista Ales Kot seduziu-me com Material. Kot está de volta, com uma nova série que mistura o cyberpunk com o género super-heróis. A premissa é um código desenvolvido por um cientista que despoleta transformações super-humanas em quem a ele é exposto. Promissor, e ajuda saber que a ilustração está a cargo de André Lima Araújo. Do desenhador português, autor de Man:Plus, já se sabe que a carga cyberpunk vai ser elevada.


The Wildstorm #06: Há que apreciar a frieza com que Warren Ellis executa este reboot para a DC Comics. São os seus temas habituais, forças ocultas institucionais que controlam os destinos planetários nas sombras, distorções induzidas por abordagens excêntricas à tecnologia. E, porque não, alienígenas que lutam contra os opressores da Terra.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Ghost in the Shell 2: Man-Machine Interface



Masamune Shirow (2005). Ghost in the Shell 2: Man-Machine Interface. Milwaukie: Dark Horse Comics.

Ghost in the Shell original surpreende e aguenta o teste do tempo, como aventura cyberpunk bem humorada. A consciência humana que anima o corpo robótico da Major Kusanagi oscila entre acção pura e a consciência de ser um ser cuja humanidade se resume à sua consciência dentro de um corpo mecânico, num mundo onde a interligação homem-máquina é cada vez mais prevalente.

Ghost in the Shell 2 - Man-Machine Interface não é a continuação direta do primeiro, vai muito mais longe numa história onde outra operacional da agência japonesa Secção 9 está ainda mais integrada no mundo digital, capaz de transferir a sua consciência através das redes, distribuir-se por diversos corpos robóticos, e talvez esteja perto de atingir uma forma de transcendência digital.

O tom é de um cyberpunk barroco, muito visível no exagerado estilo visual, que ultrapassa o do mangá original. O traço de Shirow anda a solta, fascinado com a visão do digital que ainda hoje caracteriza a sua iconografia. No entanto, esta obsessão com a estética e mitografia cyberpunk distrai da história. Shirow passa mais tempo a tentar fazer o equivalente em BD das cenas cinematográficas de hackers a invadir sistemas e a lutar no virtual do que a estruturar uma narrativa coerente.

terça-feira, 16 de maio de 2017

APOSIMZ






Tsutomo Nihei (2017). APOSIMZ. Kodansha Comics.

Um registo mais leve do que o que conhecia deste mangaká nos fascinante Blame! e Biomega. Aposimz leva-nos a um asteróide dividido, onde sobreviventes de uma clivagem social que os isolou da civilização no seu interior sobrevivem nas ruínas exteriores, expostos ao gelo e à atmosfera rarefeita. Mais do que sobreviver, organizam-se em clãs que lutam entre si pela supremacia à superfície, contando com uma simbiose entre robots e humanos para criar combatentes com armaduras biomecânicas. O tema clássico de Nihei - ruínas urbanas infindáveis de alta tecnologia decaída, corroída e desolada, leva aqui com uma dose do clássico mesclar de humano e robot, com retoques de FC juvenil. Os personagens deste Aposimz são jovens, claramente uma aposta de mercado por parte do autor. Um registo leve, dentro dos padrões do género, que vale essencialmente pelo traço de Nihei e a sua visão arquitectónica tão bem definida.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Battle Angel Alita: Last Order






Yukito Kishiro (2013). Battle Angel Alita: Last Order Omnibus #1. Nova Iorque: Kodansha Comics.

É sempre divertido, se bem que pouco compreensível, mergulhar de chofre no meio de uma longa linha narrativa daquelas tão à japonesa, de cyberpunk hiper-cinético ultra futurista. A acção diverte, a estética seduz, e a leitura oscila entre o fascínio com a descoberta do mundo ficcional e a frustração porque, não se tendo lido os episódios anteriores, parte dos seus conceitos e premissas nos são inacessíveis. Alita - Gunm no original, é nisto uma boa surpresa, transportando-nos a um sistema solar futuro, colonizado mas com a humanidade a divergir em formas exóticas, com venusianos obesos, jupiterianos que trocaram a carne por corpos robóticos, Marte em perpétua guerra civil, e a Terra como berço, nexo político, alicerçada em duas cidades orbitais umbilicalmente ligadas a cidades flutuantes na atmosfera, sob as quais se espraiam gigantescas favelas.

Vamos descobrindo estas camadas de forma progressiva, através da reactivação da andróide de combate Alita às mãos daquele que tem sido um dos seus mais consistentes adversários. Reconstrói a inimiga com as mais avançadas tecnologias, manipulando-a para conseguir ascender aos segredos da cidade orbital. O resto, são cenas intensas de luta e intriga. A cidade flutuante é palco de uma intensa guerra civil quando os seus habitantes descobrem que os seus cérebros são substituídos no final da adolescência por chips com as suas memórias implantadas, e o destino desses cérebros, fazer parte de uma matriz que alimenta uma inteligência artificial, a obsessão do cientista que reconstrói Alita. Ao chegar à cidade orbital, novas e poderosas forças se revelam, aniquilando os mais poderosos, e Alita só sobreviverá com ajuda de um hacker que sobrevive nas entranhas da cidade orbital. O sentimento de viagem infinda, de cada etapa que prometia ser um final se revelar apenas mais um patamar para outro destino, é a grande característica deste livro, bem como a sua típica estética barroca de mangá cyberpunk.

domingo, 16 de abril de 2017

Visões



Ghost in the Shell (Rupert Sanders, 2017)

A herança de um mangá marcante. Uma história interessante, que pega nos conceitos elementares das histórias originais e lhes dá uma nova aventura. Uma estética assombrosa, a repescar a visão clássica dos anos 90 do século passado sobre o futurismo digital. Estética essa que não se perde nos efeitos especiais digitais e mecatrónicos que lhe fazem jus. Personagens interessantes, actores de renome, e aquele fetichismo ocidental sobre o Japão.  

 
Ghost in the Shell tinha tudo para se tornar um excelente filme, fazendo o cyberpunk old school regressar à memória visual colectiva contemporânea. Mas falha, vítima de um trabalho de realização desconexo, que opta por um misto de técnica de telenovela com mau filme de acção. Infelizmente, na arte do cinema, a realização é o fio que une todos os elementos. Por excelentes que sejam, e este filme tem elementos assombrosos, se a união é desconexa o filme falha. Cenas de acção cansativas, momentos dramáticos que não conseguem transmitir os dramas dos personagens, diálogos filmados a estragar a continuidade, as mesmas cenas filmadas de três ou quatro ângulos diferentes mostrados em justaposição.


Esta antevisão dos primeiros cinco minutos do filme mostra bem as suas falhas e pontos fortes: estética impecável, uma acção frenética fragmentada em mútiplos planos desconexos que não valorizam a intricada coreografia da cena.

O que estraga o filme não é o whitewashing de Scarlett Johanssen como protagonista (e diga-se que esta actriz corre sérios riscos de se tornar uma diva de cinema de FC). O filme afunda-se na inépcia do realizador. Aliás, inépcia não diria, apenas baixa capacidade narrativa. Pegaram em alguém mais capaz de telenovelas ou filmes de acção pipoca e metem-lhe este material nas mãos, que claramente não compreende, e revê como filme de acção pipoca com planos de efeitos especiais que servem só para mostrar as capacidades dos efeitos especiais. Quem conhece o mangá sabe que Ghost in the Shell é mais do que isso, quem não o conhece, espero que se arrisque a ler o original e Man-Machine Interface para perceber porque é que valeu a pena ver este filme. Não, não só pelos efeitos, é por toda a imersão nesta distopia cyberpunk, apesar do péssimo trabalho de realização.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Proxy


Anton Stark (ed.) (2016). Proxy. Calvão: Editorial Divergência.

Mal suspeitava Norbert Wiener, que se enamorou com o potencial intuído da simbiose homem-máquina ao estudar a matemática do abate de aeronaves em voo acelerado, do impacto que teria o seu conceito de cibernética. Entre outras influências, da ciência e tecnologia à cultura popular, tornou-se a espinha dorsal de um género literário de Ficção Científica.

O termo cyberpunk invoca nos fãs de Ficção Científica um tipo muito específico de iconografias. Cidades de torres brilhantes no seu alto modernismo arquitectónico, destinadas às rarefeitas classes bem sucedidas, rodeadas de velhos bairros degrados, fervilhantes de actividade habitualmente pouco cumpridora da lei. Mundos virtuais paralelos, habitados por inteligências artificiais que se movem nas geometrias do éter binário. Robots e andróides, dos elegantes simulacros humanóides aos disformes engenhos mecanizados. Hackers rebeldes, magos da alucinação consensual sustentada por redes informáticas. Mesclas simbióticas de homens e máquinas. Frieza dos interesses de conglomerados empresariais face à resiliência dos indivíduos num mundo onde o consenso westfaliano se pulverizou, levando consigo o conceito de estado-nação. Cenários perfeitos para aventuras que, no seu âmago, procuram fazer sentido do que à altura era um nascente mundo digital.

As histórias desta antologia representam uma rara incursão de autores portugueses numa estética que, saída do imaginário de Bruce Sterling, Pat Cadigan, Vernor Vinge e William Gibson, escritores que nos anos 80 intuíram o domínio que a informatização iria exercer sobre a consciência humana, hoje nos parece ao mesmo tempo datada e intrigante. Seis escritores aceitaram o desafio, trazendo-nos contos que espelham influências cinematográficas, literárias e do mundo dos mangá. O resultado final pauta-se pela qualidade literária e solidez de mundos ficcionais que mostram como estes autores comseguiram sentir o pulsar estético do cyberpunk. Sem ser radicalmente inovadora, com uma abordagem convencional ao género, marca a diferença pelo atrevimento em trazer o Cyberpunk para o panorama do fantástico literário português, mais habituado à fantasia ou FC distópica.

Deuses Como Nós, Vítor Frazão: uma arquivista de tecnologias antigas é contratada por um magnata da élite de alta tecnologia da mega-cidade flutuante que se espraia ao largo da península ibérica. Este pretende encontrar o seu antigo colega de laboratório, agora um rebelde que luta contra a implementação de tecnologias de imortalidade cibernética que deram a riqueza ao magnata. Este conto de Vítor Frazão captura muito bem o misto de decadência e futurismo brilhante que caracteriza o género, invocando iconografias poderosas numa história que, fiel ao cyberpunk, mistura tecnologia avançada de aumentação humana com desigualdades sociais e hiperurbanismo.

Modulação Ascendente, Júlia Durand: Como sobreviver num mundo empresarial ultracompetitivo, onde os funcionários são descartáveis? A personagem principal deste conto, cuja longevidade e ascensão na hierarquia da empresa tem sido permanente, descobre que poderá precisar de mais do que competência e estar no lugar certo à hora certa. Poderá precisar dos serviços de um hacker, capaz de infiltrar o dispositivo musical do seu patrão, manipulando-lhe as emoções através do uso de música para garantir a desejada promoção. Conto com elementos intrigantes, como a esterelidade da cultura corporativa, a vibração dos sectores decadentes das cidades ultra-modernas, ou a manipulação informática de dispositivos pessoais para alterar percepções. No fundo, este conto é mais sobre o poder emocional da música do que cyberpunk por si próprio.

Pecado da Carne, Carlos Silva: Um conto muito sólido e bem construído, que nos leva a um futuro onde as cidades são controladas por seguradoras que asseguram a saúde e bem estar daqueles que conseguem pagar as apólices. Um mundo tornado possível graças a uma epidemia que vitimou grande parte da humanidade, e sustentando graças a uma sub-classe de humanos que vivem nos subsolos, sobrevivendo por entre as condutas de manutenção e portas de ligação das cidades com o mundo exterior. Numa dieta de perfeição nutricional, por vezes apetece um fruto proibido, e é aí que entra a anti-heroína, uma poderosa delegada de saúde, acordada de um sono criogénico para investigar indícios de tráfico de carne dentro da cidade. Sem entrar em spoilers, digamos que a carne tem origem inesperada, que neste mundo ficcional os delegados de saúde são temíveis, e as crianças têm respeito à fada da nutrição. Para além da boa história e do sólido mundo ficcional, este conto debate questões que de facto se estão a tornar reais, como a hiperprivatização, ou a interferência em padrões de vida individuais e privacidade por parte de empresas que, graças a tecnologias IoT, personalizam os seus produtos e colocam restrições comportamentais aos seus utilizadores em nome das suas definições de saúde ou segurança.

Y + T, Marta Silva: num mundo futuro, numa fábrica centrada numa poderosa esfera, dois amigos de infância dão por si em lados opostos de uma luta para derrubar as estruturas industriais e libertar os seus habitantes.

Alma Mater, José Castro: Se a história tem um sentimento familiar, com uma avançada consciência cibernética incorporada num andróide que foge dos laboratórios onde foi criado, cruzando-se com criminosos e rebeldes do mundo caótico que está para lá das fronteiras regradas dos centros corporativos, e até conhece o seu criador, o autor joga muito bem com os elementos da iconografia cyberpunk. Temos o futurismo decadente, o estilhaçar multicultural das velhas sociedades europeias, o contraste entre os sobreviventes no mundo exterior e as afluentes sociedades fechadas empresariais, as altas tecnologias obsoletas e recicladas por qualquer um que seja capaz de lhes mexer. Junte-se a isto uma Lisboa revista entre a velha cidade decadente e uma nova cidade futurista, inacessível, com a velha cidade dominada por gangs de descendentes das correntes comunidades emigrantes, e temos os ingredientes para o que é uma belíssima história, que desperta a curiosidade do leitor com o seu mundo ficcional bem montado.

Bastet, Mario Coelho: Um grupo de hackers é contratado por uma cliente empresarial para recuperar um artefacto roubado ao melhor criador de robots. A busca leva-os a enfrentar mafiosos que se modelam na Yakuza que admiram, para resgatar algo que é proibidissimo, neste mundo ficcional: uma inteligência artificial avançada. Conto cheio de acção, de muito bom ritmo, com uma prosa desprendida e visceral a contrabalançar um sólido mundo ficcional.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Ghost in the Shell


Masamune Shirow (2006). Ghost in the Shell. Milwaukie: Dark Horse Comics.

Demorou o seu tempo, mas finalmente li esta obra seminal quer do mangá quer da estética cyberpunk. Ghost in the Shell é o tipo de livro que só poderia ter surgido nos anos 90 do século XX, com o deslumbramento optimista por tecnologias digitais que inspiraram influentes voos de imaginação. Apesar de ser na base uma história de aventuras policiais, este mangá partilha do mesmo espaço conceptual da obra de escritores com Bruce Sterling ou William Gibson. É cyberpunk no seu estado puro, rico na iconografia tecnológica imaginária que desperta tecno-luxúria, aproveitando a diversão para reflectir sobre os impactos sociológicos das tecnologias, e sonhando com uma promessa dual de sentiência e imortalidade digital, assente nos electrões que circulam pelas redes.

As personagens de Shirow transcendem os limites fisiológicos através de implantes tecnológicos, restando do humano original pouco mais do que a aparência, alguns orgãos vitais e a aderência a códigos culturais, embora o final deste volume pareça colocar em causa este último factor em nome de conceitos de evolução transhumanista. Prevalente na série está uma visão abstracta do ser e da humanidade, vista como algo mental e independente do corpo, abrindo espaço ao oposto, ao reconhecer de sentiência e individualidade a inteligências artificiais. Uma visão explorada com rigor, numa narrativa estrutural progressiva que se mantém constante ao longo das diversas aventuras.

E, claro, é um mangá divertido, com as peripécias dos agentes da secção de operações especiais que se ocupa de missões secretas para manter a segurança num Japão futuro. A equipa operacional, liderada pela esbelta cyborg Motoko Kusanagi, é especialista no combate a ameaças cibernéticas e vai deparar-se com uma inteligência artificial que, sentindo-se transcendente, escapou aos seus criadores. Pelo meio vão vivendo aventuras com muita acção e intriga, temperadas por uma forte dose de humor.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Comics


Arcadia #02: Delírios de cyberpunk em movimento. Ou como, num mundo virtual, a maneira mais crista da onda de viajar é ser comprimido num ficheiro zip e transferido através de um protocolo de transferência de ficheiros. Arcada está no cruzamento entre Snow Crash e Walking Dead, não pelos zombies, que não tem, e agradecemos por isso que os mortos vivos já perderam todo o interesse. É-o pelo conceito da humanidade reduzida a uma minoria de sobreviventes de uma pandemia que mantém vivos os simulacros digitais dos falecidos em gigantescas quintas de servidores.


War Stories #09: Spoilers, dears (repitam isto com a vossa voz interior a entoar a pronuncia da River Song): os civis sobrevivem, escapam da Prússia acossada pelo exército vermelho, e vivem para contar a história. Que não é uma de heroísmo. Os seus salvadores, andrajosos restos da Wermacht que tentam sobreviver ao cilindro soviético, foram tão torcionários como os seus agora carrascos o são quando estavam a vencer. Não há heroísmos em guerras sujas, genocidas, onde homens que se viam como superiores não tinham qualquer escrúpulo em aplicar as piores selvajarias àqueles que viam como inferiores, menos que humanos. E este, que Ennis tão bem retrata, é o momento em que as ilusões se desfazem, o véu da ideologia se levanta, e aqueles que acreditaram numa falsa verdade se apercebem da real profundidade do caos em que se encontram imersos.


Airboy #01: Airboy é uma daquelas personagens clássicas de comics que, volta e meia, tentam ser ressuscitadas por editoras em busca de propriedade intelectual lucrativa. Se não me engano, a Archaia e a AP Press fizeram algumas experiências que não pegaram. A matéria base não é das mais promissoras. Airboy é um rapaz adolescente que combate nazis na II Guerra com ajuda de Birdie, o seu avião inteligente que voa batendo asas. Para além de eliminar nazis tem ainda de se haver com Valkyrie, a sua nemesis, uma sedutora vilã de decote generoso. Um rapaz e o seu aviãozinho contra os decotes generosos de uma mulher imperiosa é tema para inúmeras análises psicoterapêuticas. Esta variante da Image distingue-se por... bem, digamos que não tem aviões e o personagem só aparece na última prancha. Até lá acompanhamos um argumentista de meia idade sem ideias a quem é entregue o projecto de renovação do personagem, que junto com o seu ilustrador luta contra a falta de inspiração. Mergulhando numa orgia de álcool, cocaína e sexo casual. Faz sentido. Um comic estranho, hilariante e over the top em todas essas boas maneiras erradas. Vamos ver como progride.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Comics


Arcadia #01: O cyberpunk clássico vivo e de boa saúde nesta nova série da Boom! Studios. Depois de uma pandemia global quase ter exterminado a humanidade os sobreviventes mantém gigantescas quintas de servidores que albergam as cópias digitais da humanidade desaparecida, artificialmente vivas num planeta Terra virtual apelidado de Arcádia. Se bem que o utopismo bucólico do classicismo de et in arcadia ego não se coaduna muito com cyber-distopias, mas enfim. O arranque foi intrigante, com a divisão entre um real e um virtual que se assume como real, cujos simulacros pretendem claramente ser mais do que meras linhas de código a correr num super-computador complexo para encontrar uma cura para o vírus pandémico e construiram uma réplica do seu mundo real, ao estilo Matrix. Curiosa, esta premissa de as classes empobrecidas ficarem reduzidas à condição de avatares de baixa resolução. Vivemos hoje num mundo que, em muitos aspectos, se assemelha em demasia às distopias cyberpunk. Será intrigante ver como se desenrola esta série de premissas clássicas onde intervém a sabedoria trazia ex post facto pela pervasividade contemporânea do digital potenciaso pelas redes de telecomunicação.


Afterlife With Archie #08: Se esta cena parecer familiar... é porque o é. Aguirre-Sacasa e Francavilla aproveitam este oitavo número desta brilhante série para homenagear The Shining, mais a venerar Stanley Kubrick que a piscar o olho a Stephen King. Os sobreviventes de Riverdale refugiam-se num hotel com o seu quê de Overlook e Archie consome as suas mágoas com um fantasmático Jughead a canalizar Lloyd, o arrepiante barman do hotel do filme The Shining. Há mais referências polvilhadas ao longo da edição, com quartos assombrados e uma cena com skates a fazer a obrigatória vénia à fabulosa cena do filme em que Danny, correndo pelos longos corredores no seu triciclo, se depara com as gémeas arrepiantes.

Acabei que reparar que as iniciais do realizador e do escritor são as mesmas. SK,SK. Coincidência? Creio que não, digo com voz sepulcral.


The Names #09: E, numa simples vinheta, a constatação daquilo que torna The Names uma série com uma premissa tão interessante. Esta incredulidade de uma mente humana habituada à lentidão milenar de um progresso turbinado pela explosão de velocidade do mundo computacional. O mundo em que vivemos é mesmo assim, estruturado por algoritmos complexos que reflectem escolhas de decisores e programadores que desconhecemos. Mas ainda nos imaginamos num mundo em que a decisão do indivíduo é fundamental. Quanto à série, termina de forma apressada e amarfanhada, tal como Hinterkind. Suspeito que a Vertigo ande a limpar a casa para mais uma revoada de séries.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Kraftwerk 3-D


Não é só pela música, é a estética o que mais seduz no já longo trabalho desta banda. Pioneiros da electrónica, os Kraftwerk catalisam uma iconografia espantosa que cruza o cyberpunk puro com as grandes vertentes do abstraccionismo do século XX. Em palco, as visões de Malevich, Lissitzky, Kandinsky, Mondrian ou Picabia ganham vida digital ao ritmo electrizante de uma pop electrónica fria, seca e quase desumana. Quando os Futuristas clamavam pela primazia da máquina ou os Suprematistas a pureza da geometria apenas tinha palavras e pigmentos a aplicar sobre telas rugosas. A tecnologia permite concretizar a pureza metafísica contida nos sonhos da arte revolucionária do século XX, pouco depois esmagada pelo regime soviético (no caso do suprematismo/construtivismo russo), ou sublimada nas expressões e conceptualismos que lhe sucederam no mundo ocidental. Apenas a arquitectura manteve viva este amor pela pureza da geometria, mesmo que a leve aos limites do convuluto. 

Ver Kraftwerk ao vivo é extraordinário. Se se vai pela música, é já de si muito bom. Mas se se conhece arte e história de arte a experiência é sublime. É outra iteração, contemporânea, técnica, digital, daquele sonho da gesamtkunstwerk. O 3D estereoscópico do espectáculo deu-lhe outra dimensão, com uma audiência metamorfizada em busto retro-futurista hipnotizada pela pureza da imagem. 


Ondas ao estilo Matrix a abrir Computerworld.


Para Pocket Calculator a banda reservou-nos uma espécie de Broadway Boogie-Woogie cyberpunk.


Os hinos futuristas dos primórdios do século XX à máquina ganham vida em Man Machine numa extraordinária síntese artística.



El Lissitzky ficaria radiante ao ver este proun a hipnotizar o público.



Spacelab reservou-nos este ovni a aterrar no Rossio.


Se Neon Licht não é das mais evocativas peças do grupo, esta estética de neon weimar fascinava.


Fiquei intrigado. Este VW Carocha a circular na auto-estrada é uma referência à história alemã, com a invenção nazi da rede de auto-estradas para deslocar mais depressa forças militares, e este carro icónico, também ele legado dessa época? Ou também inclui uma referência ao primeiro objecto digitalizado em 3D, o carro da mulher de Ivan Sutherland? Seria interessante se as superfícies deste Carocha tivessem sido geradas com o modelo 3D original dos anos 70. Subline-se o realismo naif dos primórdios do 3D, com as cores vivas e o gosto pelas superfícies reflexivas.



Outro dos grandes momentos, Radioactivity, com homenagem a Fukushima.




O onirismo das linhas férreas de alta velocidade a atravessar uma Europa terraplanada pela velocidade de Trans Europe Express.



No primeiro encore, uma legião de lentes de pequenos ecrãs esforça-se por captar os míticos autómatos que a luz vai revelando.


Robots, ou o momento em que autómatos programados se mostram mais humanos do que os músicos, em aparente interacção com o público. Em contraste com os músicos, uniformizados e mecanizados nos seus gestos. Algo que também faz parte da estética da banda.



Para terminar, uma sequência imparável de Boing Boom Tschak, Techno Pop e Musique Non Stop.






Uma verdadeira festa de wireframe nestes momentos. Não consigo deixar de recordar que esta forma de conceber a representação do real vem-nos do renascimento.


O quadrado negro de Malevich regressa pela mão dos Kraftwerk em Electric Cafe.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Black Swan



Bruce Sterling (2010). Black Swan. Milão: 40K.

Tem sido evidente que Sterling se apaixonou pela ideia de Europa de uma forma que só o turista prolongado consegue. Fascinado pela elegância italiana, celebridades francesas, capacidade alcoólatra ex-jugoslava, pelas complexidades rizomáticas da intricada cultura europeia que admira pelo optimismo progressista. Haja alguém que ainda acredite no sonho europeu. Ou isso ou sabe-lhe demasiado bem enrolar a língua com nomes estranhos ao inglês texano. Este antigo enfant terrible do cyberpunk metamorfoseou-se em guru da tecnologia e isso sente-se na sua ficção. Suspeito que os contos que vai publicando aqui e ali sejam escritos para se convencer de que ainda consegue escrever mais qualquer coisa que não sejam insights potentes sobre as armadilhas da era digital, algo em que é muito bom.

Este é um caso típico. Percebe-se o deslumbre pela forma como utiliza a iconografia pan-europeísta com toques de hipermodernidade tecnológica. As personagens são os prototípicos entes do novo mundo digital, desde o blogger que vive de scoops ao hacker sombrio, sem esquecer as personalidades vácuas dos media e a modernidade decorativa e arquitectónica que preserva o clássico pitoresco. Dá uns toques cyberpunk com uma história sobre realidades paralelas criadas colapsando probabilidades quânticas de acordo com a interferência do observador. Mas o que realmente o deslumbra é imagem soalheira do pan-europeísmo chic, mescla de elegância, fascínio tecnológico, arquitectura pitoresca das velhas cidades e traços de carácter nacionalistas, que acabam por levar a primazia nestas suas mais recentes histórias. Isto é o Bruce Sterling de Holy Fire, versão redux, longe do Sterling de Schismatrix. Mas sublinhe-se que um Sterling mediano é mais acutilante, interessante e observador da modernidade do que excelência de muitos, por isso vale sempre a pena ler. É como mergulhar no Beyond the Beyond ou no Tumblr, com ficção a substituir as realidades de ponta.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Daemon


Daniel Suarez (2009). Daemon. Nova Iorque: Dutton.

Há livros que nos surpreendem e apanham nas curvas. Este é um deles. Não esperava encontrar o que se oculta debaixo deste aparentemente banal technothriller que mistura os géneros policial com teorias da conspiração. A estrutura narrativa segue os moldes do pulp pop com influências no estilismo cinematográfico do cinema de acção, ou um olho posto numa possível adaptação cinematográfica que não dê grande trabalho a passar de registo literário a argumento. Nisso não é diferente de milhares de outros livros descartáveis. A linguagem é directa e está cheia de infodumps, que aqui são elementos necessários para o que realmente dá valor ao livro. O conceito, e a interconexão de conhecimento e possibilidades tecnológicas e sociais que geram a conspiração que dá o mote ao livro. Estes são os elementos de génio numa obra que se lê como um thriller descartável mas nos deixa a reflectir profundamente sobre possibilidades, potencial e catástrofes de uma sociedade progressivamente automatizada, dependente do digital e onde a convergência de tecnologias bleeding edge gera possibilidades inauditas.

O mistério que dá o mote a este livro inicia-se com o falecimento de um programador e magnata dos jogos, criador de um dos MMORPGs mais populares no mundo. A sua morte desencadeia uma série de assassínios cuja investigação revela um padrão preocupante. Como legado final, este programador criou uma inteligência artificial restrita distribuída pela internet, cujos componentes se activam accionados por pedaços específicos de informação. Acontecimentos isolados fazem parte de um vasto padrão onde um organismo digital automatizado recruta pessoas brilhantes para gerar um organismo que mistura o real e o virtual. Implacável, eficiente, representa o emergir de um novo tipo de organização difusa assente na internet que virá substituir o corrente sistema de estados-nação.

Ao longo do romance esta génese é tratada como algo de negativo, reflectindo-se na cooptação de personagens sombrias e na luta de representantes de legalidade normativa contra este novo organismo. No final do livro o autor dá o lógico passo em direcção à ambiguidade revelando que este organismo, criado intencionalmente, é apenas um forçar de evoluções sociológicas naturais e não é necessariamente uma nova encarnação do mal.

Para além deste conceito de base, é muito interessante o uso interconectado que Suarez faz de tecnologias de ponta na manufactura, jogos, comunicação e robótica para criar o seu supra-organismo dependente de inteligência artificial. Realidade aumentada, impressão 3D, automatização de comunicações, bases de dados distribuídas e colocação de camadas de informação que permite agir no espaço real e robots autónomos são alguns dos conceitos que Suarez faz colidir neste seu intrigante romance. Surpreendente. Debaixo da capa de policial procedural esconde-se uma fortíssima lição de especulação futurista desenfreada. Este aparente technothriller oculta especulação cyberpunk hipermoderno ao nível de um Sterling ou Gibson no seu melhor.

sábado, 21 de setembro de 2013

Santa Trindade








Em modo dérive no Museu das Comunicações, um espaço onde a densidade de dead media por metro quadrado é avassaladora. No meio dos dispositivos obsoletos de comunicação, computadores arcaicos, câmaras e gravadores, brilham as placas de microchips das estações de comutação, ponteiros paralisados apontam fixamente para valores em mostradores, intricados mecanismos seguram fitas que já não correm pelas bobines, e os dínamos acompanham intocados tubos de crookes. No meio de tanto latão polido e silicone apetece gritar louvores à santa trindade de Tesla, Marconi e Shockley. Os objectos em exposição libertam o cyberpunk e o electropunk dentro de nós. Note-se que a excitação com as ideias de tecnologia não são coisa nova. Os delírios com mecanismos a vapor do steampunk e a mesclagem homem-computador onde o virtual mergulha do real do cyberpunk espelham o entusiasmo dos futuristas com o automóvel, a aeronave e a velocidade. Cada nova geração encontra a sua forma de apregoar o amor à máquina.

(A visita fez parte do Encontr@rte 2013, ponto de encontro de ideias optimistas sobre cultura e educação.)