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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Galaxy Awards 1: Chinese Science Fiction Anthology


Francesco Verso (ed.) (2022). Galaxy Awards 1: Chinese Science Fiction Anthology. Roma: Future Fiction.

Conhecer Francesco Verso foi uma das excelentes surpresas do Fórum Fantástico 2023. Brindou-nos com uma excelente palestrar sobre a necessidade de descolonizar a ficção científica. Em suma, sobre a necessidade de olhar para lá do domínio de ideias (e propriedade intelectual) do universo dominante anglo-americano, e descobrir outras sensibilidades, outras ideias, outras formas de olhar e praticar ficção científica.

Mais do que falar sobre essa necessidade, Verso age. Através da sua editora, World SF, procura trazer para o público europeu autores e histórias de outras partidas do mundo. No seu catálogo encontram-se antologias que nos trazem a FC  chinesa, sul-americana, indiana, do golfo, europeia e italiana, bem como contos e romances destes autores. Publica em italiano, o seu mercado,  e também em inglês, por saber que é a lingua franca que permitirá um maior alcance a estas histórias.

Não resisti a trazer algumas das suas edições, com um certo arrependimento por não ter adquirido mais. Esta, é uma excelente janela sobre a ficção científica chinesa. Reúne contos vencedores de concursos por uma das revistas chinesas do género. Lê-los, é ao mesmo tempo refrescante e um regresso ao passado da ficção científica.

A perspetiva chinesa refresca, por nos vir de um outro substrato cultural, um caldo que inclui a longa tradição chinesa, a sua rápida modernização, mas também o peso do regime (nunca explícito, mas sente-se). O curioso, é que estes contos recuperam algo que o mainstream do género tem deixado passar, e por vezes rejeitado como antiquado e desadequado aos tempos em que vivemos. Um sentimento de utopia, de sonhar com futuros melhores, é o mais incisivo elemento comum destes contos, mesmo quando puxavam ao negro. Essa visão da FC foi a que caracterizou a era clássica anglo-americana, e tem sido posta de parte pelas distopias, cyberpunk ou cli-fi. Se o ocidente parece ter perdido a vontade de imaginar melhores futuros, esse sentimento está bem vivo na ficção chinesa.

Os contos são interessantes, na intersecção entre futurismo, especulação e cultura chinesa. Atrevem-se a imaginar outras realidades, e nós, ao lê-los, temos acesso a toda uma outra realidade cultural da Ficção Científica, dinâmica e pujante.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Waste Tide


Chen Qiufan (2019). Waste Tide. Nova Iorque: TOR.

Um misto curioso de cli-fi com cyberpunk, vindo da pujante FC chinesa. Os habitantes de uma ilha periférica, cuja economia depende da reciclagem de desperdício tecnológico, estão numa encruzilhada. O misto de interesses políticos e senhores quasi-feudais locais que os dominam está a ser abalado pela proposta de um forte investimento de uma empresa americana, que pretende transformar a perigosa reciclagem artesanal numa indústria segura e modernizada. No entanto, os interesses da empresa não são benignos. No meio disto, um jovem tradutor sino-americano, originário da ilha, apaixona-se por uma rapariga da classe mais baixa dos seus habitantes. Esta, ao ser oferecida em sacrifício num ritual supersticioso para salvar o filho de um dos senhores locais, acaba por despoletar estranhos acontecimentos. A sua consciência parece mesclar-se com os sistemas digitais de um robot, e com isso gerar uma inteligência artificial consciente. Tudo está relacionado com a empresa americana, fachada de um grupo que, nas sombras, procura usar a discrição de uma zona de fronteira para investigar os efeitos a longo prazo de tecnologias de controlo mental, originalmente criada por uma cientista exilada, também originária da ilha. Tecnologias essas que têm como efeito secundário o possibilitar o mesclar da consciência humana com sistemas computacionais.

Há muita coisa em jogo neste nem sempre interessante romance. Qiufan invoca conceitos interessantes, mas nem sempre os consegue levar dentro de uma história cuja estrutura nem sempre aguenta com a sua complexidade. O toque cli-fi, com a linha narrativa dos habitantes condenados ao trabalho sujo da reciclagem de desperdício eletrónico, nem sempre se conjuga com o lado cyberpunk do enredo sobre mesclas de consciência humana e digital. Toda a história sobre intrigas políticas e económicas ocupa mais espaço do que devia, e a parte sobre tecnologias secretas, que cola todo o romance, acaba por ser deixada muito no ar. Não sendo um livro excelente, é no entanto um sinal de maturidade da FC chinesa.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Astronauta: Assimetria



Danilo Beyruth, Cris Peter (2016). Astronauta: Assimetria. Barueri: Panini.

Um curiosamente interessante aproveitamento de personagens de banda desenhada infantil dos estúdios brasileiros Maurício de Sousa, que têm reinventado o clássico Turma da Mônica para públicos young adult, deixando para trás o estilo cartoon e investindo em argumentos complextos e estilo mais realista. Ou FC pura, como no caso dos livros da série Astronauta, onde Danilo Beyruth pega num personagem secundário da banda desenhada original e lhe dá traços de space opera.

Nesta aventura, o amargurado astronauta, que teve de deixar os seus amores para trás ao juntar-se ao programa espacial, investiga uma anomalia em Júpiter que se revela ser uma fenda no espaço-tempo, aberta por entidades cósmicas. Cruza-se com um seu outro eu de um universo paralelo, onde descobre o que poderia ser a sua vida de aventuras espaciais com o amor da sua vida vida, e nas peripécias do fechar da fenda temporal, acaba por ficar preso num terceiro universo, acompanhado pela filha do seu eu do outro mundo paralelo.

A narrativa é sólida e bem ilustrada, representativa do melhor que a banda desenhada brasileira oferece ao seu público.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Rocket Girls






Housuke Nojiri (2010). Rocket Girls. São Francisco: Haikasoru.

Uma curiosa mistura de Hard SF com ficção YA, apesar do lado Young Adult ser o que mais pesa. Neste romance, uma adolescente japonesa que aproveita as férias escolares para ir às ilhas Salomão em busca de um pai que abandonou a sua mãe na viagem de núpcias, vê-se envolvida num projecto experimental japonês para colocar um astronauta em órbita. Um projecto que decorre nas ilhas um pouco à revelia das estruturas rígidas das agências espaciais tradicionais, e que se encontra em perigo. Os sucessivos insucessos com os seus foguetões mais avançados levaram o governo japonês a ameaçar cortar o financiamento de que dependem. A solução está em lançar astronautas com foguetões menos potentes, e também menos propensos a explodir no lançamento. Motores menos potentes implicam menores cargas de lançamento, e é aqui que a jovem adolescente entra. As suas proporções diminutas e baixo peso tornam-a a candidata perfeita para astronauta desta missão japonesa.

O resto, como se diz, é história, com as peripécias de uma jovem que até nem quer ser astronauta mas pensa que é a forma de obrigar o pai, transformado em chefe de tribo nativa das ilhas Salomão, a regressar ao Japão, as agruras do treino, a amizade com a sua meia-irmã, que também se torna candidata a astronauta, e uma missão inicial em que após um lançamento bem sucedido para a órbita terrestre, tudo corre mal e só uma missão pilotada pela irmã a conseguirá salvar. Pelo meio, ainda visita a estação espacial MIR, com consequências funestas para a base orbital.

Leitura leve e divertida de FC nipónica, com alguns toque de hard sf na discussão de tecnologias espaciais, mas que é essencialmente um romance despretensioso de YA.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Lembranças da Terra



Ângelo Brea (2014). Lembranças da Terra. Santiago de Compostela: Através Editora.

A culpa disto é da Cristina Alves, do Rascunhos, que deu com este livro numa livraria e partilhou a página da editora, escrita num português estranho. Sabendo o quão raro é FC em língua portuguesa, muito mais se não vier dos sítios do costume, o assunto merecia alguma investigação. O mistério do estranho português resolveu-se ao perceber que a editora, bem como autor, são galegos. A curiosidade aguçou-se, mas o livro revelou-se esquivo. Até ao dia em que, por puro acaso, o encontrei numa das minhas peregrinações às livrarias de Óbidos.

Peregrinações é o termo certo. Notem que a principal livraria fica na antiga igreja ao lado do castelo, que obriga a atravessar toda a vila e subir uma rampa inclinada para se lá chegar.

Lembranças da Terra é um livro muito curioso. Pelo que é, obra de FC de um autor galego, escrita num galego internacional que é quase indistinguível do português. Notam-se as diferenças em algumas expressões e construções frásicas, que dão um gosto especial de exotismo à leitura. Mas, essencialmente, pela sua banalidade interessante. Estranha combinação de ideias, bem sei, mas este livro de Brea não traz nada de novo ao campo da FC. Bem pelo contrário, é uma mistura de temas e estruturas narrativas clássicas do género. Um carácter que assume, e que trabalha de formas curiosas. É interessante notar que se cada conto apresenta sólidas construções de mundos ficcionais, na maior parte deles nada de concreto se passa.

Lembranças da Terra: Num planeta Marte cujos colonos se sentem cada vez mais afastado da Terra, berço natal, um jovem marciano pergunta ao pai do que é que este se recorda da sua viagem ao planeta. As recordações do pai são muito marotas, tendo lá ido em viagem de núpcias, e revela ao jovem que foi concebido na Terra, o que abala um aspirante à independência marciana. Conto bem humorado, mas que falha porque a sua premissa central, a do jovem lutador pela independência das colónias de Marte, só é revelada no final e não tem qualquer impacto na narrativa.

A Máquina da Entropia Inversa: Um físico consegue realizar o seu sonho de descobrir o antigo Egipto ao tornar-se voluntário de testes de uma máquina de viagens no tempo. Os viajantes não se deslocam fisicamente, antes incorporam-se como habitantes do passado, e os paradoxos temporais são evitados pelo sistema computacional que controla a viagem. O sistema é um misto de realidade virtual com máquina do tempo e depende de um anel, que o viajante retira quando quer regressar ao seu tempo. Mas este físico apaixona-se por uma bela egípcia, e pela ideia de viver no passado, usando a sua sabedoria do presente para aliviar os males medicinais dos antigos egípcios. Enquanto o seu corpo fica numa espécie de coma induzido no presente, vive no passado uma vida que lhe agrada mais do que a que deixou. As consequências deste acto são imprevisíveis.

As Exploradoras: Uma missão de exploração chega a um planeta cheio de vida, com alguns vestígios de ter sido no passado habitado por formas de vida inteligente. Na lua que orbita o planeta, encontram alguns espécimes crio-preservados dos antigos seres, numa base abandonada. As exploradoras revivem-nos e devolvem-nos ao planeta, esperando que assim a espécie tenha uma segunda hipótese de sobrevivência. Conto que inverte de forma muito simpática uma premissa clássica da FC, a história de exploração planetária. Aqui, os exploradores são alienígenas e a Terra o planeta selvagem com vestígios de uma antiga civilização.

As Grandes Vantagens da Neolíngua: Num futuro próximo, um professor de japonês reflecte sobre a beleza que se perde com a extinção iminente das línguas globais face à prevalência de uma língua franca. Ganha a facilidade de comunicação, perde a diversidade cultural. Conto que aborda uma questão querida à editora deste livro, a preservação do galego, sob uma perspectiva de FC.

Doze Anos em Titã: Conto com um sólido mundo ficcional onde nada de especial acontece. Toda a narrativa é a construção de um ambiente de FC Hard clássica, centrada num posto avançado de colonização em Titã para extracção de recursos naturais, que está no limiar de se tornar uma pequena cidade. O foco está nas agruras do administrador, que tendo a infelicidade de ser competente, não se consegue livrar dos contratos sucessivos na lua de Saturno. Homem que embora se sinta a a envelhecer, com a vida a passar-lhe ao lado, não deixa de se focar no que considera ser o seu dever.

Estação Lunar Alfa: Não confundir com essa outra base lunar Alfa (embora tenha talvez tido o seu quê de inspiração). A FC aqui serve de cenário a um conto policial, típico whodoneit com um inspector destacado em comissão de serviço na base lunar a investigar a morte violenta de dois cientistas e um condutor de rovers lunares. O motivo tem o seu quê de western, com a descoberta de uma jazida de ouro sob a superfície marciana e um par de geólogos que decidem aproveitar-se, em segredo, da sua descoberta.

Nas Montanhas de Magadar: Um conto longo, onde nada parece passar-se. Narra o mergulho na clandestinidade de um grupo de fugitivos a uma revolução que transforma numa sanguinária ditadura. As descrições da convulsão política num sistema solar colonizado por descendentes de russos são interessantes, mas toda a história se limita ao iniciar de um processo de sobrevivência nas montanhas. É um conto curioso. Geralmente conta-se o que acontece antes, ou depois, destes momentos morosos de adaptação...

O Bonsai: variação sobre as histórias de autómatos inteligentes que adquirem algo de humano. Aqui, um autómato criado por um cientista isolado da família vai tornar-se um quase filho. Construído para seguir a tradição familiar de criar bonsais, irá dar mostras de humanidade e tornar-se ele mesmo um legado para passar às próximas gerações. Junto com a homenagem à história clássica de robótica, há um forte fascínio com a cultura japonesa tradicional.

O Efeito Smith: Visão curiosa. A derrota e exterminação da Terra às mãos de um império estelar, contada num discurso de vitória que mostra o pormenor cultural que deu aos alienígenas a vantagem sobre a tecnologia terrestre: o individualismo democrático, entendido como fraqueza estrutural por estes alienígenas vitoriosos que se prepararam para esmagar a galáxia sob as suas pesadas botas. Daqueles contos que não se percebe serem um hino ao ideário fascista, ou uma ironia.

O Sol no Horizonte: A dicotomia entre os habitantes de uma colónia remota, que devido à forte radiação no sistema solar duplo onde se encontra o planeta colonizado não têm qualquer contacto com o resto da humanidade. Da terra restam os produtos culturais mediáticos, agora artefactos milenares, que satisfazem o saudosismo dos colonos. Mas as novas gerações começam a inquietar-se e a querer construir a sua cultura.

O Varredor: a história de um astronauta especial, malvisto pela família e sociedade, que ganha protagonismo e merecido reconhecimento quando a sua nave de recolha de lixo espacial é a única capaz de salvar a tripulação de uma importante missão espacial.

Perdidos na Lua: História de FC Hard sobre dois astronautas que, encarregues de reparar um espelho no observatório no lado escuro da lua, se vêem obrigados a abrigar-se nas crateras para sobreviver ao dia lunar após um micro-meteorito lhes dar cabo do veículo de transporte.

Por Causas Naturais: na incipiente colonização marciana, impõe-se a pergunta: quem será o primeiro explorador a morrer em Marte? A combinação de uma astronauta grávida e uma tempestade de pó que isola as secções da colónia vai dar a resposta, com o parto do primeiro bebé marciano a causar a morte da mãe.

Rosas de Admete: Um conto sobre plantas alienígenas que fascinam a humanidade já se sabe onde vai parar. Este segue um esquema similar ao Day of the Tryffids de John Wyndham, com variantes. As flores são belas, produzem energia eléctrica, convivem bem em todos os ecossistemas, e... quando florescem, simultaneamente em todos os planetas colonizados de 31 e 31 anos, libertam esporos adaptados ao ecossistema agreste original, que para sobreviver nos primeiros minutos libertam uma toxina mortal que depressa se desvanece. O extermínio da humanidade é quase total. Só sobrevivem aqueles que por estarem em locais isolados em terra ou no espaço, não estão em contacto com estas rosas fatais.

Um Planeta Remoto: Sob o panorama de uma civilização galáctica a colapsar, os colonos de um asteróide mineiro procuram um refúgio seguro, longe do caos violento em que mergulharam os planetas da diáspora humana.

Um Pôr do Sol Vermelho: Daquelas histórias neste livro onde nada de especial parece acontecer, funcionando com especulação sobre o processo de terraformação de Marte, seguindo os pensamentos de um astronauta que tem um acidente na superfície marciana.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Dawn

 

Yoshiki Tanaka (2016). Legend of the Galactic Heroes,vol. 1: Dawn. São Francisco: Haikasoru.

Esta é uma edição algo inesperada da Haikasoru. Não por si, mas pela temática. Esperamos FC militarista clássica e o que nos sai... não se enquadra nos ditames clássicos desta vertente da FC. Ao contrário do que o título nos indica, não iremos acompanhar heróicos aventureiros nas batalhas espaciais pelo controle de uma galáxia. Há acção, com descrições de grandiosas batalhas entre poderosas frotas estelares, mas não é esse o cerne deste livro, com uma abordagem mais cerebral ao género.

No livro, com a Terra como planeta semi-esquecido e longínquo numa galáxia ocupada por uma vasta humanidade, domina um império de recorte fascista, combatido por uma aliança democrática que conseguiu estabelecer-se no seu próprio território. Resta um planeta livre, zona franca económica, para servir de fiel de balança, e que de facto, por via da acumulação de riqueza, tem um poder superior ao dos dois blocos em oposição.

Por esta descrição, já se percebe que o foco do livro não está na aventura espacial mas nas tácticas e geoestratégia. É aí que reside a acção, com um mundo ficcional construído para sublinhar os movimentos militares, a necessidade de escapar aos espartilhos da ortodoxia no pensamento táctico, mas também das manobras políticas, dos pontos fracos dos sistemas político-económicos. Acompanhamos as acções de dois comandantes militares, um imperial e outro rebelde, cuja capacidade de pensar fora dos limites convencionais os colocam quer como vencedores de batalhas, quer como comandantes capazes de salvar os seus soldados dos piores desastres provocados pela fraca competência dos seus superiores.

É curioso notar que o Império galáctico é dominado por nomes germânicos, enquanto a aliança livre revela uma maior diversidade, escapando a um expectável pendor asiático. Traços da memória histórica da II Guerra, catastrófica para o Japão?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Confessions d'un Automate Mangeur d'Opium



Fabrice Colin, Mathieu Gaborit (2015). Confessions d'un Automate Mangeur d'Opium. Editions France Loisirs.

Este é  um livro claramente apaixonado pela estética Steampunk. Delicia-se a criar um mundo novecentista onde a iconografia fim de século de uma Paris no meio da grande exposição mundial é tomada de assalto por dirigíveis, aeróstatos, carruagens sem cavalos e autómatos. Com algum vapor e muito éter, substância misteriosa de efeitos nefandos sobre a fisiologia humana e miraculosa a animar as tecnologias futuristas debruadas a latão polido deste passado que nunca aconteceu. Neste aspecto, o livro é sólido, mergulhando o leitor em momentos visualmente arrebatadores.

Quando o deslumbramento estético é prevalente, algo se perde. Neste caso é tudo o resto. A história promete algum interesse, com uma actriz cuja beleza oculta as tendências sáficas e o seu irmão, um alienista apostado no controle total dos seus pacientes através de panopticons como metodologia psiquiátrica, a perseguir um autómato assassino que escreve poemas e parece ser provido de inteligência autónoma. Autómato esse que parece estar relacionado com um antigo paciente do alienista, desaparecido misteriosamente e riscado dos processos do hospital, e estranhos eventos numa escavação arqueológica em Angkor. Parece que nas ruínas do Camboja colonizado por franceses se oculta um dos segredos da imortalidade através do éter, cobiçado pelos ingleses.

Poderiam ser bons tópicos para uma divertida história (e hey, coisas mais bizarras há, lembrem-se das premissas dessa maravilha de bizarria steampunk que é a série The Bookman de Lavie Tidhar). Infelizmente, estão acorrentados ao serviço da estética, servindo como desculpa para os autores se deliciarem a detalhar cenários. O encadeamento da acção oscila entre o confuso e o previsível. Subtileza não é o forte deste enredo. Registo um exemplo: percebemos logo o que é o autómato assassino quando a meio do livro a actriz penetra no santuário do vilão supremo do romance, um construtor de autómatos que serve a alta sociedade parisiense mas se dedica às mais insanas e intricadas criações mecânicas nos subterrâneos da sua grande loja. Quanto este génio do mal afirma que o seu autómato de estimação contém o cérebro de um cão, todo um pilar estruturante do livro é revelado, mas os autores agem como se nada se passasse quase até ao fim. Até custa ler esta acefalia.

Pois. Graaande spoiler ali em cima. Grande spoiler. Depenem-me e mergulhem-me num tonel de éter enfiado dentro de um motor a vapor. Mas não nos êmbolos, por favor, que são dolorosos.

Dentro desse gigante mal conhecido que é a FC francesa, o Steampunk é um sub-género que fascina os gauleses. Transparece para o público europeu mais na vertente de banda desenhada, com o claro apelo visual. Afinal, quanta da FC francófona ultrapassa realmente a barreira da tradução? Este livro promete - e afirma, logo na introdução, um deslumbre visual com a estética única deste género. Realmente cumpre a promessa, mas de forma oca, colocando a iconografia acima da narrativa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Gene Mapper


Taiyo Fujii (2015). Gene Mapper. São Francisco: Haikasoru.

Um delicioso thriller biopunk passado num futuro próximo onde a engenharia genética consegue produzir alimentos desenhando de raiz o código genético das plantas transgénicas. Uma inovação que promete acabar de vez com a fome no mundo, mas que pode sofrer um fortíssimo abalo quando uma plantação experimental do mais avançado arroz transgénico é corroída por uma praga desconhecida. Um dos desenhadores do mapa genético do novo arroz é desafiado a investigar, e descobre-se no meio de uma conspiração que une jornalistas sem escrúpulos a eco-terroristas, que soltam uma arma biológica, um insecto transgénico concebido por cientistas da DARPA programável para uso militar, numa tentativa de derrotar o consenso sobre a genética com um ataque terrorista disfarçado de tragédia natural.

Livro com um ritmo de leitura rápido, bem desenvolvido nas suas premissas, tem três pontos especiais de interesse no domínio da ficção especulativa. O primeiro é o ponto de vista inocente sobre o potencial benéfico da manipulação genética. Uma visão cândida, benévola, de utopias de abundância trazidas pela engenharia genética, muito distante da mais habitual e paranóica visão dos seus perigos inesperados e usos tenebrosos. O segundo ponto de interesse está no conceito de criação de uma forma de vida totalmente desenhada em laboratório, incluindo um kit de desenvolvimento e uma api para programar o que é essencialmente descrito como uma computação em nuvem, distribuída em enxames de insectos artificiais biológicos.

Apesar de ser um thriller utópico de biopunk, Gene Mapper encerra dentro de si uma brilhante especulação cyberpunk. O terceiro ponto de interesse especulativo do livro é a forma como concebe a pervasividade da realidade aumentada como forma de comunicação, recorrendo a avatares, espaços virtuais e recriações tridimensionais tal com hoje comunicamos por telefone ou texto. Neste futurismo que deve alguma coisa aos cardboard futures saídos das empresas tecnológicas dominantes, redes de implantes corporais permitem uma transição constante entre espaços reais e virtuais, assentes numa rede robusta que substituiu a velhinha internet, eliminada numa catástrofe digital e da qual só restam alguns arquivos de vastas cópias de segurança, subtraídos por hackers previdentes durante a derrocada da rede global.

Com interessantes especulações sobre o futurismo próximo, apesar de uma certa inocência sobre intenções e consequências da manipulação genética, lê-se como um thriller imparável onde a melhor acção se passa no espaço das ideias. Boa surpresa literária, trazida do Japão pela Haikasoru.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Goth


Otsuichi (2009). Goth. São Francisco: Haikasoru.

Um livro algo desapontador, apesar de partir de uma premissa fortíssima. Dois adolescentes japoneses, com um fascínio mórbido pelo negrume e mortes violentas, com uma relação impessoal que raia a psicopatia entre si e o mundo. É uma boa premissa para contos de horror policial, mas a prosa do autor arrasta-se e consegue transformar boas ideias em lamaçais literários. Pior. No final do livro somos mimados com um longo posfácio onde o autor nos conta que afinal os dois jovens não são humanos, são yokai encarnados, e os assassinos que perseguem com um bizarro sentido de justiça são eles também espíritos maléficos. Algo que não se percebe ao ler estes contos, ou por incapacidade do escritor, ou por falta de algum pressuposto comum à cultura japonesa. Possivelmente há pistas que permitiriam a quem conheça as tradições nipónicas perceber que criaturas realmente são estes anti-heróis e os monstros que perseguem. Por outro lado, se no posfácio é preciso explicar ao leitor aquilo que leu, talvez seja mesmo falha do escritor.

Goth: Um caderno de apontamentos encontrado por dois estudantes com tendências sombrias revela-se um relato dos métodos usados por um serial killer com propensão para esquartejar os corpos das vítimas em padrões de estética peculiar.

Wrist-cut:  A cidade está a ser assolada por uma vaga de atrocidades, com um psicopata a decepar mãos de pessoas e animais. O protagonista do livro, que apenas conhecemos como "Boku" (eu em japonês) apercebe-se que o tranquilo professor de ciências do seu liceu é o decepador em série e rouba~lhe os troféus, tentando levá-lo a decepar as mãos da amiga, Morino.

Dog: O desaparecimento misterioso de animais de estimação está ligado ao drama de uma jovem menina, que treina o seu pacífico e fiel labrador para que este assassine o padrasto violento. Para que o cão aprenda a degolar um homem, tem de se treinar lutando contra muitos aterrorizados cães raptados.

Memory/Twins: Neste conto, Otsuichi mergulha mais a fundo nos mistérios de quem realmente é a adolescente Morino, com uma história sobre o suicídio de uma irmã gémea que, na óptica distorcida que dá a tónica a estes contos, foi afinal assassinada pela irmã que tomou o seu lugar.

Grave: Um polícia guarda no jardim um tétrico segredo. Gosta de enterrar vivas vítimas que escolhe a dedo. Na sua segunda tentativa, o cruzar-se com Boku e Morino ditará um final aos seus impulsos, mas esta dupla de adolescentes não é especialmente justiceira e ainda lhe planta uma terceira vítima no jardim.

Voice: Um conto complexo, onde a irmã de uma rapariga violentamente assassinada é atraída pelo assassino com gravações da voz, captadas durante o acto. Conto interessante, porque pensamos sempre que o inominado protagonista destas histórias é o assassino, até ao volte-face final onde se revela que afinal é um amigo de longa data da rapariga, para além de morbidamente curioso com assassínios em série.

Morino's Souvenir Photo: Um fotógrafo em busca da perfeita veracidade da expressão humana regressa, nove anos depois, ao local onde pela primeira vez conseguiu através de um assassínio captar o retrato perfeito. Cruza-se com Morino, que o enfeitiça, mas cruza-se também com o inominado protagonista, caçador de histórias relacionadas com mortes violentas.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison


Enéias Tavares (2014). A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.

Uma deliciosa surpresa de Steampunk tropicalista. Enéias Tavares transmuta Porto Alegre para uma viragem de século com automótatos a vapor e dirigíveis. Fá-lo sabendo manter o foco narrativa não nos adereços estéticos steampunk mas num intrigante enredo onde serial killers, alienistas enlouquecidos, donas de bordéis de luxo, aristocratas decadentes, policias e jornalistas colidem de forma sangrenta.

O temível doutor que dá o nome ao livro aparenta ser um sádico assassino em série, responsável pela morte atroz e requintada dos elementos mais influentes da sociedade porto-alegrense. Médico respeitável, detalha a exploração das entranhas das suas vítimas em desenhos anatómicos que assombram os anatomistas. Mas Louison não é um assassino frio. Busca, na verdade, vingança, assassinando metodicamente os elementos impunes de uma sociedade secreta que se delicia nos excessos, da glutonia às piores sevícias sexuais infligidas sobre os mais fracos. São essas as suas vítimas, na dualidade entre a justiça da lei e a da vingança. Já o alienista que o aprisiona enquanto aguarda a execução é um doutor de pesadelo, psicopata xenófobo que usa o seu poder como director do asilo de lunáticos para experiências macabras. Louison irá escapar-se ao cadafalso, ajudado na sua fuga pelos elementos de uma outra sociedade secreta que usa para o bem os poderes da ciência e da mística.

A juntar a uma divertida aventura steampunk com um brilhante enredo entre o policial e o fantástico, está uma profunda vénia à literatura de época. O registo é epistolar, construindo a narrativa a partir de fragmentos de diários, registos sonoros e depoimentos, fazendo recordar a estrutura de Dracula de Bram Stoker. As vénias literárias não se ficam por aqui. Alguns dos personagens são originais, mas algumas das mais influentes são referências a obras clássicas da literatura brasileira que o escritor enumera ao concluir o livro.

Equilibrado entre uma boa história e um convincente ambiente Steampunk, este fantástico tropicalista é uma excelente surpresa de leitura imparável.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica

 

Roberto Causo (ed.) (2007). Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica. São Paulo: Devir Livraria/Pulsar.

É estranho. Temos história comum, falamos a mesma língua, temos acordos ortográficos para normalizar a grafia, temos comunidades integradas. Mas a presença cultural do Brasil por cá faz-se sentir maioritariamente pelos produtos culturais de baixíssima qualidade televisivos e musicais. Talvez seja distracção ou ignorância minha, mas tirando alguns nomes de renome a literatura brasileira é por cá pouco conhecida. Então no que toca à literatura fantástica, o desconhecimento é quase total. Se estiver muito errado nesta minha opinião, sintam-se livres para a comentar em força. De preferência com links que provem o contrário.

Escrevo isto sabendo que há publicações online e editoras que fazem pontes e leva autores de cá para o público brasileiro ou nos dão um vislumbre do que lá se faz. Tenho acompanhado algumas. Mas é paradoxal. Com pelo menos duas editoras dedicadas à FC e Fantástico com presença nos dois lados do atlântico, seria de esperar um maior intercâmbio de edições e autores. Uma das coisas que me intrigou com a presença da Saída de Emergência no mercado brasileiro foi a possibilidade de ver nas livrarias portuguesas literatura fantástica de autores do lado de lá do atlântico (e, já agora, o contrário). Tal ainda está para acontecer, e aposto que há excelentes razões de lógica do mercado e financeira para isso. A Devir trouxe para cá algumas antologias, que se vão encontrando em feiras do livro. Apanhei esta no Amadora BD, exemplar algo raro de encontrar.

A antologia em si destaca-se por prometer o que não cumpre. Suspeito que tal como em Portugal, a FC brasileira tenha de se abrir ao realismo mágico, ao fantástico e ao terror para ganhar gravitas. Aquela FC mais pura, dura, de cerne na especulação de base científica, está quase ausente da antologia. Talvez, e agora estou a especular na corda bamba, tal como por cá, uma tradição cultural pouco virada para as ciências não as tenha tornado fonte de inspiração para os autores que arriscaram as ficções fantásticas. Se a qualidade dos contos é elevada, é discutível que sejam os melhores no campo da FC, a menos que estiquemos muito as fronteiras de género.


O Imortal, Machado de Assis: É impossível não ler este conto sem pensar em Mary Shelley ou Borges. Assis segue o caminho do imortal cansado da vida, farto de perder entes queridos e ver o mundo passar sem que nada mude, realmente. Dá-lhe uma variante tipicamente brasileira, com a imortalidade conferida por um elixir ciosamente guardado por uma tribo amazónica a um nobre filho de pai holandês e mãe espanhola cujo ardor pela vida o leva às maiores aventuras pela europa e américas. O conto torna-se interessante precisamente pelo que não nos conta, sugerindo ao invés de detalhar as peripécias que o nobre e progressivamente fatigado imortal vive. Incluir este conto numa colectânea de FC parece-me esticar demasiado o conceito. A narrativa é belíssima, mas não tem nada a ver com o género, e o antologista justifica-se com uma rebuscada interpretação do elixir primevo à luz da para-ciência homeopática. Pode não ter elementos de FC, mas é uma belíssima variante de temas explorados nos mais bem conhecidos contos The Mortal Immortal ou El Immortal (sublinhando-se, claro, que o conto de Borges é posterior ao de Assis).

Meu Sósia, Gastão Cruls: O antologista refere que Cruls ganhou o lugar no panteão da FC brasileira com um romance de história alternativa sobre Amazonas na amazónia. Para esta antologia seleccionou um conto bem construído sobre doppelgangers, sublinhando o paralelismo com William Wilson de Poe. O conto de Cruls segue um outro caminho, mais psicológico, com um escritor a deparar-se com seu duplo rival enquanto pesquisa material para um novo livro. A conclusão do conto aponta para o artifício fácil de resolver a narrativa como uma alucinação do protagonista.

Água de Nagasáqui, Domingos Silva - Sobreviver ao impossível deixa marcas. Um sobrevivente dos bombardeamentos nucleares de Nagasaki descobre que é portador de uma estranha maldição. Aparentemente não afectado pela radiação, provoca a morte de todos os que o rodeiam.

A Espingarda, André Carneiro - Um típico relato pós-apocalíptico, com um personagem a vaguear pelas ruas das cidades destruídas, sobrevivendo por entre as ruínas e cadáveres. A solidão é-lhe dolorosa, e quando finalmente encontra um outro sobrevivente, o encontro decorre de forma muito inesperada e acaba resolvido a tiro.

O Copo de Cristal, Jerônimo Monteiro - Um conto de fortes conotações políticas, compreensíveis mesmo para aqueles que têm um conhecimento difuso da história brasileira. Um homem idoso, a recuperar do trauma de uma prisão por motivos políticos, encanta-se com um copo de cristal que o acompanha desde a sua infância. Quando a noite cai, estranhas cores são visíveis no cristal transparente. Mas a sua mulher e sogro vêem mais, vêem imagens de guerra e morte no futuro ou passado trazidas pelo crista cristalino.

O Último Artilheiro, Levy Menezes - Mais uma aventura pós-apocalíptica, com o último sobrevivente de uma pandemia coligada com ataques nucleares automáticos a disparar um canhão do alto do abrigo bem abastecido que encontrou. Aparentemente dedica-se a exterminar répteis que talvez estejam a tornar-se bípedes.

Especialmente, Quando Sopra Outubro, Rubens Scavone - Essencialmente uma reescrita de contos de Ray Bradbury nesta história sobre uma rapariga que tem o poder de criar manifestações físicas do que sonha.

Exercícios de Silêncio, Finísia Fideli - Um dos contos mais sólidos na abordagem clássica à FC. Um astronauta com a sua nave avariada aterra numa colónia perdida cujos habitantes regrediram em consciência para formas de vida e organização social pré-tecnológica. Obra sólida, com um intrigante mundo ficcional.

A Morte do Cometa, Jorge Calife - Outro conto a aproximar-se da Hard SF (têm sido raros, nesta antologia). Num futuro próximo, uma missão para salvar o cometa Halley da erosão causada pelos seus múltiplos volteios pelo sistema falha redondamente. Intrigante como homenagem a um cometa que é símbolo do progresso científico.

A Mulher Mais Bela do Mundo, Roberto Causo - Um conto incómodo, que parece ser uma banal história de romantismo entre um fotógrafo brasileiro a viver em Nova Iorque e uma bela mulher, mas que ganha toda uma nova dimensão quando um alienígena entra em cena. Alienígena esse que decide abandonar a Terra após ver o trabalho do fotógrafo, que registou uma miséria e desigualdade tão comum quer às civilizações humana quer à extraterrestre.

A Nuvem, Ricardo Teixeira - A encerrar a antologia, um conto delicioso na forma como urde narrativas tradicionais com ficção científica pura. A história é sobre uma cidade do interior brasileiro desaparecida e esquecida pela memória, após longos anos de seca e o surgir de uma estranha nuvem que parece recupera o viço aos terrenos mas se revela como uma experiência falhada de colonização alienígena. A antologia encerra como inicia, com um conto de extraordinária qualidade literária.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

The Land of the Green Man


Carolyne Larrington (2015).  The Land of the Green Man - A Journey through the Supernatural Landscapes of the British Isles. Londres: I. B. Tauris.

A leitura deste livro mostra-nos o quanto a literatura fantástica está contaminada pela visão vitoriana do folclore tradicional das ilhas britânicas.  O que não é em si surpreendente. Os autores que deram forma à visão contemporânea de fantasia, Machen, Lewis, Tolkien,  Gaiman, entre outros,  foram beber inspiração às suas raízes.  É destas raizes que a autora nos fala nesta obra que percorre um caminho periclitante entre estudo académico e divulgação literária.

Pela mão conhecedora da autora, claramente mais erudita do que faz transparecer,  somos levados num périplo pelas lendas e tradições das ilhas britânicas,  histórias passadas de geração em geração que antecedem a história da anglicidade. Terras submersas, criaturas de terror que exercem predação sobre humanos descuidados, a dualidade amoral das fadas, seres telúricos cujas interacções com os homens se saldam em tragédia,  bruxas, lendas arturianas, dragões e essa colisão entre nostalgia por um passado mitificado e as pressões ecológicas que é o homem verde, constructo relativamente recente. São alguns dos elementos que redescobrimos neste livro.

Escrevo redescobrimos porque são temas e personagens que nos são familiares da iconografia da literatura,  banda desenhada e cinema. A autora mostra muito bem os paralelismos entre as lendas tradicionais e algumas das obras mais conhecidas e marcantes da literatura fantástica. Mostra também como essas visões foram recolhidas no século XIX por uma legião de clérigos e personalidades locais que, ao preservar as narrativas tradicionais,  não resistiram a alterá-las com toques típicos da sensibilidade vitoriana, enfatizando o romantismo e eliminando a sexualização patente em muitas lendas. É difícil não reconhecer aqui um dos elementos característicos da fantasia literária contemporânea.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Ficções

Reality Check: Disponível gratuitamente no Smashwords, este conto antigo de David Brin apresenta uma visão muito pessimista das tecno-utopias. Leva-nos a um futuro singularitário e pós-humano, onde os habitantes preferem mergulhar no ópio ilusório das simulações do que lutar pelo progresso. É uma variante intrigante do conceito de conflito como faísca do progresso tecnológico e social, com uns pózinhos intrigantes da teoria que o universo em que vivemos poderá ser uma simulação.

The Unsafe House: Bruce Sterling a misturar Cli-Fi com distopia hipermoderna contemporânea. Vinheta em forma de diálogo, entre um narco-traficante envelhecido que busca, junto de um agente da lei, encontrar uma forma de terminar os seus dias em paz bucólica. De caminho vai sendo traçada uma visão desoladora de um futuro devastado pelo aquecimento global

Nana Neném: Um curioso conto de terror com sabor tropical. Nas profundezas da amazónia a terra vinga-se das sevícias de uma empresa madeireira com extremo prejuízo. Vítimas transformadas em jacaré zombie, carnificina generalizada e uma metamorfose de maldição. O terror gore dissolve-se nos mitos tropicais numa história que não poupa no grand guignol, do brasileiro Newton Nitro.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Ficções

O Último: Neste conto de Joel Puga um imortal sente a dura passagem do tempo, após a extinção da humanidade para transição espiritual nas guerras entre deuses e demónios. Aguarda, numa casa repleta de livros, recordando o ascético vampiro que lhe conferiu a imortalidade há milénios atrás, preparando-se para defender a sua individualidade do assalto final dos exércitos demoníacos. Interessante, o ambiente soturno que o autor estabelece neste conto.

Cousins from Overseas: tradução para inglês de um conto de história alternativa do brasileiro Gerson Lod-Ribeiro, que imagina o que aconteceria se o Brasil se tivesse mantido uma monarquia e se em Portugal o assassinato do rei D. Carlos não tivesse chegado a acontecer. Estamos nos primeiros tempos da Segunda Guerra e o Império Brasileiro, um dos aliados, acolhe o rei português refugiado após uma invasão de Portugal continental por forças combinadas da Espanha franquista e da Alemanha nazi, retaliação do recém-vencedor da guerra civil pelo apoio dado às facções monárquicas. Mais do que a história em si, passada numa caçada nas selvas da amazónia, vale pelos voos especulativos sobre a plausibilidade de possibilidades históricas, que espicaçam (e muito) a imaginação do leitor.

Hello and Goodbye in Portuguese: Conto de Joel Jonhson, destacado pelo Boing Boing e que vale não pela qualidade literária, bastante normal, mas pela forma como enquadra os desafios trazidos pela automação aos mercados laborais dominados pela meritocracia neo-liberal. Num futuro não muito distante o progresso da automação é tal que existem apps que medem o momento em que a sociedade humana fará a transição para a automação total, com robots a substituirem todos os trabalhadores. A história em contada em diálogo, entre uma entediada dona de casa afluente que já pertence à elite que vive de rendimentos e não precisa de trabalhar, e um dos inúmeros trabalhadores que, perante a progressiva substituição por robots, vê as carreiras que lhe asseguram subsistência medirem-se cada vez mais em meses, semanas ou até dias, perguntando-se como irá sobreviver até a humanidade entrar numa prometida utopia onde a cornucópia das riquezas geradas pelos robots permitirá a todos viver confortavelmente. Algo inatingível, porque as velhas forças de acumulação de riquezas estão mais pujantes do que sempre.

domingo, 17 de maio de 2015

Outras Literaturas: Ficção Científica


João Barreiros, Lauren Beukes, Fátima Vieira e Fábio Fernandes no auditório 3 da Gulbkenkian.

Saí da Gulbenkian com a sensação que ficou a faltar qualquer coisa. Não me interpretem mal. A sessão sobre ficção científica promovida como parte integrante do festival Próximo Futuro foi uma conversa muito interessante ue juntou três autores, o brasileiro Fábio Fernandes, o português João Barreiros e a sul africana Lauren Beukes, moderada por Fátima Vieira. Barreiros, eterno enfant terrible da literatura de FC portuguesa (sempre que posso uso isto para o qualificar), dispensa apresentações. Fernandes é escritor, docente e tradutor, e Beukes argumentista e escritora com um livro, Zoo City, distinguido com um prémio Arthur C. Clarke. Fátima Vieira dedica-se ao estudo e análise de utopias, campo próximo da ficção científica. O Próximo Futuro ainda incluiu paineis sobre Banda Desenhada, ao qual não pude ir por calhar em horário lectivo, e literatura Policial sob o tema Outras Literaturas.

Parece estranho estar num colóquio com estes quatro grandes nomes ligados á literatura fantástica e sentir que algo de importante ficou para trás. A conversa foi rica e interessante, mas faltou olhar para a estrutura, reflectir sobre o porquê da importância da FC como género literário, a sua pertinência face à modernidade contemporânea. A moderadora ainda tentou levar a conversa por outros caminhos, sublinhando os aspectos sociais, mas o fluxo seguiu mesmo a partilha de experiências, o enumerar de livros, o deslumbre com as ideias galopantes, intrigantes e bizarras da FC. O que é sem dúvida interessante, especialmente com um Fábio Fernandes muito comunicador, João Barreiros igual a si próprio, espremendo prazer no chocar a audiência (como habitual, as expressões faciais de quem não está preparada para seu o estilo muito próprio de comunicação são de surpresa com toque de repelência descrente e Vieira não foi excepção). Lauren Beukes, por nos trazer a realidade trans-nacional do mundo anglófono, tocou em aspectos importantes patentes na sua obra sobre igualdade de géneros, desequilíbrios sociais gritantes, afro-futurismo e o impacto cognitivo de um presente que em muitos aspectos ultrapassa as mais bizarras especulações. Look, we have robots - drones, bombing people in the skyes, it's insane! I could never predict that in my book, disse. Apesar de interessante pela perspectiva global e pelo contexto em que estava inserida, não foi, fundamentalmente,  uma sessão muito diferente das inúmeras sessões de apresentação de livros onde os autores discorrem em grande detalhe sobre o seu trabalho esquecendo por completo o contexto maior em que estão inseridos. Inúmeras, mas nunca suficientes, digo eu como inveterado leitor.

Se calhar estou a ser demasiado exigente. Mas sinto, talvez por trauma meu, que a Ficção Científica requer uma quase constante legitimação externa, que mostre aos que a desconhecem e desdenham como entretenimento escapista a importância que nós, fãs e leitores, nela intuímos. A FC é campo privilegiado de reflexão sobre o papel da ciência e tecnologia,  de especulação informada sobre as linhas estruturais quase invisíveis que torneiam as modernidades contemporâneas (e a já longa história da FC passou por várias contemporaneidades), das transformações sociais e humanas trazidas por um mundo onde os atefactos tecnológicos fizeram explodir as possibilidades ao alcance dos nossos dedos, da busca prometeica e algo utópica pela contínua expansão das fronteiras do que sabemos. O seu amplo espaço de imaginário possibilita ferramentas únicas de analise, extrapolação e especulação informada. Talvez, creio, a melhor forma de comprovar esta intuição óbvia para os fãs conhecedores do género não seja ficarmo-nos pelo pormenorizado enumerar geek de bizarrias literárias e dissecação dos barroquismos da construção de mundos ficcionais. Contra mim falo, que também me comprazo como geek que sou (tecnicamente acho que pelos meus interesses académicos sou mais nerd) com livros cheios de ideias outré, conceitos de especulação sem limites, livros influentes e as intricacias dos mecanismos de world building. Mas olhar e analisar a FC vistas sempre de dentro ignora a sua pertinência face ao momento contemporâneo. Fala-se na morte da FC, tornada irrelevante por uma modernidade que a parece ter ultrapassado no futurismo galopante, quando se mantém relevante nas partes que não fossilizaram nas utopias tecnocráticas de outras eras.  Como provar a sua contínua relevância e pertinência a outros públicos? Nós,  fãs conhecedores,  sabemo-lo intuitivamente. Como passar esta ideia fundamental para lá do nosso  espaço conceptual? E, até, afirmar que o lado escapista é também fundamental como escapismo especulativo que nos leva a olhar mais além pelos olhos do imaginário? Os tempos complexos em que vivemos desafiam os futurismos luminosos com uma angústia de um presente desagregado que augura um futuro pouco prometedor. As utopias falharam, o positivismo converteu-se no neo-liberalismo destrutivo, e os leitores refugiam-se nas distopias, porque no fundo retratam o que sentem sobre o momento contemporâneo, ou fogem para passados míticos onde o mundo parecia menos complexo. Diria que, mais que nunca, correndo o risco de soar epocalista, a Ficção Científica tem uma palavra a dizer que ultrapassa fronteiras de géneros ou gostos.

A meio da conversa entre Fernandes e Barreiros houve uma intrigante oportunidade perdida, quando Fátima Vieira os questiona sobre as possibilidades dos media digitais. As respostas depressa resvalaram quer para o gosto pela materialidade do livro enquanto objecto quer para as intricacias da publicação digital. Mas percebia-se que a pergunta daria para outras especulações, apontando para a natureza conservadora das estruturas narrativas da Ficção Científica. As possibilidades técnicas do hipertexto podem trazer o lado especulativo e inventivo da FC estilhaçando a própria estrutura linear das narrativas, criando, por exemplo, diferentes percursos de leitura. Algo que a Banda Desenhada já experimenta com os motion comics, e que um livro como Night Film de Marissa Peshl fez muito bem, utilizando recortes e outros elementos arrastados da web para o espaço das páginas que eram elementos fundamentais da história. É um dos paradoxos do género, o afirmar-se como irreverente e criativo mas depender de formalismos conservadores. Tema este que daria pano para outras discussões, especialmente nas tentativas de restringir a especulação e os temas a um consenso clássico, rejeitando aberturas formais e temáticas ao grande mundo que está para lá do espaço de ideias anglo-americano. Nem na Gulbenkian nos livramos dos sad puppies.

Se a reflexão mais estrutural se mostrou elusiva, estas três horas de discussão à volta da FC souberam a pouco. A partilha de experiências foi riquíssima, e as perspectivas exteriores trazidas por Beukes e Fernandes um belíssmo retrato das possibilidades globais da Ficção Científica. Saí de lá com uma enorme curiosidade pelo trabalho de Beukes e Fernandes, vontade de reler Barreiros, e de pegar nas sugestões literárias afloradas durante a discussão. Sublinho também a abertura da Fundação Gulbenkian por ousar desafiar a discussão desta e outras literaturas de género como parte do programa Próximo Futuro. Mas não se fiem nas minhas palavras. O festival disponibilizou no Livestream as sessões do Próximo Futuro.

Edit: entretanto, se quiserem visões menos opinativas e mais descritivas sobre esta sessão rumem ao Rascunhos e ao Viagem a Andrómeda.

terça-feira, 14 de abril de 2015

The Last Passenger


Manel Loureiro (2015). The Last Passenger. Amazon

Nos dias que antecedem o rebentar da II guerra, os tripulantes de um navio de transporte de carvão fazem uma descoberta arrepiante. Encontram à deriva um navio de cruzeiro nazi, completamente abandonado apesar de haver comida quente nas mesas. Por entre o vazio e uma sensação de horror iminente, os marinheiros encontram um bebé abandonado. Décadas depois, uma jornalista de luto pelo recente falecimento do marido investiga a curiosa história da obsessão de um milionário que fez a sua fortuna na corda bamba entre o lício e o ilícito.

Acossado pelas autoridades, ao milionário apenas interessa a aquisição de um navio abandonado num depósito de ferro-velho militar. Restaurando-o à navegabilidade, embarca com a jornalista, um grupo de cientistas e os seguranças pessoais no navio que fora encontrado misteriosamente à deriva à cinquenta anos atrás. O objectivo é de recriar a viagem e descobrir a causa dos eventos misteriosos. De um lado, um dos cientistas que integra a expedição quer investigar a sua hipótese da causa dos misteriosos desaparecimentos em alto mar serem causados por singularidades espácio-temporais. Do outro, temos um milionário que não olha a meios para perceber as suas raízes, uma vez que é ele o bebé descoberto no misterioso cruzeiro. Levados pelo olhar inquisitivo da jornalista, mergulhamos no mistério de um velho navio amaldiçoada, onde debaixo de um estranho nevoeiro as barreiras do tempo se dissolvem e as pessoas do presente se descobrem a reviver os dramas do passado.

Descobriremos que a causa da maldição foi uma atrocidade cometida por um oficial nazi demasiado zeloso, que abateu a tiro refugiados judeus escondidos no porão. Um deles lança sobre o navio uma maldição cabalística com o último fôlego, condenando os passageiros a um ciclo eterno onde uma força malévola os obrigará a reviver os últimos momentos. Só a coragem da jornalista, auxiliada pelo fantasma do marido, quebrará no futuro o ciclo, desencadeando o acontecimento que levará o bebé a ser descoberto no passado.

Surpreendente, este romance do galego Manel Loureiro que oscila entre o thriller de mistério, a ficção cientifica e o horror. A premissa mexe com o lado fascinante dos mistérios nazis, ficando no ar quase até ao final se se tratará de algo tecnológico ou sobrenatural. A justaposição de passados e futuros que colapsará nos capítulos finais, bem como a paraciência dos mistérios de alto mar tocam na FC, enquanto que o ambiente a bordo do navio e a força misteriosa que causa todo o mistério mergulham no terror profundo.

A destoar fica a intervenção deus ex machina de um personagem fantasmagórico que irá auxiliar a heroína nos momentos mais cruciais e a forma como Loureiro resolve o fim do horror cíclico, quebrando a sequência de eventos de uma forma que causa um óbvio paradoxo temporal. Tudo está dependente da descoberta do bebé no navio, e quebrar o ciclo apenas fará com que ele se mantenha.

Sendo um livro de narrativa linear, em que depressa nos aperecebemos que caminhos seguirá a história, resta-nos esperar que o autor desvele as causas dos mistérios, algo que num crescente suspense só se tornará aparente no final. Durante a leitura fiquei impressionado com o ritmo e dinamismo, e especialmente com o carácter visual. A aventura desenrola-se como num filme, e quase diria que este livro daria sem precisar de grandes adaptações um divertido filme. Um surpreendente e leve thriller que mostra a vitalidade do género fantástico no nosso país vizinho.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

The Three-Body Problem


Cixin Liu (2014). The Three-Body Problem. Nova Iorque: TOR.

Isto para nós é novidade, mas para o público chinês Cixin Liu é um dos seus mais consagrados autores de ficção científica. A FC chinesa tem vindo a ganhar públicos no ocidente graças ao esforço de um punhado de tradutores e este livro, primeiro romance de FC chinesa publicado no mercado global, espanta pela sua qualidade. É uma daquelas raras obras que obriga leitores veteranos e endurecidos a não parar de virar a página.

No seu cerne Three-Body Problem é um romance de FC hard, na clássica e por cá já ultrapassada tradição campbelliana de conceito científico à volta do qual todo o enredo se desenrola. Esse é um dos aspectos que nos cativa. Na FC contemporânea esse espírito campelliano é quase anátema, lido como um recuo nostálgico ao passado. O ser assumido, neste livro, e sublinhado no posfácio do autor, torna-o intrigante e percebe-se que há uma dimensão interventiva na FC chinesa que nos meios ocidentais se perdeu.

No livro, a ideia-base é a do contacto entre civilizações extra-terrestres. Terreno muito batido na FC, mas Liu consegue dar-lhe um novo interesse. A descoberta da existência de civilizações extraterrestres ficará intimamente ligada a traumas decorrentes da violência da revolução cultural chinesa. Os alienígenas não têm as melhores intenções. Habitantes de um planeta cujo sistema solar alberga três sóis, estão sujeitos a ciclos aleatórios de destruição planetária. Os organismos evoluíram para ser capazes de sobreviver nos períodos de gelo profundo ou cataclismos solares, mas com o progresso civilizacional percebem que a solução para a sua sobrevivência se encontra no espaço. Quando encontram a Terra graças a uma experiência de radioastronomia chinesa, depressa traçam um plano inteligente de invasão. Sabendo que as distâncias relativísticas são implacáveis, temem que quando finalmente as suas naves chegarem à órbita os terrestres, de sobreaviso, tenham feito evoluir a sua tecnologia a níveis comparáveis ou superiores aos seus. Para evitar isto, atacam em duas frentes. Numa, socorrem-se de humanos sugestionáveis cujos traumas os levam a querer aniquilar a civilização humana. Entre ambientalistas desgostosos com a destruição de ecossistemas e cientistas amargurados pelo destino dos pais e os seus próprios problemas políticos às mãos dos guardas vermelhos nos tempos da revolução cultural o terreno é fértil.

A outra frente é um voo especulativo particularmente brilhante. A ciência extra-terrestre não é muito mais avançada do que a nossa, mas são já capazes de manipular as partículas elementares. Com isso, desdobram neutrões em n-dimensões, criando inteligências artificiais quase singularitárias com emparelhamento quântico. Enviadas à Terra, estas distorcem os resultados da pesquisa física fundamental, desconcertando e levando à loucura os físicos que, de repente, descobrem uma aleatoridade inesperada nas mais elementares leis da natureza.

Nenhuma conspiração fica por muito tempo oculta, e uma coligação internacional já está em campo para combater os alienígenas. O desespero é grande quando se apercebem que a ameaça vai de encontro ao cerne do desenvolvimento científico, mas quando se tem séculos para preparar a defesa muito ainda pode acontecer. E irá, certamente. Este é o primeiro volume de uma trilogia que termina com a curiosidade no máximo.

O toque old school do estilo de ficção científica de Cixin Liu dentro da hard SF dá a esta obra inesperada um gosto especial. Sabemos da vitalidade da FC numa China cujas instituições apoiam abertamente o género precisamente sob o ponto de vista de concepções de futuro. No gigante asiático, saído de um conturbado século XX a afirmar-se como potência global também na ciência e tecnologia, parecem sentir aquela necessidade de interpretar o presente à luz de futuros prováveis que caracterizou a FC euro-americana no seu passado recente. Ajuda o ser um texto magnífico, cheio de ideias, infodumps que fazem voar o imaginário e peripécias suficientes para manter o interesse na leitura. Este livro não passará despercebido, quer pela significância da afirmação da FC não anglo-americana no espaço de ideias global, quer, simplesmente, por ser uma leitura fantástica. Recupera aquele espírito optimista da Astounding na era de ouro da FC.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Scale-Bright


Benjanun Sriduangkaew (2014). Scale-Bright. Immersion Press.

Numa Hong Kong fluída os antigos mitos coexistem com a modernidade atrás de um fino véu de percepção. As gestas míticas, milenares, reflectem-se e continuam nos dias de hoje. Velhos deuses, antigos demónios, todas as criaturas de fábula cruzam-se e sobrevivem por entre os humanos. Basta um pequeno passo para se ver a cidade de fábula sobreposta ao real, onde as arquitecturas de betão se transformam em palácios feeéricos e nas ruas zigezagueiam coches e palanquins por entre o trânsito cerrado de automóveis. Mas esse passo só pode ser dado a convite de alguma das criaturas míticas, e há preços a ser pagos. É o que acontece a Julienne, jovem heroína deste livro. Orfã, é apadrinhada por duas tias que são muito mais do que aparentam ser. São a forma humana de dois mitos chineses, unidas num casamento de amor imortal, e a jovem tem no seu sangue ascendência destas ancestrais imortais. Esse toque do divino abre-lhe as portas do mundo que está para lá do olhar, aos demónios benévolos, monges caçadores e uma serpente que se tornará a sua grande paixão.

Fantasia urbana decididamente orientalista, Scale Bright pega de forma delicada nas criaturas míticas chinesas. Colide o real com o mítico, na estrutura clássica do périplo de uma personagem que através das suas aventuras nos mostra um mundo de fantástico. Delicado e orientalista, este livro é uma verdadeira chinoiserie em prosa bem medida, com uma forte vertente sexualizante expressa no assumido e militante lesbianismo das personagens principais.

O problema está em dissociar a obra da autora. Benjanun Sriduangkaew, escritora tailandesa, foi recentemente desmascarada como a mais vitrióloca troll das comunidades online de FC e fantástico. Não troll daquelas chatas e incómodas, mas das violentas, ameaçadoras e perseguidoras. Ao que consta, até autores portugueses se viram na mira das suas acérbicas palavras. Péssima ideia, que certamente colocará um ponto final na carreira literária. Suspeito que as portas da crítica lhe estejam irremediavelmente vedadas, que publicar novamente em nome próprio não dê origem a vendas, e não é difícil imaginar o que seria a sua presença em painéis de festivais literários. É pena. A FC e o fantástico precisam de vozes globais capazes de trazer outras sensibilidades e tradições culturais que contrariem o monolitismo anglo-americano. Esta voz, aparentemente calma e delicada a ocultar uma inquietante virulência online, calar-se-á, ou será silenciada com coros de protestos num futuro próximo.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Cold Equations

"I feel that the greatest appeal of science fiction is the creation of numerous imaginary worlds outside of reality. I’ve always felt that the greatest and most beautiful stories in the history of humanity were not sung by wandering bards or written by playwrights and novelists, but told by science. The stories of science are far more magnificent, grand, involved, profound, thrilling, strange, terrifying, mysterious, and even emotional, compared to the stories told by literature. Only, these wonderful stories are locked in cold equations that most do not know how to read."

Do posfácio do intrigante romance do escritor chinês Cixin Liu, uma supresa dentro daquela FC clássica campbelliana, com uma vertente intrigante do problema do primeiro contacto com civilizações alienigenas assombrada pelo espectro da história contemporânea chinesa. E com uma tirada destas a finalizar o livro, pode-se dizer que aquela FC clássica tecnicista, centrada na ciência, herdeira da tradição tecnocrática da Astounding sob o pulso editorial de John F. Campbell.

Cixin Liu (2014). The Three-Body Problem. Nova Iorque: TOR.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ficções

The Empties: É curioso ver a circunspecta New Yorker a publicar regularmente ficção científica. Sim, leram bem. Publicar Ficção Científica (e, fazendo a vontade ao Damien Walter, transrealismo). Volta não volta, mas com mais regularidade do que o esperado, saem peças de ficção que se enquadram perfeitamente no género. Não são dos nomes habituais nestas coisas, mas surpreendem. The Empties, de Jess Row, pega no clássico cenário pós-apocalíptico para nos mostrar até que ponto a normalidade tal como a entendemos depende de uma intricada rede económica assente na tecnologia. Mergulhamos numa zona rural, isolada do mundo após um acontecimento nunca explicado. Tudo o que nos é dado a saber é que um dia a energia eléctrica foi-se, e a partir daí o resto foi sendo abandonado. As comunidades isolaram-se, as pessoas ficaram encalhadas sem se poderem deslocar, e tudo o que tomamos como adquirido esfumou-se. Internet, vida digital, medicação, até o simples tomar um café e saborear um cigarro se tornaram uma memória do passado. Sem energia os motores do mundo pararam e os sobreviventes foram obrigados a reaprender as capacidades mais elementares. Termina com uma nota de esperança, com uma coluna armada do exército a pacificar as zonas isoladas e a reconectar a electricidade. Mas a mensagem fica. As nossas vidas, as rotinas diárias, os pequenos gestos em que não pensamos, estão dependentes de uma rede complexa de interligações cujo falhar é inconcebível, excepto no campo das distopias apocalípticas.

The Universe Flickers: Como parte da promoção de lançamento da tradução ocidental da obra de Cixin Liu a TOR tem publicado excertos do livro The Three Body Problem. Começou com King Wen of Zhou and the Long Night e juntou mais dois que podendo funcionar como contos compreendem-se melhor no contexto do livro, uma obra sobre o impacto de contactos com civilizações extra-terrestres. Neste The Universe Flickers o poder dos alienígenas é evidenciado pela forma como conseguem manipular constantes físicas como a radiação cósmica de fundo em microondas, significando que conseguem manipular o tecido do universo. Como o livro parece mexer com invasões, suspeito que o nível de interesse aumente. Quanto à ficção em si, faz sorrir por ser algo que para nós era típico na golden age: literatura clara, com forte pendor científico. Tem o seu quê de Arthur C. Clarke na forma como os seus personagens são óbvios peões para suportar a evolução narrativa.

Silent Spring: O terceiro excerto de Three Body Problem tem um arranque incómodo, recordando as injustiças cometidas em nome da pureza ideológica durante a revolução cultural chinesa. Uma experiência que marcará a protagonista do conto, filha de um físico torturado na praça pública por guardas vermelhos que o acusavam de ser reaccionário por ensinar a teoria da relatividade. Astrofísica, é reduzida ao trabalho manual em campos de reeducação na Mongólia, mas é cooptada por cientistas militares para trabalhar num projecto secreto: uma arma que, inadvertidamente, se tornará um farol que atrairá a atenção de olhos alienígenas para o planeta. Para lá da sua ligação à FC intriga pela forma como se atreve a retratar os desmandos da revolução cultural chinesa, olhando para o sacrifício da verdade científica no altar de uma pureza ideológica que foi, como hoje sabemos, o catalisador para um intenso jogo de poder no regime maoista.