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terça-feira, 2 de setembro de 2025

O Crescente Submerso


Emilio Garro (sem data). O Mediterrâneo em Chamas: O Crescente Submerso. Estoril: Editorial Salesianas.

Confesso, são estas surpresas que me fazem gostar do vasculhar alfarrabistas em busca de obras surpreendentes. Não que este livro seja excecional, bem pelo contrário. É uma ficção histórica de pendor didático e moralista escrita para jovens leitores. O interessante é o momento histórico que retrata, a batalha de Lepanto, onde o poder naval otomano foi travado por uma armada de coligação italiana (ao tempo, os vários estados que vieram a formar a Itália) e espanhola.

Não podemos esperar uma forte e profunda abordagem a este momento histórico, estamos perante um livro para jovens de pendor cristão. Como tal, os otomanos são representados como bárbaros decadentes sedentos de sangue e poder, sempre prontos a sujeitar os cristãos às piores sevícias. Por outro lado, os nobres espanhóis e italianos que comandam as várias flotilhas que compuseram a armada católica são exemplos de piedade religiosa, coragem e sabedoria militar. 

O livro culmina numa empolgante descrição da batalha, embora se alicerçe numa história de aventuras onde dois rapazes e as suas famílias vivem peripécias ao ser capturados pelos otomanos. A sua libertação e luta contra o inimigo são o artifiício narrativo que quebra o lado didático e descritivo do livro. 

Este é um livro do seu tempo, obra para jovens onde a principal preocupação estava na abordage histórica sob um ponto de vista religioso. Uma pesquisa mostrou-me que o autor foi escritor italiano de romances didáticos para a juventude de meados do século XX, e é nessa perspetiva que fiz a leitura. Como curiosidade, ao abrir o livro deparei com o carimbo da biblioteca do Seminário de Santarém. Numa outra vida, este pequeno tomo certamente empolgou jovens seminaristas com a sua mistura de piedade e aventura.

 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

A Serpente no Sotão


Pedro Medina Ribeiro (2025). A Serpente no Sotão. Lisboa: Saída de Emergência.

São uma excelente surpresa, estes contos góticos de Pedro Medina Ribeiro. Góticos no tom e estilo, não na atualidade. Este não é um livro- pastiche, a replicar velhas estéticas. A modernidade contemporânea está sempre à espreita nestas histórias. O classicismo está no tom literário e na forma elegante como recupera o velho estilo das histórias de assombrações, bizarrias sobrenaturais e outras que nos fazem temer o escuro.

Isto, mesmo nas histórias que se passam naquele passado novecentista que deu ao gótico literário o seu sabor a casas decrépitas, maldições misteriosas e dramáticas assombrações. É um estilo que Medina Ribeiro domina bem, e é um deleite de ler.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

BD Portuguesa: 39; Nightmare Tales; Aspirina.

Vítor Rocha (2024). 39 Salvador Pedreiro - O Rial do Pazo. CLPC/Associação José Afonso/Bedeteca de Beja.

Azares, pensaria a minha conta bancária caso tivesse sentiência. Numa recente viagem ao Porto descobri que tinha tido a pontaria de acertar num dia em que a Mundo Fantasma organizou uma feira de BD  independente. Não resisti, claro. Encontrei por lá alguns trabalhos notáveis, que não resisti a trazer comigo. Este 39 foi um deles. Esta narrativa gráfica ficciona algo muito real, a história daqueles que no Portugal pobre e amordaçado do estado novo, tiveram de emigrar para tentar ter uma vida melhor - emigrando a salto, passando a fronteira em locais ermos passados por passadores, arriscando a vida perante os esforços da GNR e Guardia Civil. A história traça-se sobre depoimentos e memórias, funcionando como forma de documentar elementos históricos que hoje não podem ou devem ser esquecidos.

Miguel Gonçalves, Damian Connelly (2025). Nightmare Tales. Nightmare Ink. 

Uma excelente surpresa, esta edição recentíssima (saiu em maio deste ano). Colige histórias curtas de terror muito puro e duro, com uma assombrosa ilustração a preto e branco. Miguel Gonçalves assina as histórias tenebrosas, cada qual um curto conto bem desenvolvido e eficaz. O trabalho gráfico de Damien Connelly complementa de forma excelente as histórias. O estilo é fortemente expressionista e implacável com o leitor, num efeito final muito belo sobre o leitor.


Filipe Duarte (2023). Aspirina. Associação Tentáculo/H-alt.

Já sigo o trabalho do Filipe Duarte há alguns anos, tendo acompanhado a sua evolução estilística, quer em capacidade gráfica quer narrativa. Este Aspirina colige vários trabalhos publicados na revista H-Alt, e funciona bem como uma amostra da sua evolução. As histórias vão da FC pura ao terror, escritas por autores como Carlos Silva e André Mateus, que tem sido o argumentista das aventuras editoriais mais longas. Uma boa leitura, a recordar o também notável trabalho da H-alt como criadora de espaço para novas vozes.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

O Crime de Aldeia Velha


Bernardo Santareno (1975). O Crime de Aldeia Velha. Lisboa: Círculo de Leitores.

Inspirado num crime que ocorreu no Portugal profundo das primeiras décadas do século XX, Bernardo Santareno lega-nos um texto fortíssimo, que explora de forma magistral as tensões sociais e pessoais no quadro de um país sentido com cultural, economica e socialmente atrasado. A história é bem conhecida, especialmente para os fãs de cinema de terror, graças ao filme homónimo que Manuel Guimarães realizou nos anos 60, uma adpatação fiel do texto de Santareno. 

Mergulhamos numa aldeia do interior, isolada, pobre, conservadora nos seus costumes. Uma aldeia onde uma jovem rapariga sofre a maldição de ser bonita, atraindo a atenção dos homens, e mal vista na terra, apontada como descendente de bruxas. Joana é uma personagem complexa, um excecional retrato de alguém que mentalmente não está bem, rejeitando de forma instintiva os avanços amorosos dos aldeões, gerindo as sempre intensas más linguas. Há traços de trauma, não ficou claro da minha leitura se este personagem sofreu abusos, o que ajudaria a explicar a atitude de por um lado, mostrar alguma solicitação, mas sempre rejeitar quaisquer atenções. Não é difícil cair nas bocas de um mundo pobre de ideias, arreigado de superstições, como tendo o diabo no corpo.

A competição pelas atenções da jovem leva a uma rixa entre dois jovens aldeãos, que termina na morte de ambos. As mulheres da aldeia tomam isto como sinal de possessão, falam de estranhos acontecimentos, dizem à boca cheia que a jovem está possuída pelo demónio. E esta, transtornada e com os seus traumas pessoais, acredita piamente que a sua incapacidade em ser normal é símbolo de ter um espírito malévolo dentro de si. O conflito interior, as tensões sociais e sexuais são palpáveis neste texto. Temos a sociedade supersticiosa, no fundo, ignorante e pobre, encarnada nas personagens das mulheres velhas que empurram Joana para a loucura. A tensão sexual vem do conflito entre os costumes conservadores, onde a mulher serve para casar, tem de ser submissa, mas é também objeto de desejo entre os homens que se gabam nas tascas de conquistas amorosas que na verdade não aconteceram. 

O desfecho é inevitável. Acicatadas por uma velhota que conhece os antigos ritos e costumes contra o sobrenatural, com a população a reclamar sangue e uma jovem incapaz de distinguir o real do imaginário, executam um antigo ritual de purificação pelo fogo. A lógica é medieva, o fogo purificará a alma da condenada, que graças à força da fé irá sobreviver ao ritual. Como é de esperar, tal não acontece, e a jovem morrerá queimada. Aqui, Santareno é magistral. Perante as evidências, as culpadas ganham consciência do seu ato, e optam por uma negação consciente. Sabem que cometeram um crime, uma injustiça, mas fecham-se num segredo social, assumindo uma morte por fraqueza cardíaca. Todos sabemos ser mentira, e sentimos a cumplicidade da turba de aldeões neste segredo que passará a ser sussurrado, para que a vida continue.

Há lampejos de alguma modernidade nesta terra esquecida. Nos dias em que a ação decorre, um dos seus filhos regressa à aldeia como prior. O jovem padre quer ajudar os seus, oferece-se para servir a sua terra, e é claramente a força esclarecida da terra. Um conhecimento e abertura social dentro dos limites da igreja como instituição tradicional, mas já a deixar entrar alguma modernidade no isolamento dos aldeãos. Mas o jovem padre falhará nesta sua primeira missão. O poder das superstições obscurantistas, das tradições faladas entre os aldeões, é mais forte do que os seus apelos à bonomia cristã e aos óbvios sinais de saúde mental. Por mais que tente, falhará na sua missão de proteger a jovem aldeã. 

E nisto, será também testado nos limites do seu sacerdócio. Homem jovem, não é indiferente aos encantos da rapariga. Mergulha num intenso conflito interior entre sentimentos de paixão que encara como pecaminosos, enquanto tenta lidar com a pressão de uma população supersticiosa que demoniza a jovem. No final, que novamente refiro como magistral, a sua impotência pessoal e institucional é colocada a nu pela forma como cede, assustado, perante a pressão da turba. Horrorizado pelos acontecimentos, frustrado pela sua incapacidade em travar o crime, revoltado contra o barbarismo dos seus conterrâneos, quer fugir, afastar-se. Mas a sua mãe, uma das envolvidas no ritual mortíferio, manda-o ir descansar, dizendo-lhe que no dia seguinte é dia de missa matinal. 

A peça termina aqui, mas nós não duvidamos que no dia seguinte este padre dê a missa aos aldeões, e que o continuará a fazer por muitos e longos anos, vivendo com peso deste crime, o segredo violento que a aldeia sempre negará, mas pesará no espírito dos seus habitantes.

Na vida real, a história acabou com a condenação de alguns dos homicidas. Na ficção, Santareno aflora a violência oculta sob a aparência de paz bucólica campestre.

terça-feira, 10 de junho de 2025

BD Portuguesa: Ubirajara; Nos Mares da China; A Conquista de Lisboa

José Ruy (1982). Antologia da BD Portuguesa #1 - Ubirajara. Editorial Futura.

Vindas das páginas da clássica publicação infanto-juvenil Cavaleiro Andante, as histórias contidas neste Ubirajara mostram a evolução da capacidade narrativa e gráfica de José Ruy, um dos nossos maiores nomes da história da BD portuguesa. Tendo sido originalmente publicadas nos anos 50, são aparentes as convenções da época. A banda desenhada funciona como forma de narrativa ilustrada, onde o texto tem a primazia e as vinhetas são meramente ilustrativas. Não há diálogos, apenas uma narração na terceira pessoa em legendas, e o desenho não se assume como elemento narrativo. As ilustrações mostram a capacidade gráfica e o excelente traço de Ruy. Este volume colige a história que lhe dá título, a partir de uma lenda dos nativos brasileiros, e inclui também A Mensagem, passada nas lutas entre romanos e cartagineses, com uma aventura sobre um soldado celtibero que reúne tribos autóctones na luta contra o invasor romano; Na Pista dos Elefantes, uma aventura passada na mítica África colonial das caçadas; e Vida Romanceada de Guttenberg. Em termos gráficos, as primeiras histórias estão mais bem conseguidas, dada a preferência de José Ruy por motivos históricos. 


Vitor Péon (1985). Antologia da BD Portuguesa #13 - Nos Mares da China. Editorial Futura.

Confesso, conheço mal o trabalho de Vitor Péon, outro dos decanos da BD portuguesa. Descobrir a espetacularidade do seu traço foi uma das virtudes desta leitura. A capacidade gráfica é impressionante, e as vinhetas explodem de ação visual, ricas, elegantes, um deleite de ler. O estilo narrativo é clássico, ou seja, a imagem serve de mera ilustração ao texto. As histórias situam-se no espectro da visão histórica sobre o passado apresentada às crianças nos anos 50 e 60, mas não deixam de ser divertidas, a nossa história é uma mina mal explorada de ideias para ficções de aventura. O destaque maior vai para o traço, soberbo, do autor.


Pedro Massano (1997). A Conquista de Lisboa I. Lisboa: Montepio Geral.

Um livro clássico, que visa contar a história da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques. Este volume não chega lá, ficando só pelo detalhar da conquista de Santarém, bem como da contextualização do apoio dos cruzados. A reconstituição histórica é cuidada, quer ao nível narrativo quer visual.

terça-feira, 27 de maio de 2025

A invasão dos marcianos


Matos Maia (1996). A invasão dos marcianos: + 3 "Fantasías radiofónicas". Lisboa: Dom Quixote/SPA.

É notória a história de Orson Welles e a lendária emissão radiofónica da peça de teatro baseada na Guerra dos Mundos que causou pânico nos Estados Unidos dos anos 3o. No final dos anos 50 o português Matos Maia repetiu a proeza, com os mesmos resultados de audiências crédulas que não percebiam que estavam a ouvir uma peça teatral e não despachos noticiosos. Quer Welles quer Maia conseguiram o que conseguiram por terem sido capazes de olhar para a rádio, perceber a sua gramática inerente, e ir para além do texto, construindo as peças a partir da forma de trabalho radiofónica, e não com teatro tradicional. Não é só o trabalho de atores ou a sonoplastia, foi o adaptar da narrativa às formas específicas que a rádio trazia. Welles garantiu o sucesso, Matos Maia teve direito a uma conversa com a PIDE, certamente pouco agradável. 

A história da emissão pode ser lida aqui: https://www.classicosdaradio.com/InvasaoMarcianos.htm, e vale bem a pena ouvir gravações da emissão original, como por exemplo esta: https://www.youtube.com/watch?v=dTqKfP6xKyw. Ao ouvir, percebemos porque é que teve o efeito que teve, e também a qualidade da adaptação.

Este livro não nos fala dessa história, mas traz-nos o guião de Matos Maia, adaptação bem congeminada do clássico de H. G. Wells. Colige ainda o guião de outras peças do autor: Quando os Cientistas Sonham, outra variação sobre a Guerra dos Mundos, menos mortífera e a terminar no clássico artificío do sonho do protagonista, que acorda e descobre que tudo não passou de um delírio; Um Naufrágio... no Sara, peça que começa como uma reportagem-narrativa dos momentos do naufrágio de um paquete português ao largo da Líbia e, no momento mais crítico de uma peça em crescendo de emoção, é interrompida pelo hilariante pormenor metaficcional dos radialistas intervirem a discutir o seu métier, como se tivesse havido um erro no ensaio; e A Grande Guerra do Próximo Século, um texto ecológico e apocalíptico que, francamente, me pareceu pouco coerente. 

Matos Maia ficou para a história como um dos grandes radialistas portugueses, mas esta vertente do seu trabalho, estas peças radiofónicas, mostram também algo mais raro por cá, um criador de obras de ficção científica usando a rádio como estrutura narrativa.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Haverá um Amanhã?


Véte (2020). Haverá um Amanhã? Lourinhã: Escorpião Azul.

Tenho um problema constante com a maioria das edições da Escorpião Azul, que é o de achar que são livros que precisavam de afinação a nível gráfico e narrativo. A grande maioria do que publicam sempre me pareceu mais estética de fanzine do que trabalho de BD mais maduro. Mas elogio, sempre, o seu papel a dar espaço editorial a uma grande diversidade de autores, dos mais novos aos veteranos, mesmo que grande parte dos livros sejam de um óbvio amadorismo (e outra coisa dificilmente seria, dado que vivemos num país onde dedicar-se à produção cultural é necessariamente uma atividade de tempos livres). Não quero dizer que sejam maus livros, e este é um bom exemplo disso. Um pouco rígido ao nível gráfico, com um traço que revela vontade de criar detalhe mas falta de capacidade para isso, e uma divertida e bem construída história de ficção científica, que não tem medo de mostrar as suas influências. Apreciei a leitura, não sendo excecional, é divertida e bem construída.

sábado, 3 de maio de 2025

Da Luz Na Qual Nasceste


M.S. Rosa (2024). Da Luz Na Qual Nasceste. Edição de Autor. 

Confesso que esperava gostar menos deste livro do que gostei. Que me perdoe o Pedro Cipriano, cuja editora alimenta as minhas caçadas de leituras no fantástico português em eventos, mas este foi o único livro que trouxe do Festival Contacto. A culpa disso reside numa certa falta de tempo minha, que os caminhos da robótica andam profícuos e interessantes, e uma acumulação pouco salutar de pilhas a aguardar leitora. As viagens têm sido bastantes, e tenho o curioso condão de tropeçar sempre com alfarrabistas ou feiras do livro nas terras por onde passo. Aquando do Contacto, tremi perante a ideia de adicionar mais livros à pilha, mas lembrei-me que daqui a uns meses teremos Fórum Fantástico.

Agora, uma confissão incómoda. Foi o TikTok que me levou a pegar neste livro.  De volta e meia chega à minha linha temporal vídeos da autora, e confesso que os acho encantadores, apesar de distarem anos luz das minhas realidades e preferências. Tem um foco numa visão acolhedora da fantasia, com aquele entusiasmo e inocência da juventude (bolas, escrevo isto e dá-me uma sensação de profundo geriatrismo), a falar das suas leituras, de divindades pagãs com pendor lusitano, e do seu livro. É encantador, e encontrando-a com o seu espaço no Festival obrigou-me a trazer comigo o seu livro. Um dos aspetos que mais me interessa no fandom português é a capacidade de acolher e apoiar vozes novas, e não conheço melhor forma de o fazer do que ler os seus livros.

O livro surpreendeu-me. Em parte, era o que eu esperava - uma história que destila as influências estéticas e literárias de uma jovem autora. Colocar esta questão assim de chofre é injusta. Ao contrário de muitos outros livros desta jaez que li, se se notam as influências estéticas, este não é de todo um pastiche, ou uma elaborada fan fiction que imita iconografias, estéticas e estruturas narrativas. Senti a voz pessoal da autora a afirmar-se, a criar e elaborar o seu próprio mundo ficcional. A estética é a da fantasia, com os seus elementos generalistas, mas a criação é muito pessoal. 

A leitura transportou-me a um mundo ficcional próprio, bem elaborado e com uma sensação de expansão. Não é de todo a típica clonagem das fantasias medievalistas que costuma ser habitual nestas literaturas, por parte de criadores mais jovens (ou menos jovens, escrevo a pensar no Filipe Faria e outras vozes mais veteranas, mas confesso, estando os meus pés assentes na Ficção Científica, irei sempre olhar com viés para a fantasia).

O enredo é enganadoramente simples. É essencialmente linear, seguindo a estrutura da gesta de uma heroína que se vê apanhada por forças incompreensíveis, mergulhada em conspirações tenebrosas, e irá deparar-se com a preciosa ajuda de personagens peculiares. O livro passa-se num futuro próximo onde tecnologia e magia coexistem, pelas piores razões - um ritual que visava exterminar a humanidade e substituí-la por uma miríade de seres mágicos, denominados Fatai no corpus mítico do livro, foi apenas parcialmente bem sucedido. O mundo transformou-se, mas os traços humanos não desapareceram de todo, bem como a sua memória.

O ritual centra-se no amor, necessita da união de duas almas apaixonadas para se concretizar, e as aventuras da jovem personagem envolvem o descobrir do porquê dos seus poderes, bem como o reencontro com a rapariga amada. Uma reunião apaixonada das duas amadas irá encerrar o ritual, com resultados fatídicos para a humanidade, mas a cegueira da paixão impede a jovem cujas aventuras seguimos de compreender isso, apesar de tal se tornar patente para todos os personagens ao longo do livro. 

É aqui que este ganha uma dimensão inesperada. Sem querer fazer grandes spoilers, para não assustar aqueles que lêem livros primeiramente para saber como termina a história, digamos que a premissa de amor do ritual obriga a uma igualdade entre partes. Ao mostrar que tal não acontece, este livro sai de uma típica fantasia de rituais e aventuras e torna-se algo mais profundo, uma metáfora sobre desequilibrios amorosos, relações tóxicas, a violência emocional dos primeiros amores e a necessidade de auto-descoberta que se faz de encantos e desencantos. Esse abanão, que se torna muito claro no final do livro, não o esperava, e tornou-o uma leitura muito mais interessante pela capacidade da autora em nos dar este substrato complexo sobre o que parecia ser uma história linear.

Há uma forte componente activista na obra. As personagens são não-heteronormativas, e há um esforço consciente no uso de linguagem inclusiva. Esta, soa-me sempre deselegante e aqui não foi exceção. No primeiro ponto, dou crédito à autora por ter sido capaz de escapar ao habitual tom de preleção e sermão que torna boa parte das ficções onde as questões de sexualidade e género uma chatice de ler, demasiadas vezes mais manifesto do que literatura. Estas são um elemento essencial da história, mas o livro vive para além disso. Confesso que como membro de uma geração onde este tipo de afirmação não era muito bem vista, sorrio quando vejo a naturalidade e a vontade com que esta nova geração luta por um mundo mais aberto e compreensívo, apesar de todas as forças demasiado visíveis em contrário.  Faz todo o sentido, evoluímos com afirmação, e a construção de ficções segue naturalmente essa tendência. O que não faz sentido é o imobilismo conservador e a repetição à exaustão de estéticas que quando surgiram foram interessantes e vibrantes, mas que sem evolução de tornam bafientas.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Mensageiro do Espaço

Luís de Mesquita (1957). Mensageiro do Espaço. Lisboa: Edições Sampedro.

Visitei recentemente a nova loja da Castro e Alves na Almirante Reis, mesmo em frente à Kingpin Books. É um espaço amplo que se está a encher depressa de livros antigos, como bom alfarrabista, mas faz concessões às estéticas instagramáveis com zonas arejadas bem decoradas. Não é uma crítica. O espaço é agradável, e o acervo enorme. Tem de tudo para todos, e um forte acervo de livros em línguas estrangeiras. Com sou daqueles que me rendi aos alfarrabistas para encontrar curiosidades ou livros antigos que me despertam a atenção (particularmente nas vertentes de história, ficção científica, futurismo, informática e literatura), encontrei nos escaparates muita variedade, e inevitavelmente boas curiosidades, a bom preço.

Esta foi uma delas. Do que conheço sobre a história da FC em português, não me recordo de menções a este autor. Ignorância minha, certamente (este artigo no Baú da FC fala-nos deste, e de outros livros de FC clássicos). Mensageiro do Espaço é uma daquelas raridades curiosas, um romance de ficção científica escrito por Luís Mesquita, editado numa série de livros dedicados à aventura e romance por uma editora hoje desaparecida.

Peguei no livro sem esperar muito dele. Se o livro é obscuro, haverá razões para isso, se bem que quando se trata de FC em português a própria pertença ao género garante o esquecimento. Fui surpreendido pela leitura. Não uma obra fabulosa mas esquecida, é até um livro muito corriqueiro, algo banal e datado das suas temáticas, mas não deixa de ser uma sólida obra de ficção científica, na forma como se entretece e especula.

A história é-nos contada por Carlos, um cientista amador que prefere viver em relativo isolamento numa quinta na serra de Aire, a fazer observações celestes. E é mirabolante no seu alcance. Conta como, durante uma noite de observação, viu o que lhe pareceu ser um meteorito a cair nas proximidades. Ao investigar, depara-se com os destroços de uma nave alienígena, e ajuda o seu tripulante a salvar-se. Começa aqui uma aventura-périplo vivida pelo personagem. O alienígena revela-se ser um humano do planeta Vénus, observador que faz parte de uma missão das humanidades venusiana e marciana unidas, que vigiam com preocupação o desenvolvimento da civilização terrestre enquanto aguardam a oportunidade de nos trazer para o seio das humanidades do sistema solar.

Notem que não escrevi que é boa ficção científica, daquela que equilibra o questionar científico com a narrativa, apenas que é um livro interessante na sua abordagem.

Segue-se a inevitável visita à civilização venusiana, a aceitação do terrestre como um proto-embaixador planetário, que seduz a elevada sabedoria das civilizações alienígenas com a sua capacidade moral e gosto pelo conhecimento, precisamente as qualidades que creem faltar à humanidade. Somos mergulhados em descrições da civilização venusiana, das suas cidades, sociedade e tecnologias. Temos vislumbres de outras civilizações para lá do sistema solar. Há ainda um salto a Marte e um pequeno périplo pelo sistema solar, com uma alunagem e uma desventura quase fatal em Júpiter. E, claro, não podia faltar uma história de amor entre o garboso terrestre e uma bela jovem venusiana.

Não sendo de todo uma obra de Hard SF (comecemos por "humanidades estelares"), mostra que está bem inserida nalgumas temáticas da época, explorando ideias comuns à FC, quer a pulp, quer a mais erudita. Encontramos a preocupação perene com os maus caminhos da evolução humana, com a ameaça das armas nucleares e da tecnologia ao serviço da violência como moralmente reprováveis e ameaça à sobrevivência humana. Temos as civilizações evoluídas que nos vigiam, preocupadas, aguardando o momento em que nos mostramos capazes da libertação das pulsões negativas e, com isso, assumir um devido lugar. As descrições das sociedades extraterrestres são representativas das calmas utopias clássicas, civilizações unidas e prósperas, que vivem em equilíbrio com o seu ambiente e desenvolveram tecnologias avançadas que lhes permitiram construir sociedades pós-escassez. Os seus habitantes, pacíficos, vivem em harmonia e dedicados ao progresso científico e cultural. Os seus sistemas políticos baseiam-se na liderança sábia de colégios de anciãos, cuja bonomia dita os destinos das sociedades. Parte da FC clássica vive do entrecruzar destes ideários.

Há uns pormenores curiosos que destaco, claramente saídos do viés cultural do autor. O papel da mulher nas humanidades estelares é recatado e submissivo (cm algumas críticas pouco veladas à liberdade excessiva das mulheres contemporâneas do autor). Talvez o mais curioso, a fazer-me recordar a história sobre a veneração de Vasco da Gama perante divindades hindus que assumiu serem representações locais da virgem Maria, seja a visão de uma religião universal professada por todas as humanidades do espaço, claramente o cristianismo, embora nunca seja referido como tal, com a veneração da figura do salvador. Outra nota recai sobre a ideia de humanidades, Mesquita concebe os seres extraterrestes como essencialmente humanos, embora se atreva a imaginar alguns casos em que a evolução biológica foi forçada a afastar-se do nosso normativo biológico por via das condições planetárias.

Sem ser um grande clássico, este livro é uma boa surpresa, e também boa adição ao meu acervo dos primórdios da Ficção Científica em português. Vale o que vale, não é perfeito e está fortemente datado, mas é dotado de uma candura que seduz.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Privacidade 404


Filipe Cruz (2024). Privacidade 404. Enough Records.

Escritos com um propósito didático, de alerta para as questões da privacidade, estes contos de Filipe Cruz lidam com um lado especulativo bem informada. Imaginam sociedades onde a perda de privacidade é a norma, comportamento normalizado pelos cidadãos e incentivado pela economia e poder político. Sociedades onde quem quer manter o seu espaço individual é quase pária, e visto como empecilho e eventual criminoso. 

Num dos contos, aborda-se a forma como os sistemas de vigilância socialmente impostos como para bem de todos se tornam intrusivos. Noutro, olhamos para a perspetiva do outro lado, do ponto de vista de um hacker que se esforça por viver à margem de uma sociedade onde tudo é transparente. 

Este livro ainda conta com algumas reflexões e dicas úteis sobre as problemáticas da privacidade na era digital. Pode ser lido, em vários formados, na Enough Records: https://enoughrecords.scene.org/release/enrtxt010.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Ficções

A SPINNER IS NOT A DEEPDIVER: Neste curto conto, Luís Filipe Silva oscila-nos entre o deslumbre com os vastos panoramas cósmicos e uma certa banalidade das operações de manutenção técnica. Curto e sedutor, a despertar a curiosidade para um texto mais longo.

A FORTALEZA: João Ventura é um mestre do conto curto, e sempre muito acutilante nas suas visões sociais. Este pequeno conto arrepia, por partir de uma base real, atrevendo-se a tocar no tema dos migrantes que enfrentam a morte no mediterrâneo, em busca de uma vida melhor numa Europa que lhes cerra as muralhas.

Anjos Esgaravatando por Alfinetes: Uma pequena vinheta que nos recorda a prosa complexa, intencionalmente gongórica, de David Soares. O horror aqui vem mais da sensação de leitura, do invocar advindo do peso das palavras, do que da narrativa em si. Um conto fortemente impressionista, onde as palavras despertam sensações de negritude.

The Ancient Engineer: Cyberpunk na antiguidade, com Bruce Sterling a inspirar-se na sua amada Turim para nos dar um conto que cruza computação mecânica, império romano, o poder da engenharia e o ainda maior poder das superstições.

A COG IN THE MACHINE: Luís Filipe Silva anda a preparar alguma. Está a usar a newsletter do Bruno Soares para nos mostrar fragmentos de algo que se vislumbra ser ambicioso. Pela minha parte, estou intrigado.

Inside the House of Wisdom: Um futuro de esperança recorda o passado violento, num conto que toca no genocídio palestiniano às mãos dos governantes israelitas.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

O Breve Passado


Miguel Santos (2023). O Breve Passado e Outras Histórias. Lourinhã: Escorpião Azul.

Se a ficção científica portuguesa já é em si criatura rara, imaginem em Banda Desenhada. Este O Breve Passado é uma excelente surpresa, de um autor que se atreve a trabalhar no género. As histórias cruzam ficção científica clássica com fortes doses de afrofuturismo lusófono, o que as torna mais intrigantes. Recordo que o Rogério Ribeiro nos falou deste livro no Fórum Fantástico de 2024, observado que Miguel Santos equilibra muito bem e de forma transparente as suas influências literárias e estilísticas, e sublinho, essa é uma das características do livro. Não significa que as histórias sejam um pastiche, bem pelo contrário, o estilo, quer narrativo quer gráfico, é muito próprio, é nas temáticas, detalhes e construção narrativa que se percebe a mescla de inspirações. As visões são em simultâneo críticas e utópicas, do cyberpunk ao afrofuturismo, com algumas incursões num fantástico mais surreal.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

E se Angola Tivesse Proclamado a Independência em 1959?


Jonuel Gonçalves (2018). E se Angola Tivesse Proclamado a Independência em 1959?. Lisboa: Guerra e Paz.

Um intrigante exercício de especulação e história alternativa, com que me deparei naqueles acasos de papelaria. O autor, ligado à história e, pelo que percebi, alguém que esteve envolvido na luta pela independência de Angola, faz uma pergunta simples: e se, em vez dos longos anos de guerra colonial, seguidos da guerra civil, os movimentos independentistas angolanos tivessem arriscado um golpe de mão e conseguido avançar com a libertação do território?

É um curioso "e se", que assinala que o território colonizado estava defendido por forças complacentes, mal armadas e em número insuficiente para travar uma guerra, algo que na realidade histórica veio a mudar nos anos seguintes, para mal de todos. No cenário especulativo, um pequeno grupo de rebeldes angolanos consegue assaltar esquadras e lojas de armeiros, adquirindo armas suficientes para neutralizar as débeis defesas coloniais e ocupar as principais cidades angolanas. Os colonos resistem, e uma intervenção metropolitana de pára-quedistas, com apoio sul africano, conseguem segurar territórios no sul do país.  Mas as tensões geopolíticas, o risco de confrontos com a União Soviética, os novos países africanos independentes e o apoio indiano levam a discussões nas Nações Unidas, e a uma posição de força americana, que desloca soldados para a base das Lajes, num sinal ao governo salazarista que se arrisca a perder mais do que a colónia angolana caso não aceda à intervenção da ONU e  aceite os resultados de um referendo que irá decidir o futuro do território.

Esta história é contada num ritmo telegráfico, por escolha estilística do autor, que pretente simular relatos e relatórios. Não é nenhum empolgante portento narrativo, mas mantém o interesse de quem aprecia voos especulativos. O interesse aguça-se por ser uma obra de fição especulativa que olha para a história recente, quer angolana quer portuguesa.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Ficções

A Trip to the Museum: É sempre bom ler Luís Filipe Silva, e já há muito que não nos brindava com um conto original. Esta visita a um museu que preserva, com todo o detalhe, as artes da guerra, é de uma fina ironia negra, um comentário sobre a capacidade humana de fazer mal a si própria.

The Beachcomber of Novi Kotor: Bruce Sterling passou de um dos fundadores do cyberpunk a uma voz que agora se dedica a um certo eurofascínio, deslumbrado com as possibilidades e impossibilidades das zonas entre o norte de Itália e os Balcãs. Este conto insere-se numa curiosa estética de cyberpunk maker em modo cli-fi apocalíptico, entre os resíduos ideológicos do capitalismo e a apropriação da tecnologia de formas não concebidas em laboratório de investigação.

Azalea: a science-fiction story: Um regresso ao cli-fi de Paolo Bacigalupi, num conto que cruza desigualdades com um futuro arrasado pelo aquecimento global combinado com a decadência política em fundamentalismos religiosos e ideológicos. A sua mensagem atinge com a força de um martelo pneumático: porque é que não se fez nada quando ainda se ia a tempo?

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O Caderno da Tangerina


Rita Alfaiate (2002). O Caderno da Tangerina. Lourinhã: Escorpião Azul.

Confesso-me fã do trabalho de Rita Alfaiate. O seu estilo gráfico é espantoso, muito pessoal, elegante e expressivo, quer em registos de cor quer em preto e branco. As suas histórias são de uma complexidade inesperada, partem de conceitos simples que se desenvolvem numa não linearidade inesperada que não teme o ambíguo. Nesta história aparentemente infantil, os monstros são metáforas reais da solidão das crianças inadaptadas. Caminhando sempre na linha da ambiguidade, tanto nos deparamos com monstros reais como com as projeções dos temores individuais. Um livro assombroso, como esta jovem criadora nos tem habituado.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Como sobreviver depois da morte


André Costa (2024). Como sobreviver depois da morte. Lisboa: Quetzal.

Este livro foi das melhores, e mais aleatórias, surpresas literárias que tive este ano. De todos os sítios possíveis, cruzei-me com ele nos escaparates de um super-mercado da zona oeste (mesmo sendo um típico "livros é nas livrarias", a minha bibliofagia leva-me sempre a espreitar as geralmente sofríveis ou modistas ofertas entre os legumes e os produtos de higiene). Atraiu-me a capa, uma belíssima variação de Lia Ferreira sobre o Enterro do Conde de Orgaz, uma das obras que me fez perceber que sofria do síndrome de Stendhal quando a vi ao vivo na capela de Toledo que a alberga, e que dá aqui a base a uma capa que, depois de se terminar o livro, é ainda mais brilhante pela forma com interpreta na perfeição a narrativa.

O livro transporta-nos a Sulfúreo, uma aldeia perdida no interior profundo com o seu misterioso segredo: os mortos, lá, não morrem verdadeiramente. Não que fiquem dotados de vida eterna, se transformem em assombrações ou em zombies, apenas, ao morrer, os corpos dos filhos da terra desaparecem, e voltam a ser vistos regularmente a passear nos seus locais favoritos, falando e dando conselhos aos vivos. 

É um mistério, sempre aludido e nunca revelado, que dá o tom ao livro. Terra onde o tempo parece passar de forma diferente, mais devagar e longínquo, a aldeia também encerra uma maldição. Mas não esperem que esta tem algo a ver com mortos vivos ou algo do género. Este é um daqueles livros cuja leitura desafia constantemente as expectativas, e este é um dos seus principais desvio. 

As serranias em volta têm o infortúnio de serem ricas em minério de volfrâmio. Algo que traz à aldeia empresas mineiras, mas um desenvolvimento que se traduz em exploração laboral e na destruição progressiva do espaço natural, sujeito às depredações de uma engenharia que não se preocupa com o ambiente. Se a terra cresce, com mais casas, maiores igrejas, os espaços naturais que lhe deram o seu carácter são destruídos, contaminados, soterrados por debaixo da cupidez financeira. Os ciclos económicos trazem, quando estão em baixo, pobreza, mas quando estão em alta, a riqueza não chega aos pobres operários, condenados a arriscar a vida por tostões. 

Ao longo do livro, assistimos à degradação progressiva do espaço da aldeia, que começa por nos ser mostrada como uma aldeia isolada dos finais do século XVIII, com os seus costumes e superstições, mas também um local de convivência entre natureza e homem, à progressiva modernização que traz consigo a contaminação e a desertificação espiritual.

Sente-se este com o grande tema do livro, refletindo após a leitura. Mas desenganem-se, como disse, este livro desafia as expectativas dos leitores, e a progressiva decadência do espaço é na verdade pano de fundo para um conjunto de histórias encadeadas, focadas nas vidas de várias gerações de famĺias que sempre lá viveram. Seguimos os seus sonhos, amores, desvelos, ilusões, paixões, desilusões, sempre num sedutor registo de suave realismo mágico. Os mortos vão fazendo as suas aparições nas vidas dos vivos, que iniciamelmente parecem envelhecer muito lentamente, mas à medida que o mundo isolado da aldeia se aproxima do resto do país, das modernidades contemporâneas, o tempo acelera, normaliza-se, e as vidas intemporais tornam-se breves.

Este livro é também uma viagem social sobre a nossa história como país, lida pela visão do impacto de acontecimentos e regimes vinda do país profundo. Inicialmente isolada pela distância, e com isso salvaguardada das convulsões polítícas e sociais, das guerras, golpes de estado e regimes, a aldeia acaba por se tornar um típico símbolo do portugal cinzento e sacripanta estado-novista, completo com as pessoas de bem que vivem à custa do suor do povo. Nem o colonialismo, primeiro como sonho idílico e depois como realidade dura, foge a esta leitura da nossa história.

Pensei, no início da leitura, que estava perante um belíssimo exemplo de ficção fantástica portuguesa, mas o romance extravasa este limites. Os seus recortes sobrenaturais tocam na nossa profunda tradição, as vidas dos personagens têm toques de realismo mágico, mas a narrativa desbrava o caminho que vai de um profundo matagal de isolamento aos danos trazidos pelo desenvolvimento descuidado. Apesar de toda a magia, a história é trágica, as vidas das personagens duras e amargas, mesmo quando parece haver esperança. No fundo, uma metáfora do que é ser povo, em Portugal.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Crónica de D. João I


João Santos, Filipe Abranches (2024). Crónica de D. João I. Levoir.

Convenhamos que o texto de Fernão Lopes, uma das obras seminais da historiografia portuguesa, não é dos mais fáceis de adaptar. Transformá-lo numa história ultrapassaria em muito o âmbito das páginas definidas para esta coleção, e nota-se no trabalho de argumento a vontade de sintetizar o texto original à sua essência. A opção foi transformar a obra em grandes quadros sintéticos, com o trabalho de ilustração a sublinhar o conteúdo das palavras.

Filipe Abranches ilustra, e o seu estilo gráfico não é confortável. O seu registo não se resume à mera ilustração, dando um caráter expressionista à vertente histórica. Não consigo desassociar as escolhas gráficas da interpretação e influência vindas da ilustração e pinturas decorativas da segunda metade do século XX português, que cruzavam o modernismo suavizado com a exaltação de uma visão restrita da história portuguesa. Algo que noto nas composições das pranchas e nas escolhas de cor. Claro, uma eventual influência que o desenhador tritura sob a sua visão pessoal, dando-lhe um forte cunho expressionista.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A Conversão dos Nus


Nuno Ferreira (2024). A Conversão dos Nus. Vagos: Divergência.

Não resisti à apresentação deste livro no Fórum Fantástico 2024 (que não foi muito concorrida, infelizmente). Os livros no Nuno são para mim uma fonte de frustração. Confesso, já tentei várias vezes ler o Embaixada, mas ainda  não pegou. Não leiam isto como um comentário às suas capacidades literárias, é um escritor com fãs e um espaço bem marcado, é mais uma assunção da minha incapacidade de lidar com a fantasia épica. Bem tento, mas não é mesmo a minha cena.

Neste romance, o tom muda, e Nuno Ferreira oferece-nos uma história que cruza o romance histórico com fantástico. O destaque é dado ao Portugal sob domínio Filipino, e aos tempos de início da revolta que nos restaurou a independência. O lado fantástico é assegurado por manifestações de religiosidade que colocam o corpo e alma dos iluminados pela chama divina a nu.

A ação passa-se na aldeia fictícia de Mouta Alta, usada para elaborar um convincente e bem estruturado da vida no Portugal seiscentista. Acompanhamos um assassino a soldo, que leva a encomenda de matar o padre da aldeia, mas o enredo complica-se quando percebemos que o assassino nasceu na terra onde volta para matar. O resto, é uma sucessão de intrigas complexas, onde ninguém é o que parece, com consequências destrutivas para os aldeãos.

O mistério paira sobre uma igreja recém-construída, cuja inauguração dá aos conspiradores o mote para inicar a vaga de acontecimentos que irá arrasar a vila. A igreja torna-se um local onde quem entra, sai convertido à nudez, despoja-se de roupas e atavismos sociais, deixa para lá o respeito ao poder ecleciástico, e assume uma bondade natural. Algo que atrai as atenções da Inquisição, e terá consequências muito inesperadas ao longo da história.

Cruzando romance histórico com fantástico misticista, esta Conversão dos Nus é uma excelente leitura que nos mergulha em intricadas conspirações no Portugal seiscentista. Mistério e ficção histórica de mãos dadas, num livro que mostra uma outra faceta de um escritor normalmente mais focado na fantasia épica.


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Andam Faunos Pelos Bosques


Aquilino Ribeiro (1962). Andam Faunos Pelos Bosques. Lisboa: Bertrand Editora.

A fina ironia desta hilariante comédia de costumes é impressionante. Nas Beiras profundas dos inícios do século XX, as aldeias parecem estar a ser acometidas de estranho mal. Tudo começa quando uma jovem rapariga confessa ter sido abusada por estranha criatura, lesta, peluda e luxuriosa. Poderia ser uma efabulação que oculta uma violenta violação, mas o mal começa a espalhar-se pelas aldeias serranas. Diz-se que há bicho mau nas serras, que se aproveita dos púberes encantos das jovens pastoras e camponesas.

Mas a reação não é de medo. Para surpresa das comunidades, regidas pelos pacientes curas de aldeia, as jovens parecem procurar os encantos dos braços do tal bicho mau. De tal forma que se provocam tumultos e há revolta nas terras. A criatura é esquiva mas célere em provar os encantos das raparigas bonitas, para desespero das menos prendadas pela natureza, que bem se metem serra acima na esperança de serem tomadas pela lúbrica criatura que assombra os matagais.

Restam os guardiães da moral e bons costumes para repor a ordem: os tranquilos padres das aldeias, que vêem o tranquilo remanso das suas calmas vidas virado de pernas para o ar. Lá se vão os longos almoços bem regados após a missa dominical, os cuidados desvelados das mulheres da aldeia que vivem com eles, a quem lhes dão filhos que depois apadrinham como sobrinhos. Resta-lhes desenvolver esforços para repor a santidade do povo, dar caça à criatura, perceber se há demo à solta na serrania ou se é a expressão de uma outra mitologia, o silvestre fauno, que anda a desviar as meninas dos bons caminhos da virtude.

A história conta-se sob o ponto de vista dos padres, divididos entre a impotência para travar o que vêem com um mal que se espalha pelo povo, e as rotinas a que a sua vida de cura de aldeias os habituou. É aqui que reside a mais fina ironia do romance, uma tremenda crítica social e de costumes que disseca, com lâmina afiada, a vida no interior rural português do século XX, uma vida pobre, feita de atraso social e econónico, onda a palavra de padres fieis ao preceito "faz o que digo e não faças o que faço) é a lei. 

Apesar da aparente intrusão do fantástico, sob a forma do mito milenar que vem desviar a pureza das meninas bonitas, o romance foca-se no abalo às relações de poder trazidas pelo inconformismo das populações. Fica claro que não há demos nem faunos à solta pelas serras, que isso é uma desculpa para as raparigas poderem provar o sabor da natureza livre. E essa liberdade é o que realmente atemoriza os contemplativos curas, cuja dicotomia de vida é desnudada com bisturi certeiro, a sua cupidez, gula e lubricidade, que exercem livremente sobre as mulheres das aldeias que tutelam, enquanto pregam o credo da pureza divina. 

Ler este romance é um festim para o cérebro. A ironia, a comédia elegante, o profundo realismo do retrato das geografias e populações. As imagens da serra, das aldeias, formam-se na nossa mente com uma brilhante nitidez durante a leitura. Ajuda a isso a prosa elegante e complexa de Aquilino, useiro e vezeiro no uso de palavras e expressões fora do comum. Um sensual festim literário, onde o prazer da palavra impera.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Arquivo Morto


Fernando Lucas (2024). Arquivo Morto. Lisboa: Mighell Publishing/Fórum Fantástico.

O trabalho de Fernando Lucas é o grande tema desta antologia. Que, diga-se, suspeito que se torne um livro essencial da BD portuguesa. Reúne várias histórias deste criador, originalmente dispersas por outras antologias, fanzines e edições. O espectro do Fantástico paira sobre todas, tocando desde o horror clássico  (com um toque delicioso de humor negro) a um intrigante cruzamento Lovecraftiano com o Terremoto de 1755. Futurismo distópico, paradoxos das viagens no tempo e mistérios no espaço formam as histórias deste livro. As narrativas, curtas, são bem estruturadas e intrigantes, e o traço é sempre de um grande nível. Lucas pode não ser um dos nomes populares e bem conhecidos da BD portuguesa, mas esta antologia mostra que merece ser lido.