terça-feira, 27 de setembro de 2016

Proxy


Anton Stark (ed.) (2016). Proxy. Calvão: Editorial Divergência.

Mal suspeitava Norbert Wiener, que se enamorou com o potencial intuído da simbiose homem-máquina ao estudar a matemática do abate de aeronaves em voo acelerado, do impacto que teria o seu conceito de cibernética. Entre outras influências, da ciência e tecnologia à cultura popular, tornou-se a espinha dorsal de um género literário de Ficção Científica.

O termo cyberpunk invoca nos fãs de Ficção Científica um tipo muito específico de iconografias. Cidades de torres brilhantes no seu alto modernismo arquitectónico, destinadas às rarefeitas classes bem sucedidas, rodeadas de velhos bairros degrados, fervilhantes de actividade habitualmente pouco cumpridora da lei. Mundos virtuais paralelos, habitados por inteligências artificiais que se movem nas geometrias do éter binário. Robots e andróides, dos elegantes simulacros humanóides aos disformes engenhos mecanizados. Hackers rebeldes, magos da alucinação consensual sustentada por redes informáticas. Mesclas simbióticas de homens e máquinas. Frieza dos interesses de conglomerados empresariais face à resiliência dos indivíduos num mundo onde o consenso westfaliano se pulverizou, levando consigo o conceito de estado-nação. Cenários perfeitos para aventuras que, no seu âmago, procuram fazer sentido do que à altura era um nascente mundo digital.

As histórias desta antologia representam uma rara incursão de autores portugueses numa estética que, saída do imaginário de Bruce Sterling, Pat Cadigan, Vernor Vinge e William Gibson, escritores que nos anos 80 intuíram o domínio que a informatização iria exercer sobre a consciência humana, hoje nos parece ao mesmo tempo datada e intrigante. Seis escritores aceitaram o desafio, trazendo-nos contos que espelham influências cinematográficas, literárias e do mundo dos mangá. O resultado final pauta-se pela qualidade literária e solidez de mundos ficcionais que mostram como estes autores comseguiram sentir o pulsar estético do cyberpunk. Sem ser radicalmente inovadora, com uma abordagem convencional ao género, marca a diferença pelo atrevimento em trazer o Cyberpunk para o panorama do fantástico literário português, mais habituado à fantasia ou FC distópica.

Deuses Como Nós, Vítor Frazão: uma arquivista de tecnologias antigas é contratada por um magnata da élite de alta tecnologia da mega-cidade flutuante que se espraia ao largo da península ibérica. Este pretende encontrar o seu antigo colega de laboratório, agora um rebelde que luta contra a implementação de tecnologias de imortalidade cibernética que deram a riqueza ao magnata. Este conto de Vítor Frazão captura muito bem o misto de decadência e futurismo brilhante que caracteriza o género, invocando iconografias poderosas numa história que, fiel ao cyberpunk, mistura tecnologia avançada de aumentação humana com desigualdades sociais e hiperurbanismo.

Modulação Ascendente, Júlia Durand: Como sobreviver num mundo empresarial ultracompetitivo, onde os funcionários são descartáveis? A personagem principal deste conto, cuja longevidade e ascensão na hierarquia da empresa tem sido permanente, descobre que poderá precisar de mais do que competência e estar no lugar certo à hora certa. Poderá precisar dos serviços de um hacker, capaz de infiltrar o dispositivo musical do seu patrão, manipulando-lhe as emoções através do uso de música para garantir a desejada promoção. Conto com elementos intrigantes, como a esterelidade da cultura corporativa, a vibração dos sectores decadentes das cidades ultra-modernas, ou a manipulação informática de dispositivos pessoais para alterar percepções. No fundo, este conto é mais sobre o poder emocional da música do que cyberpunk por si próprio.

Pecado da Carne, Carlos Silva: Um conto muito sólido e bem construído, que nos leva a um futuro onde as cidades são controladas por seguradoras que asseguram a saúde e bem estar daqueles que conseguem pagar as apólices. Um mundo tornado possível graças a uma epidemia que vitimou grande parte da humanidade, e sustentando graças a uma sub-classe de humanos que vivem nos subsolos, sobrevivendo por entre as condutas de manutenção e portas de ligação das cidades com o mundo exterior. Numa dieta de perfeição nutricional, por vezes apetece um fruto proibido, e é aí que entra a anti-heroína, uma poderosa delegada de saúde, acordada de um sono criogénico para investigar indícios de tráfico de carne dentro da cidade. Sem entrar em spoilers, digamos que a carne tem origem inesperada, que neste mundo ficcional os delegados de saúde são temíveis, e as crianças têm respeito à fada da nutrição. Para além da boa história e do sólido mundo ficcional, este conto debate questões que de facto se estão a tornar reais, como a hiperprivatização, ou a interferência em padrões de vida individuais e privacidade por parte de empresas que, graças a tecnologias IoT, personalizam os seus produtos e colocam restrições comportamentais aos seus utilizadores em nome das suas definições de saúde ou segurança.

Y + T, Marta Silva: num mundo futuro, numa fábrica centrada numa poderosa esfera, dois amigos de infância dão por si em lados opostos de uma luta para derrubar as estruturas industriais e libertar os seus habitantes.

Alma Mater, José Castro: Se a história tem um sentimento familiar, com uma avançada consciência cibernética incorporada num andróide que foge dos laboratórios onde foi criado, cruzando-se com criminosos e rebeldes do mundo caótico que está para lá das fronteiras regradas dos centros corporativos, e até conhece o seu criador, o autor joga muito bem com os elementos da iconografia cyberpunk. Temos o futurismo decadente, o estilhaçar multicultural das velhas sociedades europeias, o contraste entre os sobreviventes no mundo exterior e as afluentes sociedades fechadas empresariais, as altas tecnologias obsoletas e recicladas por qualquer um que seja capaz de lhes mexer. Junte-se a isto uma Lisboa revista entre a velha cidade decadente e uma nova cidade futurista, inacessível, com a velha cidade dominada por gangs de descendentes das correntes comunidades emigrantes, e temos os ingredientes para o que é uma belíssima história, que desperta a curiosidade do leitor com o seu mundo ficcional bem montado.

Bastet, Mario Coelho: Um grupo de hackers é contratado por uma cliente empresarial para recuperar um artefacto roubado ao melhor criador de robots. A busca leva-os a enfrentar mafiosos que se modelam na Yakuza que admiram, para resgatar algo que é proibidissimo, neste mundo ficcional: uma inteligência artificial avançada. Conto cheio de acção, de muito bom ritmo, com uma prosa desprendida e visceral a contrabalançar um sólido mundo ficcional.