quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Leituras Assustadoras


Porque o terror literário é divertido, assustamos com esta imagem evocativa criada por Carl Barks, o ilustrador que deu a forma que conhecemos aos personagens da Disney. Não haveria Pato Donald e amigos sem o seu trabalho.

31 de Outubro, noite dos terrores, dos ruídos soturnos, dos calafrios provados pelo medo do desconhecido. Que leituras poderemos escolher para nos arrepiarmos ainda mais na noite dos arrepios? Podemos mergulhar no soturno século XIX com as fabulosas histórias arrepiantes de Edgar Allan Poe. Entre as Histórias Extraordinárias e Os Crimes da Rua Morgue (livro recomendado pelo PNL) o assombro é garantido. Ou então porque não pegar na prosa encantadora de Neil Gaiman e ficar a conhecer o rapaz que vive num cemitério, educado pelos simpáticos fantasmas em A Estranha Vida de Nobody Owens? Para os fãs de horrores mais apocalípticos fica a sugestão de descobrir a obra de H. P. Lovecraft. Quem descobre os terrores de Cthulhu e dos restantes pesadelos congeminados descobre uma paixão literária para a vida. Traduções de Lovecraft para português estão disponíveis graças à editora Saída de Emergência.

Ou, porque não, pegar nos clássicos Drácula e Frankenstein descobrindo os textos originais que são tão influentes noutros livros, no cinema ou jogos? Leitores com gosto mais contemporâneo podem descobrir os livros de Stephen King ou Richard Matheson. Quem lê em inglês pode - deve - experimentar a tradição de ler A Night In The Lonesome October, romance de Roger Zelazny que reúne todos os monstros imaginários do cinema e literatura numa luta pelo domínio do mundo cujo clímax acontece na noite do Halloween. A tradição é ler um capítulo por dia até ao ao dia 31, onde se descobre se são os bons ou os maus monstros os que saem vencedores da luta que todos os anos se repete.

Procurem estes (e outros) livros nas vossas bibliotecas escolares. Boas leituras e bons arrepios! I bid you good evening.

Ficções

The Truth of Fact, the Truth of Feeling: Ted Chiang não é um escritor que tenha subido aos píncaros de popularidade no género de FC e Fantástico, mas é certamente um dos mais influentes. A sua prosa árida e lógica implacável, aliada a um estilo que não vive de adereços clássicos como robots, naves espaciais ou heróis amargurados à luta contra forças galácticas não é favorecida pelo lado mais popular da ficção científica. Mas o seu valor crítico e literário é enorme. Chiang escreve FC erudita, lógica, com temas e estilo muito próprios. E fá-lo de forma brilhante. É sempre um privilégio ler os seus concisos e geniais contos. Neste, o conceito McLuhanista (e não só) de tecnologia como elemento transformador do pensamento é posto a nu num conto fortemente cerebral. Num diálogo íntimo mas desapaixonado o narrador partilha com o leitor as suas preocupações com uma tecnologia de busca imediata por arquivos de life-logging que suspeita conter o potencial de modificar profundamente a forma como concebemos o pensar e recordar. A postura de Chiang não é o alarmisto dos Carrs e equivalentes, e o autor leva-nos aos dilemas do recordar com exactidão aquilo que a fisiologia cerebral tantas vezes altera sem que de tal nos apercebamos. Serão as nossas memórias uma gravação fiel dos acontecimentos ou estão alteradas pelos nossos pensamentos e sentimentos? Chiang sabe que a investigação recente mostra a fragilidade da fiabilidade da memória e a derrocada das certezas do narrador espelha a surpresa que sentimos ao ver provas de que as recordações aconteceram de forma diferente do que imaginávamos. Para mostrar a abrangência da tecnologia enquanto algo que subtilmente modifica a forma de pensar Chiang entretece outra história no seu conto, olhando para a influência do alfabetismo sob a cultura de uma ilha isolada no pacífico através do ponto de vista de um jovem indígena que ao aprender a ler e escrever percebe que pode fixar a verdade através das palavras mas que ao fazê-lo perde a ligação ao espaço mental da sua tribo. A mensagem é clara. Reagimos com excitação ou alarmismo a cada nova tecnologia que possibilita mudanças profundas na maneira como pensamos, mas quando nos alfabetizamos, quando a civilização se alfabetizou, algo mudou irremediavelmente. As tecnologias que criamos mudam-nos.

North American Lake Monsters: Um conto que se deixa levar pelos traumas e lutas interiores de um ex-presidiário recém-saído da prisão e os seus problemas de readaptação à sua família problemática. Há monstros nesta história, mas são os humanos. O monstro que lhe dá o nome só aparece no início e na conclusão, infelizmente, tornando este conto pretendente ao fantástico em mais uma normal narrativa literária.

The Bear Came Over The Mountain: Envelhecimento, alzheimer e as reminiscências de uma vida colidem nesta história contada pelo ponto de vista de um homem que deixa a sua mulher num lar para mitigar a sua demência. Um pouco longe dos meus tipos favoritos de narrativa, mas a prosa de Alice Munro enreda-nos no conto. Para comemorar a recente atribuição do prémio Nobel da literatura à autora a New Yorker abriu este conto ao grande público.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Leituras

Are We Puppets in a Wired World?: Uma brilhante análise que começa como crítica literária a um conjunto de livros sobre privacidade e internet de autores como Morozov ou Naughton. Acaba por resvalar para uma profunda reflexão sobre a forma como alegremente cedemos os nossos dados pessoais e erodimos a privacidade individual em troca de conveniência e entretenimento. Sublinha que os usos dos dados agregados são muitas vezes impensáveis e inéditos, gerando novas formas de lucrar que surpreendem os utilizadores. Observa que a internet libertária se transformou num complexo e elegante panopticon de hipervigilância onde agências governamentais, estados e empresas conseguem manter níveis inimagináveis à poucos anos atrás de vigilância automatizada sobre os cidadãos, desvirtuando a ideia de conectividade livre em que se baseia o espírito da internet. Conclui de forma brilhante: "The free flow of information over the Internet (except in places where that flow is blocked), which serves us well, may serve others better."

The Writer As Meme Machine: Novamente a internet e as suas influências, desta vez num tom mais positivo e utopista. O remisturar automatizado de palavras, imagens e conceitos como nova fronteira de exploração linguística, ou as novas formas de poesia e arte conceptual possibilitadas pela conectividade e poder computacional.

Стены плачут: Sim, está em cirílico, mas não é para ler, é para ver. O urbanismo decaído enquanto cemitério das utopias do século XX. Onde a space age decai ladrilho a ladrinho nos murais que cobrem apartamentos brutalistas em cidades ignoradas da Ásia Central, ou o esforço stakhanovista pelo progresso da utopia proletária se esboroa na hipermodernidade urbana das incertezas do novo século.

The Many Posthuman Aspects of PacificRim: Esta é inesperada. Uma interpretação de Pacific Rim, filme onde giant fucking robots fight giant fucking monsters como sonho utópico transhumanista. Vai da mecanização da forma humana ao renascer dentro do útero mecânico. Isto no mesmo dia em que o Honest Trailers repete até à exaustão as óbvias incoerências de um filme concebido para agradar ao puto deslumbrado que reside dentro de nós.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Feed your head


I wonder if Lewis Carroll had an inkling of what he was unleashing into the world when he wrote down the whimsical tales that so delighted Alice Liddell. Probably hadn't, immersed in the sheer delight of wordplay and ideas. While composing his nonsensical collages of visions, weaving logic into the illogical, he struck upon a chord that resonates to this day. His tales, devoid of traditional morals or life lessons aren't childish manuals for good behavior. Instead he opened a door that J. G. Ballard came to explore so well, that of the innerspace, where the mind and its dream logic is our final frontier.

With little surprise the surrealists were quick to aproppriate the works of Carroll. The whimsical dream logic played right into the dreamscapes that these painters and writers were boldly trying to go into, where no man had ever gone before. No man, except Carroll, or the painter Hyeronimus Bosch, or writers such as Poe and Lovecraft, all co-opted as grandfathers to an artistic movement that craved hanging boring old staid reality upside down with extreme prejudice. His influence on surrealism is twofold. First there's the new and unexpected meanings to be found in meaninglessness, true kernel of surrealism, visible in works as different as Magritte's calm dreamscapes or Dali's masterful inversions of logic, amongst the most well known. Second, as inspiration for countless revisitiations, starting with Tenniel's sublime renderings that turned the unreal into real and extending into a rich pictorial tradition in which the dream iconography, latent sexuality or psichedelic landscapes of Alice's world were explored in several media and techniques.

Perhaps one epitome of just how far Carroll carries us is the song White Rabbit by Jefferson Airplane where the innocence of childhood and strange, dark meanings come full circle. Outerspace is huge, but Alice showed us the first steps into the vast innerspace inside our minds.

Jefferson Airplane (1967), White Rabbitt.
Hiltz, S. (2011). Curiouser and Curiouser and Curiouser: An exploration of surrealism in two illustrators of Lewis Carroll’s Alice. The Looking Glass : New Perspectives on Children's Literature, Vol 15, No 2
McAra, C. (2011). Surrealism’s Curiosity: Lewis Carroll and the Femme-Enfant.
Peliano, A. (2012). Através do Surrealismo e o que Alice Encontrou Lá.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Grimm


Grimm's Fairy Tales

In a violent, harsh world, how do you teach your children, conveying the necessity of keeping one's wits, be reasonably suspicious and react to invisible threats disguised as friendly offers? In the profundly poor and unjust world of medieval and post-medieval europe, how do you survive in the face of rapacious nobility?

Distilled through Grimm's and Perrault's collections, sanitized by countless film and children's book adaptations, today fairy tales appeal to us as innocent tales of a fantasy era gone by, with a clear cut morality where good triumphs in the face of evil. Betterment of social conditions and the rise of the bourgeoisie help to explain how we started to perceive fairy tales as innocent stories. But there was a time in wich it wasn't so. When Cinderella wans't woken by a gentle kiss but by a violent rape - and had to marry and bear children by the rapist. Or the revenge of Puss in Boots, showing how a peasant who keeps its wits may stand a chance against the feudal overlord, the sort of chance that could not happen in real life. Like this there are many others, visceral, violent, harsh and unjust traditional versions of todays tales of innocence.

They were a teaching aid, told by the dim lights of the hearth or the candle in the long cold nights of pre-industrial europe, with regional variations and yet a curious sameness of themes. All of them to teach children how harsh and violent the outer world is, how safety is an illusion and a kind smile hides a lurking danger. Or dreams of prosperity, mostly about abundance of food, for those whose dreams of the fabled land of cockaigne helped to bear their absolute poverty and isolation. As Robert Darnton puts it, "The peasants  (...) inhabited a world (...) of inexorable, unending toil, and of brutal emotions, (...) people whose lives really were nasty, brutish, and short."

Ensaios rápidos para o mooc Fantasy and Science Fiction: The Human Mind, Our Modern World).

domingo, 27 de outubro de 2013

Leiam

Numa palestra recente sobre o futuro das bibliotecas, Neil Gaiman faz uma brilhante apologia do livro e da literatura como recreio da mente, assumindo o mergulho em mundos de fantasia como um recreio para a imaginação que nos enriquece enquanto pessoas. Toca de forma brilhante em vertentes aparentemente tão díspares quanto o carácter preditivo da ficção científica e sua influência sobre cientistas e engenheiros, liberdades de escolha literária, o saber dar espaço às crianças para desenvolverem o seu gosto sem imposições externas, bibliotecas como centros que permitem acesso gratuito à cultura. E, essencialmente, da leitura como porta de acesso e estímulo à imaginação humana, libertando a mente, abrindo novos horizontes e estimulando o desenvolvimento individual.

Gaiman termina citando Einstein, dizendo que "asked once how we could make our children intelligent. His reply was both simple and wise. "If you want your children to be intelligent," he said, "read them fairy tales. If you want them to be more intelligent, read them more fairy tales." He understood the value of reading, and of imagining. I hope we can give our children a world in which they will read, and be read to, and imagine, and understand." Mas talvez a melhor frase em que Gaiman sintetiza com precisão onde quer chegar com a sua mensagem é um tornear da ideia de Tolkien que aqueles que mais lutam contra o escape às normalidades são habitualmente carcereiros. Ler, descobrir, imaginar são acções que quebram grilhões. Leiam aqui, em inglês, tudo o que o autor tem para dizer. Porque vale a pena: Why Our Future Depends On Libraries, Reading and Daydreaming.

auditório:bent


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Azul lisboeta.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Comics


2000AD #1855: Edginton e Culbard não estão em tão grande forma neste segundo episódio de Brass Sun como no primeiro. Nota-se um argumento mais restrito e uma ilustração mais comedida, que se afasta da espectacularidade do primeiro episódio. O que não significa que o trabalho não seja de grande qualidade, mantendo pontos surpreendentes. Como esta biblioteca quase infinita, uma distorção da biblioteca de babel de Borges vista sob uma lente steampunk.


Samurai Jack #01: Foi uma das grandes preciosidades da animação infantil da Cartoon Network. Sublimemente estilizado num visual retro-futurista com influências de anime por Genndy Tartakovsky, as aventuras deste samurai transplantado por um demónio para um futuro longíquo que apenas deseja derrotar o seu arqui-inimigo e regressar ao querido Japão medieval valiam essencialmente pela estética de qualidade muito superior ao habitual na animação para crianças, boa parte dela feita a metro para encher espaços nos canais televisivos. A IDW decidiu insuflar nova vida ao personagem, mas nestas coisas a tarefa nunca é fácil. Sendo dedicada ao público infantil Samurai Jack não se distinguia pela complexidade e são raros os ilustradores que conseguem replicar na página o estilo de Tartakovsky. Esta nova variação não é excepção, apesar do elevado esforço do ilustrador contratado pela editora. O problema é que quanto pensamos na personagem idealizamos de imediato a iconografia visual original. É muito difícil ir além disso.


Mind MGMT #16: A delícia que Matt Kindt nos preparou para esta edição do seu comic transreal sobre poderes ocultos e espionagem fala directamente ao coração dos fãs de literaturas de género fantástico. Esta é uma das edições que se desvia da linha narrativa principal para expandir um pouco mais do universo ficcional da série. Somos levados ao mundo interior de uma jovem amante de livros que se apaixona primeiro pela obra e depois pelo seu autor. O personagem do escritor é claramente uma homenagem a Philip K. Dick, se bem que deformado para caber nos parâmetros de Mind MGMT. Se Dick tivesse na sua mente uma biblioteca de livros queimados na adolescência que tentou na meia idade passar ao papel alterando as palavras que estavam difusas na sua mente e pertencesse a uma organização secreta de espionagem mental... bem, não seria tão bizarro como a sua real biografia.


Numbercruncher #04: Pode um matemático brilhante dar a volta aos algoritmos do destino vigiados por um supremo deus contabilista? É o que descobrimos no final deste excelente comic escrito por Si Spurrier cheio de ilustrações evocativas de PJ Holden. Na sua essência trata-se da velha questão do livre arbítrio e dos destinos, a que Spurrier dá uma resposta muito curiosa.


Satellite Sam #04: O argumento convoluto e maçudo de Matt Fraction é uma desilusão mas para os fãs do traço de Howard Chaykin este é um comic obrigatório. A mestria do ilustrador revela-nos novas surpresas a cada edição. Nesta, Chaykin homenageia de forma clara e brilhante os estilos gráficos de Wally Wood ou Al Williamson na ilustração das histórias clássicas de ficção científica publicadas nos comics da EC.


The Unwritten #54: Termina, finalmente, uma das séries mais longas da Vertigo. Termina quando o seu poder crítico já se desvaneceu. Teria concluído na perfeição há quinze ou vinte edições atrás, quando a metáfora de Carey sobre o poder da ficção na imaginação humana ainda não tinha sido martelada até à exaustão. Pode-se dizer desta série que infelizmente cativou o público e foi por isso arrastada até à inconsequência. Carey esforçou-se por manter um elevado nível literário no comic, e as capas de Yukio Shimizu são uma nova referência da elevada qualidade gráfica da Vertigo. Percebia-se que para Carey a história que queria contar já tinha terminado à muito e que The Unwritten se tinha tornado uma caricatura de si próprio, paradoxal num título que era em si mesmo uma caricatura às vertentes mais populares da literatura fantástica. Termina agora num crossover morno com Fables de Bill Willingham. As palavras de Carey continuam potentes. Quanto à irrevogabilidade do final absoluto correm rumores que a série será relançada em janeiro do próximo ano.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Comics: Crossed, Salem's Daughter.


Garth Ennis, Jacen Burrows (2006). Crossed Volume 1. Rantoul: Avatar Press.

Começa por ser uma curiosa variação no género apocalipse com zombies mas depressa descamba numa viagem de sobrevivência que banaliza a violência visceral. Em Crossed a humanidade é dizimada por um vírus que se manifesta pelo aparecimento de uma cruz sangrenta no rosto dos infectados. Todas as inibições são desligadas e os infectados degeneram em comportamentos orgiásticos de extrema violência. Não são mortos-vivos no sentido tradicional, apenas humanos decaídos na selvajaria extrema em estado de permamente excitação que se dedicam a espancar, violar e devorar aqueles que se cruzam no seu caminho.

A história segue o inevitável périplo do grupo de sobreviventes que se cruza pela força do acaso mas vai sucumbindo às vicissitudes da fuga, até que restam os elementos mais duros. É curioso que Ennis dá aos seus heróis um carácter de implacabilidade desumana, similar aos monstros infectados pelo vírus, diferenciado apenas na motivação. Os heróis não hesitam em matar para sobreviver, enquanto que para os infectados matar é uma justificação para orgias de tortura canibalística.

Ennis é capaz de melhor que isto. Crossed é uma boa desculpa para hiperviolência sangrenta e repulsiva em comics embrulhada numa linha narrativa que pretende ir mais além da habitual história de sobrevivência num mundo destruído mas não o consegue. Apesar destas falhas o claro apelo catártico à violência proibida transforma esta numa das séries mais duradouras da Avatar Press.


Raven Gregory, Daniel Leister (2011). Salem's Daughter. Horsham: Zenescope Entertainment.

Os títulos da Zenescope raramente passam de veículos para pinups de seios avantajados e decotes generosos embrulhados em histórias pretensiosas mas que raramente se afastam da banalidade. Este Salem's Daughter é um exemplo típico. História de uma jovem com poderes ocultos perseguida por uma entidade malévola capaz de controlar a mente dos que o rodeia, tem como aliado um pistoleiro que anos atrás se cruzou com misteriosas bruxas vampíricas com propensão para usar lingerie reveladora em combate. Após salvar a simpática bruxa do enforcamento às mãos dos cidadãos mentalmente controlados da cidade natal, o pistoleiro leva-a consigo para viajar pela américa e lutar contra ameaças ocultas e terrores monstruosos. Posto desta forma até parece interessante, mas a narrativa é previsível e inepta enquanto a ilustração preocupa-se apenas em representar as formas generosas das bruxas que dão o mote à série.

All is consequence


Desculpe, Sr. Godard, estava a falar avant la lettre do complexo e elegante panopticon de hipervigilância onde agências governamentais, estados e empresas conseguem manter níveis inimagináveis de vigilância automatizada sobre os cidadãos?


A space age decai ladrilho a ladrinho nos murais que cobrem apartamentos brutalistas em cidades ignoradas da Ásia Central.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Leituras

Computing Power Used to Be Measured in 'Kilo-Girls': Quando falo aos meus alunos sobre a evolução do computador - coisa dura para recém-adolescentes mas necessária se queremos que eles compreendam o mundo que os rodeia, ao invés de apenas saber utilizar as ferramentas e gadgets da moda, há sempre um slide que os confunde. Mostro-lhes uma imagem de pessoas reunidas numa sala a fazer cálculos e pergunto onde está o computador. Invariavelmente apontam para os móveis ou para as máquinas de escrever. É o momento em que lhes falo dos computadores, legiões de mulheres e homens cuja tarefa era efectuar cálculos repetitivos em operações de computação. Este artigo do Atlantic sublinha o importante legado destas mulheres.

Play is the cornerstone of creative learning: A brincar também se aprende. Ou aliás, brincar é uma forma muito natural e eficaz de aprendizagem, quer como brincadeira natural quer como orientada em estratégias de role-playing  ou problem-based learning. Ou apenas como aquele momento em que rabiscamos sem objectivo e acabamos a ter ideias intrigantes. Faz bem às crianças e aos adultos, mas num momento de progressivo conservadorismo centrado numa ideia falaciosa da importância das métricas na aprendizagem, visão mecanicista que resume cada indivíduo a uma parcela estatística cuja evolução deve ser medida de forma quantitativa, o foco está no memorizar e testar aquisição de informação. Actividades que requeiram abordagens criativas têm cada vez menos lugar em sistemas educativos cada vez mais orientados para o sucesso nos resultados de medição de desempenhos. A exploração livre e criativa do brincar incomoda as visões conservadoras porque, enfim, quem cria tende a questionar as verdades estabelecidas, e isso incomoda muito os novos conservadores que num ataque concertado que envolve política, media e finança estão numa missão para purificar o mundo.

The Paperback Revolution: Antes dos eBooks a grande ameaça à literatura e indústria editorial foram... os paperbacks, livros de capa mole hoje ubíquos mas que quando surgiram foram retratados como uma ameaça cultural. Esta história sublinha o verdadeiro carácter de algumas facetas das lutas sobre propriedade intelectual. A verdadeira ameaça, muitas vezes, está nos industriais dos media perceberem que novas técnicas ou tecnologias ameaçam a capacidade de obter lucros fáceis vendendo o mesmo de sempre. As pessoas interessam-se pelo conteúdo cultural mas a forma é algo secundário. O valor acrescentado com produtos de prestígio tem importância, mas o acesso à cultura faz-se a  um nível mais elementar. Entre pagar pouco por um livro-objecto físico de menor qualidade e muito por um objecto de prestígio, a maior parte dos leitores escolhe a primeira opção porque o que lhe interessa é ler, mergulhar na história, nas palavras, na força da narrativa ou na aprendizagem de factos.

Airships: Esta galeria do Atlantic desperta o heliumpunk que há em mim. As formas bojudas e elegantes dos dirigíveis a cruzar os céus são fascinantes, e as suas intricadas estruturas interiores de treliça uma delícia para os olhos.

The Navy’s newest warship is powered by Linux: Ler este artigo faz pensar numa descrição de uma nave de combate futurista. Estes navios são essencialmente sistemas inteligentes com dentes afiados, controlados de forma semi-automática e dependentes como nunca de sistemas digitais. O facto de se basearem em tecnologias de fonte aberta é uma curiosidade financeira. O intrigante é a descrição de sistemas de controlo que parecem ter saído dos sonhos da ficção científica.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Comics: The Valley of Fear; The Squirrel Machine.


Arthur Conan Doyle, Ian Edginton, INJ Culbard (2011). The Valley of Fear: a Sherlock Holmes Graphic Novel. Londres: SelfMadeHero.

Fazer uma apreciação a este texto é uma armadilha de que fujo. Trata-se de Conan Doyle, clássico e firmemente dentro do domínio do policial. Edginton faz uma adaptação capaz do conto, mantendo a tensão e o conflito entre as pistas que a narrativa nos dá e a imprevisibilidade das deduções de Holmes cuja lógica só se torna aparente após reveladas. INJ Culbard empresta o seu traço simples e elegante com uma paleta de cores obscura e suave. Houve um pormenor que me surpreendeu. A constância dos olhos. Em todas as vinhetas Culbard utiliza cores sombrias e tons escuros, mas destaca sempre os olhos dos personagens. É um constraste surpreendente, o branco do olhar a brilhar no meio dos tons escuros. Alguma metáfora sobre o brilho da lógica dedutiva sobre as trevas da incompreensão?


Hans Rickheit (2009). The Squirrel Machine. Seattle: Fantagraphics.

Deliciosamente grotesco e surreal. O traço preciso e de enorme clareza choca com o onirismo visceral de um argumento que homenageia a ilogicidade do surrealismo. Paisagens de sonho, casas que se estendem através de espaços impossíveis onde a arquitectura se mescla com mecanismo, bizarras máquinas que misturam o ferro com a carne e despertares sexuais são alguns dos elementos desta história de dois irmãos e do seu mundo muito próprio. Abandonem a lógica, e esperem o inesperado a cada bem desenhada vinheta deste livro curioso.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Interzone #248


Depois do descalabro da edição #247, temi que esta seguisse o mesmo caminho. Mas não. As escolhas editoriais foram sólidas, o padrão narrativo consistente e isso traduz-se numa edição que nos dá contos muito interessantes para ler. Mesmo os mais fracos não atingem a mediocridade da edição anterior. O destaque óbvio vai para o delicioso conto de James VanPelt, uma daquelas pérolas literárias inesperadas que de vez em quando temos a sorte de inesperadamente encontrar. E, claro, a coluna de David "Ansible" Langford é um vício e Future Interrupted está a revelar-se ser um espaço de meditação profunda nas características, fraquezas e forças da Ficção Científica enquanto voz literária.

Ad Astra: Isolados no espaço, durante uma longa viagem aos confins do sistema solar, um casal começa a desagregar-se. O isolamento prolongado e as dúvidas sobre a sua pertinência numa missão em que tudo parece ser automatizado reduzem os dois tripulantes à amargura multiplicada pela distância incomensurável que os separa de casa. No final da história percebem o inevitável: não há regresso desta viagem às estrelas. Conto sólido de Carole Johnstone, que alia à perspectiva feminina uma visão de possíveis missões espaciais dependentes do gosto e boa vontade de patrocinadores milionários.

The Hareton K-12 Country School and Adult Extension: Decididamente o ponto mais alto desta edição da Interzone. Este conto de James Van Pelt é uma delícia literária. Não consigo perceber o que mais me atraiu nele; se o carácter borgesiano, partes remeteram-me para A Biblioteca de Babel com a visão de um edifício/organização que se vai estendendo até ao infinito; se pela magia narrativa de uma história que apela ao romantismo da profissão docente com uma escola ficcional que se torna metáfora para o enraizamento das aprendizagens na alma humana e a importância real da educação como espinha dorsal social; se os toques de FC numa visão que aparentemente parece fixa no tempo mas que nos vai revelando uma progressão inexorável do qual um elemento permanece constante. Esta história de um edifício escolar que resiste ao tempo e vai crescendo de formas orgânicas e misteriosas é um perfeito encanto.

Dark Gardens: Conto com um bem conseguido ambiente de estranheza. O novo dono de uma casa pertencente a um magico desaparecido descobre um estranho segredo oculto debaixo do alçapão que dá acesso a um mundo submerso povoado por criaturas similares a manequins. Com estes vem a obsessão, que já consumira o anterior dono, de interlaçar os manequins humanóides com a vida humana. Uma bizarria contada com o estilo mais normal possível de Greg Kurzawa.

Il Teatro Obscuro: Pequena vinheta de fantasia, mais interessante pelo profundo estilismo narrativo do que pelo conteúdo. Um luxuoso teatro decaído e abandonado povoa os sonhos nostálgicos de um velho compositor que deambula pelas ruas perigosas de uma cidade onde o progresso significou decadência. Conto de Ken Altabef.

Technarion: Um belíssimo final para esta edição da Interzone. Conto longo de Sean McMullen, mistura de forma intrigante space opera, cyber-, steam- e electropunk numa história onde acompanhamos as desventuras de um técnico brilhante contratado para ajudar um milionário implacável a construir um engenho analítica. Visionários da electricidade numa época vitoriana onde todos crêem no vapor, este técnico e os seus companheiros desenvolvem uma versão arcaica da tecnologia digital com base no que pensam ser emissões em código morse de organizações com interesses similares. Uma jovem americana contratada como dactilógrafa para programar os engenhos vem a revelar-se ser uma quase imortal agente de uma civilização alienígena cuja missão é travar surtos de desenvolvimento de tecnologia computacional como parte de uma longa guerra travada pelos seus contra máquinas inteligentes. De fantasia cibernética vitoriana o conto termina no presente contemporâneo, com a óbvia observação de que a missão falhou e a humanidade está fascinada com as máquinas que serão precursoras inevitáveis dos engenhos inteligentes. Nada que o poder de fogo de uma frota alienígena não resolva com um evento de extinção massiva.

domingo, 20 de outubro de 2013

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Trapped in the future

"There were eyes in every window.
He was trapped in the future, and everyone was watching him."

“There,” said Westover. “On the standard setting, it’s going to give you live feeds from whichever Ambient Security cams surround your GPS location. Tap that, and you go to the Forward setting, grabbing the live feed from the cameras ten to twenty yards ahead of your location.”
“What’s that for?”
“Pursuit,” said Westover, looking at Tallow like he was an idiot. “Do you not understand what my company does? We’re going to take your job, Tallow.”
“I believe I’ve had the company lecture on that once or twice,” Tallow murmured.
“Right. With Ambient Security, I can outsource and crowd-source the very concept of criminal pursuit in this city. The red button launches a speakerphone call to a live operator in the ops room. I don’t need a bunch of cops and cars on the ground. I could chase and take down a speeding car with one operator using the Forward setting and a drone.”

Warren Ellis (2013). Gun Machine. Nova Iorque: Mulholland Books

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Comics


Baltimore The Infernal Train #02: Sendo um comic de Mike Mignola publicado pela Dark Horse as comparações com Hellboy e o mais desinteressantes B.P.R.D. são inevitáveis. Com o icónico demónio em pausa e o seu universo ficcional mantido vivo pelos fracos esforços dos argumentistas de B.P.R.D. tornou-se claro que Mignola deseja recapturar a imaginação do público com um novo personagem, mantendo a frescura de ideias que Hellboy, graças à sua popularidade, já não consegue manter. As aventuras de Lord Baltimore, caçador implacável de vampiros numa Europa devastada pelo pós-guerra da I Guerra onde uma praga de vampirismo desencadeada por Haigus, um misterioso vampiro-mor, ameaça arrastar o século XX para uma versão steampunk da idade média, têm sido desenvolvidas metodicamente como um universo ficcional vasto, com personagens multifacetadas e um herói torturado mas corajoso com potencial icónico. Tal como fez com Hellboy, Baltimore está a ser desenvolvido por Mignola como um conjunto de pequenas séries de aventura e ocultismo que eventualmente formarão um corpus literário mais abrangente. Só resta saber quando é que Guillermo Del Toro fará um filme com Baltimore, de preferência com estéticas tão marcadas e influentes como as da série de filmes de Hellboy.


Extinction Parade #03: Pensava que Max Brooks iria libertar (ainda mais) o sangue e as vísceras nesta curiosa amálgama dos géneros de horror de vampiros e zombies. Mas não. Não que não haja uma boa dose de tinta vermelha nas páginas (afinal, estamos a falar da Avatar Press) mas Brooks olha para um outro aspecto do vampirismo, para os leais servidores dos sugadores de sangue. A sua visão é uma fortemente carregada visão sobre poder e oligarquias. Se aplicássemos as ofertas irrecusáveis dos vampiros aos comuns humanos que os servem a contextos como finanças ou aristocracia, só mudavam os sorrisos. Banqueiros ou oligarcas quando sorriem não mostram os caninos afiados, talvez o pormenor que realmente os distingue dos sanguessugas ficcionais.


King's Watch #02: A Dynamite Entertainment não está interessada em inovar na edição de comics. A sua especialidade é pegar em personagens clássicos, adquirindo direitos temporários sobre propriedade intelectual e dando novas roupagens ou actualizações a ícones dos comics. A coisa não funcionou muito bem com Green Hornet, que de um bom início resvalou para argumentos medíocres e talvez da pior qualidade ilustrativa que vi num comic de primeira linha. Já The Shadow vai mantendo o interesse com uma abordagem que mistura o policial pulp com algum historicismo. Buck Rogers  e Flash Gordon Zeitgeist foram dois pontos altos da abordagem da editora, visões actuais assentes em excelente argumentos e estilos visuais arrebatadores. Por outro lado, as séries que andam à volta de John Carter of Mars podem ser classificadas como pornografia para pré-adolescentes. Qualquer título que meta Dejah Thoris é essencialmente uma colecção de pinups em roupagens miniaturizadas com argumentos que não foram escritos para ser lidos. O foco agora está na reunião de personagens e universos ficcionais em comics de grupo que permitam maximizar a propriedade intelectual. Um primeiro esforço que reuniu The Shadow, The Spider, Zorro, Green Hornet e uma galáxia de outros heróis pulp semi-obscuros não se saldou pelo interesse, apesar do trabalho de Chris Roberson. Desta vez o foco está em Phantom, Mandrake e Flash Gordon, e a série parece reunir os elementos empolgantes de aventura pura que caracterizam estes personagens enquanto dá uma roupagem actual a estes personagens clássicos. Como se nota na vinheta que escolhi para ilustrar a série, onde Lothar, companheiro de Mandrake (aqui, felizmente, não o adonis africano sempre de tanguinha em pele de leopardo do comics original) coloca o mago em contacto com um rude Phantom utilizando meios decididamente quentes. A seguir, parece que a Dymanite se prepara para pegar em Doc Savage. Pessoalmente estou muito curioso com o que farão com a personagem.


The Steamengines Of Oz #03: Caças com asas de morcego contra dirigíveis aracnóides e robots a vapor com asas de mosca? Steamengines of Oz pode ser infantil, uma história para crianças passada dentro de um mundo ficcional da literatura infantil onde as vagarias da propriedade intelectual já permitem apropriações inesperadas. Numa coisa a série foi brilhante: a ilustração ultrapassou os limites do steampunk com um gosto e elegância inegáveis. Só por isso vale a pena a leitura.


Vincent Price Museum of the Macabre #02:  Da Bluewater raramente saem coisas interessantes. Os comics desta editora são notórios pelos maus argumentos e ilustrações sofríveis. Mas como resistir ao apelo nostálgico de Vincent Price em títulos cujo horror está não no conteúdo mas na forma como foram escritos e ilustrados? Desta vez a surpresa foi boa, com um conto de horror em modo tradicional  ilustrado num estilo expressivo e decadente com o seu quê de repelente. Almas penadas, coveiros desenrascados e exorcistas implacáveis colidem num cemitério de uma obscura igreja paroquial.


The Mysterious Stranges #05: Chris Roberson à solta num registo perfeitamente retro, que vai ao ponto de imitar com nostalgia os genéricos das velhas séries televisivas de aventura. A premissa é estafada - um grupo de agentes ultra-secretos, membros de um grupo oculto que se dedica a combater terrores insuspeitos e que se cruza com monstros lovecraftianos, ditadores de repúblicas das bananas que devem o poder a misteriosos artefactos, ou alienígenas que misturam os mitos urbanos sobre greys e haunebus (greys sendo os extraterrestres minorcas acinzentados de olhos esbugalhados e haunebus ovnis nazis, para os menos conhecedores de curiosas irrelevâncias pop). Roberson mistura nos seus argumentos nostalgia retro e descontracção narrativa. O resultado é divertido, leve, nostálgico e bem ilustrado. É talvez a versão comics do escapismo retro de Charlie's Angels, com um toque de terror.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

playtime


Havens


Thomas Cole, Course of Empire, Desolation (1858).

Uma das coisas interessantes do mooc Online Games: Literature, New Media, and Narrative é ter posto a pensar sobre continuidades temáticas e estéticas que se estendem da tradição clássica à literatura fantástica do século XX e suas remediações no cinema e gaming. Num dos exemplos mais marcantes a estética de Grey Havens, local de finalizações de O Senhor dos Anéis, mostrando a influência classicista na estética de Tolkien que Peter Jackson tão bem soube utilizar. Mais decadente ou mais fantasista, o tema de lugar-ponto final, mas também ponto de partida fica bem marcado com o olhar que nos leva para lá do sol poente.


Lord of the Rings, Grey Havens

Comics: Avengers Endless Wartime; Nosferatu.



Warren Ellis (2013). Avengers: Endless Wartime. Nova Iorque: Marvel Comics.

Ellis a escrever aventuras dos Vingadores. Nada de anormal por aqui, apenas deixa cair a pretensão de profundidade e transforma as personagens em caricaturas de si próprias com aquele estilo tão próprio deste autor em verbalizações emocionais robóticas. É divertido ler personagens estereotipadas a comportar-se como estereótipos absolutos. Mas Ellis deixou-nos mais do que um simples caricaturar dos icónicos Vingadores.

O mistério que origina a aventura prende-se com dragões semi-inteligentes controlados remotamente através de implantes cibernéticos. O enredo mistura segredos militares do passado do Capitão América com ocultas falhas nas façanhas míticas de Thor, mas no que realmente interessa temos um obscuro construtor de armas high-tech que mistura biologia e tecnologia digital para criar drones biológicos armados que têm uma tendência inquietante para escapar ao controlo dos pilotos remotos sempre que um herói se aproxima. É por estas coisas que Ellis é brilhante. Oculto sob uma banal história de super-heróis para consumo infanto-juvenil está uma profunda e contemporânea reflexão sobre a ética e a estética da guerra à distância baseada em drones, particularmente acutilante porque publicada num país cujo presidente, prémio nobel da paz, se distingue pela forma como dá uso a esta tecnologia para assassínios extrajudiciais. Devidamente embrulhadinha em quatro cores para consumo infantil.


Philippe Druillet (2001). Nosferatu. Paris: Albin Michel.

Druillet foi um génio visual que enchia pranchas com um estilo barroco e psicadélico sobrecarregado de pormenores. A sua iconografia única é inconfundível. No entanto neste álbum a genialidade do autor é pouco visível. Num argumento desinspirado que mistura o mito dos vampiros com um futurismo pós-apocalíptico o traço de Druillet num registo a preto e branco não atinge os elevados níveis de Salammbô ou Lone Sloane.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Comics


Afterlife With Archie #01: Pronto, esta foi inesperada. A Archie Comics especializa-se num grupo de personagens eternamente adolescentes centrado no epónimo Archie, teenager prototípico à volta do qual se reúnem duas eternas rivais pelo seu coração e um grupo estereotipado de amigos. Não é anormal fazerem edições especiais de halloween com horrores da noite mas nunca saem do registo de humor leve em estilo cartoon. Isto torna este Afterlife ainda mais surpreendente. O argumento está a anos-luz do simplismo normativo da editora, dando uma profundidade inusitada a alguns dos mais bidimensionais personagens dos comics. Os conhecedores ficarão surpreendidos ao ver um Archie farto das óbvias predações sexualizantes da ricaça Verónica e da girl next door Betty. Jughead passa de comic relief a adolescente solitário que se defende com uma persona idiossincrática das pressões sociais. Reggie disfarça traumas interiores debaixo do ar de machão. Nem a simpática Sabrina, a bruxinha adolescente, se livra de umas tias que debaixo da bonomia ocultam poderes aterradores. Wow. Isto de facto é inesperado. A história inspira-se declaradamente em Pet Sematary de Stephen King, com o inevitável baile da escola (talvez dos mais batidos cenários das aventuras adolescentes da Archie Comics) a ser interrompido por um surto de zombies. Para rematar em cheio Francesco Francavilla ilustra com um estilo que está a anos-luz do visual a quatro cores claras habitual nestes comics. Realmente surpreendente.


Constantine #07: Eu sei que me estou a repetir, mas é deprimente acompanhar a decadência acelerada de um grande personagem. Depois da subtileza psicológica de Hellblazer, temos os raios mágicos de Constantine. Vou repetir. Raios. Mágicos. Que por enquanto saem das mãos, mas em breve ainda veremos o herói a fazer um ar concentrado para saírem raios da cabeça. Para compor a irritação, personagens cuja duplicidade era o seu encanto, como Mister E ou Sargon, ficaram reduzidos à mais plana bidimensionalidade. Se bem que Sargon, agora filha do original, enquanto jovem sensual deve fazer disparar as hormonas do público adolescente que é claramente o alvo desta reinvenção de John Constantine. Não vem mal ao mundo que uma editora se focalize em lucros a curto prazo, mas uma dica: a maior parte dos adolescentes quando cresce deixa de comprar comics. Os fãs adultos mantém a DC como pináculo crítico com alguns dos melhores exemplos do comic como transcendente de fronteiras mas a editora tem feito pouco por esse público-alvo mais afluente. A longo prazo talvez não seja a melhor ideia, até porque há limites para a quantidade de reimpressões de Sandman e outros títulos da era dourada da Vertigo.


Cryptozoic Man #01: A menção de comic mais WTF da semana vai para esta coisa bizarra da Dynamite Entertainment. A leitura nem sequer é compreensível, o que não augura grande coisa para as capacidades narrativas do argumentista.  Mas olhem para a premissa: cenário apocalíptico. Porquê? O texto teria de ser compreensível para se perceber. Um homem alterado por alienígenas para lutar não se percebe bem se a favor se contra a humanidade. Este herói reúne literalmente as características de seres criptozoológicos como o Yeti, Mothman, Chupacabra ou Sasquatch. E quando escrevo literalmente é mesmo isso que quero dizer, caso a imagem não pareça suficientemente ilustrativa. Este herói luta contra uma criatura de ar humano que se oculta debaixo de uma máscara de porco cor de rosa. Só me resta perguntar: o que é que estes tipos tomaram ou fumaram quando criaram isto?


Three #01: Kieron Gillen está a subir depressa na lista de argumentistas a manter debaixo de olho. Assina na Avatar Press o divertido Über, misturando super-poderes com nazismo e II guerra num registo que, sendo para a Avatar, não tem limites para a violência. Agora surpreende com esta nova série para a Image, escrita, segundo as palavras do próprio, em reacção contra as incoerências deliberadas de 300. Debaixo do estilismo admirável um Frank Miller fascizóide tentou passar a mensagem de que a liberdade e pureza ocidentais foram defendidas da ameaça dos orientais degenerados por um punhado de corajosos espartanos, super-homens na visão mais nietzeschiana da coisa. Ignorou deliberadamente que os espartanos não eram corajosos amantes da liberdade mas sim tiranos esclavagistas, provenientes de uma cidade de clivagem social extrema onde a elite espartana dominava em absoluto sobre a sub-humanidade hilota. Como tiranos esclavagistas defensores da liberdade é coisa que soa mal, Miller optou pelo tratamento hiperbólico da coragem absoluta dos defensores isolados dos bastiões ocidentais, tal como Spengler escreveu e Hitler se inspirou.

Bolas, meti Hitler no argumento e agora a discussão terminou. Regras da internet.

Sempre que releio 300 admiro o grafismo mas descubro cada vez mais camadas de racismo e conservadorismo fascista oculto sobre uma leve pátina libertária no texto de Miller. Kieran Gillen, sem escamotear a importância dos históricos 300 (que contando com os seus hilotas cooptados para a batalha seriam se calhar mais de 600), quer colocar a nu o real carácter espartano. E consegue-o logo nas primeiras vinhetas, quando sobrepõe sons of the masters - sons of the free no retrato que faz. Liberdade oligárquica é um paradoxo que alimenta esta série e uma visão de alerta perante um momento contemporâneo em que os valores de liberdade democrática estão sob ameaça de um novo fascismo oligárquico-financeiro que está a esforçar-se por regredir a tradição ocidental aos tempos pré-iluminismo em nome do lucro desmedido, distorcendo conceitos tão nobres como mérito, sustentabilidade e respeitabilidade.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Doctor Who: I am a Dalek


Gareth Roberts (2006). Doctor Who: I am a Dalek. Londres: BBC Books.

A capa prometia uma leitura rápida e não desapontou. Esta série de livros capitaliza as icónicas personagens e lê-se com o mesmo espírito com que se vê ou revê um episódio televisivo. Ao contrário de outras novelizações não procura arcos narrativos abrangentes. É o que afirma ser. Uma leitura rápida, uma injecção de aventura na mente dos whovianos.

Desta vez, após um passeio na lua o Doutor e a sua companheira - Billie Piper, para referência, descobrem-se numa pacata vila britânica que oculta um segredo. Dentro de um bunker uma escavação arqueológica a vestígios da era romana desenterra um enferrujado Dalek adormecido. Entretanto, na vila, uma jovem rapariga de regresso após falhar o sonho de uma vida na capital descobre que o seu ADN lhe confere poderes sobre-humanos. O Doutor e a companheira envolvem-se inevitavelmente num mistério que revela que aquele Dalek em particular tinha sido enviado à Terra num plano para misturar ADN alienígena com humano. O Dalek reactiva-se, extermina transeuntes incautos e é travado não pelo Doutor mas pelo lado humano da rapariga com ADN Dalek. E pronto. Na mente ressoa a música do genérico da série enquanto pousamos o leitor de ebooks. Lê-se e soa quase a um episódio televisivo.

Simples, divertido, bom para relaxar a mente durante uma meia hora com um instigar da imaginação gerado pelos curiosos personagens da série de culto.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Caught up by catching on

"What defines art? Throughout these lectures I've been using the term art broadly, to cover a range of activities from Jim Lee's drawing a page of Batman, to Shakespeare's company printing his plays after his death, from the stories of the Holocaust to the stories of Donald Duck.

In this, I seek to recognize a number of creative endeavors as legitimate forms of the human imagination. I run the risk, however, of failing to define my terms and so, of appearing confused about the differences between high art, fine art, literature, popular art, and commercial entertainment that is not traditionally considered art at all. I want to be clear.

What defines art, and particularly what defines literature, is the university system. It is long been the  responsibility of the university system to define what constitutes art and legitimize it by bestowing it with authority. In this case, the university is the father of art.

For a long time, excluded from the university curriculum, comics were considered, like so called genre fiction, science fiction, crime, mystery and fantasy, even film, simply and merely commercial entertainment. More recently, as graphic novels, comics have won major awards outside of the university system and original comic art has been included in gallery and museum exhibitions. Universities have caught up by catching on."

Do curso Comic Books and Graphic Novels, de William Kuskin, na aula onde analisa o que é arte a partir de Fun Home de Allison Bechdel. É de facto um privilégio este tempo contemporâneo onde os géneros e os meios de expressão tradicionalmente menorizados pelo mainstream são alvo de merecidas análises críticas e reconhecimento como vertentes do vasto campo da expressão artística humana. G33k is cool e espero que seja mais do que moda, mantendo-se a visão abrangente de uma cultura global que não se confina aos limites espartilhantes de um cânone que representa um único ponto de vista.

Ficções

The Fish of Lijiang: Chen Qiufan foi o vencedor dos prémios nébula chineses com o romance distópico The Waste Tide que, pelo resumo, parece ser uma crítica velada ao capitalismo desenfreado sob bandeiras vermelhas. Sim, há prémios nébula chineses, e sim, há FC em chinês, e sim, é pujante, alimenta publicações regulares e começa a chegar lentamente aos olhos do mundo através de traduções. Se o romance for uma versão expandida deste conto traduzido por Ken Liu e publicado na Clarkesworld, pergunto-me se estas ficções especulativas não atraem atenções excessivas por parte de vigilantes burocratas do partido em busca de desvios à pureza ideológica. Porque o conto é implacável. Começa por nos levar a uma visão plastificada para consumo turístico da tradicionalidade chinesa. Só isso já nos mete a pensar sobre os contrastes de um país de tradições milenares e hipermodernidade galopante cuja imagem tecnológica está ligada à imitação barata em plástico pouco duradouro. Qiufan vai mais longe quando nos mostra que essa visão é um destino de férias obrigatório - se bem que não há obrigação explícita, os veraneantes é que se sentem compelidos a ir, frequentado por trabalhadores fisicamente esgotados pela aplicação de tecnologias de alteração da percepção do tempo por gestores sedentos de aumentos de produtividade. O protagonista do conto abomina a artificialidade patente, sente a injustiça do uso de tecnologias prejudiciais à saúde nos contextos laborais, expressa revolta no seu interior mas continua resignado a manter os padrões de comportamento esperados. Será um retrato da vida no país dos laogais, mão de obra de baixíssimo custo e empresas estilo foxconn que tratam os empregados como servos?

Contos de Bruce Holland Rogers: A Bang! dá-nos duas vinhetas de Bruce Holland Rogers. São um pequeno mergulho numa prosa contida de pureza quase zen que nos remete para visões oníricas e transreais num misto de fábula com narrativa surreal.

Wavehitcher: Paul di Filippo a divertir-se. O conto não leva a lado nenhum, é um mero veículo para especulação tecnológica futurista com robots autónomos submersíveis, sociedade em rede e tecnologias que permitem que apenas com um fato hipermoderno um viajante dos mares se mantenha vivo, hidratado, alimentado e ligado à rede capturando os nutrientes necessários a partir das águas do mar. Podemos dizer que foi um shot de especulação para tomar com o café da manhã.

domingo, 13 de outubro de 2013

radio_bent


Epidemias de futurismo


É giro ver que o scoop.it onde recolho ligações com ideias futuristas, hipermodernas, retro-futuristas, tecnológicas ou apenas bizarras naquele sentido ballardiano que tanto me atrai é um tópico recomendado na categoria de tecnologia. Gostei da notícia. Para quem quiser assustar-se com epidemias futuristas basta ir ao outbreaks of futurity.

flash


Flash oculto sob epiderme a 5 megapíxeis.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Comics


Archer & Armstrong #14: Como é que se mantém o interesse numa série que atingiu depressa os limites do seu mundo ficcional? Para a maior parte dos comics isto implica processos de fossilização repetitiva que se traduzem em extinção com ressurreições pontuais noutras séries para manter a propriedade intelectual morna ou arrastamento iconográfico pontuado por mexidas ocasionais. Nesta, a resposta é expandir o mundo ficcional. Esgotada a luta contra a seita de poderes ocultos que criou Archer para dar caça a Armstrong e quer dominar totalmente o mundo que animou o arranque da série, tivemos direito a uma pausa para ganhar fôlego com ovnis e mundos paralelos à mistura que termina numa séria zanga entre Archer e Armstrong. Agora... temos uma dupla desavinda que vai ter de enfrentar não uma, não duas, nem três organizações secretas, mas um verdadeiro ecossistema de grupos sombrios que procuram manipular as engrenagens que movem o mundo. Esta foi a edição da história de origem das seitas, traçada ao ponto inicial no Egipto de Akhentaton onde um grupo de administradores assassina o faraó e faz um voto de nunca mais deixar que os impulsos dos líderes ou do povo ponham em causa a sua visão da marcha do progresso. Se ainda duvidam do poder crítico dos comics para trazer ao grande publico, ostensivamente sob a forma de entretenimento inócuo, ideias fortemente controversas leiam com atenção as palavras sobre religião. Esta veia crítica aliada à implausibilidade divertida à solta dão a Archer & Armstrong o carácter de comic que vale mesmo a pena ler, porque a meio de uma luta entre alienígenas e heróis podemos ler uma mordaz observação sobre o estado contemporâneo das coisas.


Astro City #05: O interessante de Astro City é a homenagem descarada ao lado ingénuo do género super-heróis, tão adepto do grimdark para lhe conferir profundidade. Astro City é luminosa e assumidamente positivista, dando aos leitores aquela que talvez seja a sensação mais aproximada do que foi para uma criança pegar num comic nos anos 40 ou 50 e deparar com as criaturas bizarras em fatos coloridos que lutam contra o mal. Nesta edição a vénia é ao steampunk. É uma vénia óbvia mas sempre deu para meter robots mecânicos num comic da Vertigo.


Death Sentence #01: A Titan Comics arrancou com um alinhamento de títulos muito interessante, entre os quais se conta o mashup ficcional A1 Weirding Willows, o pulp desenfreado de Chronos Commandos e o surrealismo espiritual-contabilístico de Numbercruncher. Para manter o nível este Death Sentence pega na ideia de apanhar uma doença contagiosa fatal que limita severamente a esperança de vida e dá-lhe uma volta com o conceito de poderes transmitidos por vírus fatais a médio prazo. Os personagens contraíram uma doença sexualmente transmitida (o paralelo com o VIH é óbvio) e para além de lidarem com o facto de só terem seis meses de vida ainda há que contar com os estranhos poderes que manifestam. O início intrigou, a ver vamos se se mantém.


Federal Bureau of Physics #04: Está a tornar-se claro que esta história de física desgovernada e os agentes governamentais que a tentam controlar caminha abertamente na direcção de parábola sobre economia e sociedade. Já se notava nas edições anteriores, mas nesta o objectivo é colocado a nu. Conspirações por parte de interesses económicos obscuros interessados em lucrar com a privatização de serviços públicos, que se socorrem de todos os meios que podem ir da argumentação falaciosa à sabotagem para impor a ideia de que público é mau e privado é bom? Isso sim, é contemporâneo.


Rocket Girl #01: A Image tem provado que não tem medo da ficção científica e este novo título vem demonstrá-lo. Não podemos ter FC em estado mais puro do que isto: uma agente adolescente da polícia do futuro, completa com fato de cores brilhantes e jetpack, que viaja ao passado investigar os crimes de uma corporação que se suspeita que anda a alterar a história para maximizar os lucros. A Nova Iorque de 1986 não sabe o que a espera. Cativante.


Shaolin Cowboy #01: A colisão catastrófica entre John Wayne e os monges chineses mestres do kung fu. Sim, é um mestre do kung fu vestido como cowboy que usa duas moto-serras para aniquilar hordes de zombies. A leitura não parece passar do divertimento pontual mas preste-se atenção: estamos a olhar para o traço hiperactivo e ultra-detalhado de Geoff Darrow. Preparem-se para vinhetas deslumbrantes. Para referência, esta despertou-me memórias. Não de caçadores de zombies com moto-serras. É que durante anos conduzi um Peugeot 205 daqueles...