Mostrar mensagens com a etiqueta Fantasia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fantasia. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O Livro do Deslumbramento


Lord Dunsany (2007). O Livro do Deslumbramento. S. Pedro do Estoril: Saída de Emergência.

Apesar dos inescapáveis apelos do seu lado mais pop, a literatura fantástica mantém entre as suas características o não esquecer da sua memória. Os autores mais clássicos e antigos são reeditados, por vezes redescobertos por novas gerações de fãs e criadores, e são discutidos. Não há um desparecimento de memória literária, antes, contínuas releituras que mostram a influência destes autores na evolução do género.

Lord Dunsany é um desses nomes, escritor da viragem do século XX, que mantinha o seu conto fantástico no campo da fantasia com recortes vitorianos, apesar de algumas intrusões da modernidade. Os seus Livros do Deslumbramento são as suas obras mais perenes, onde encontramos sob a forma estrita do conto curto a estética clássica da fantasia, algo soturna e nostálgica, muito exótica e feérica. Um livro a descobrir, para os fãs mais novatos do género, e que para os conhecedores sabem sempre bem redescobrir.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Monstrous Regiment

Terry Pratchett (2003). Monstrous Regiment. Londres: Corgi Books.

Outro mergulho na vasta tela que é o mundo de Discworld. Este, num tom mais negro, e inspirado numa história que conhecemos bem, a das Guerras Peninsulares. Claro, sendo um livro de Pratchett, podemos sempre esperar aquele seu humor mordaz e certeiro. Mas aqui, os cenários de fantasia sublinham desigualdades e idiosincrasias do nosso mundo, não são as meras fugas escapistas que a série Discworld é eximia em ironizar.

Quando uma jovem rapariga se disfarça de rapaz e se alista no exército para ir combater os inimigos da sua nação, nem sonha em que berbicachos se irá meter. Os seus motivos são tudo menos patrióticos. A guerra corre mal ao país e a rapariga não tem grande vontade de ir lutar em nome de uma regente que provavelmente estará morta, e muito menos de defender uma pátria teocrática, onde a religião é pervasiva, a vida é ditada por um acumular de diktats religiosos (com o seu brilhante humor, Pratchet designa-os de "abominações"), e, claro, ser mulher é uma condição de opressão. Tudo o que a rapariga quer é encontrar forma de procurar o irmão, prisioneiro dos inimigos da nação.

Vai parar a um pelotão bastante sui-generis,  composto por uma mescla de humanos e criaturas de fantasia. Os humanos são taciturnos e sempre com algo a esconder, um deles é acometido regularmente por alucinações político-religiosas. Os não-humanos incluem um vampiro, um troll e uma criatura tipo Frankenstein, especializada em curar e reconstruir corpos de forma muito literal. São liderados por um sargento à antiga, daqueles soldados experientes e quasi-imortais, e acabam por ter a dúbia sorte de ser capitaneados por um oficial inepto e sem experiência de combate, mas não totalmente inútil. O país está nas últimas, a guerra corre mesmo muito mal, apesar da propaganda constante a afirmar o contrário, e só restam os restos para engajar em combate.

Mas este pelotão irá revelar-se curiosamente aguerrido, e sortudo. Uma sorte ajudada por outras forças em jogo, que têm interesses estratégicos num fim à guerra que não implique a vitória das forças mais poderosas, e mobilizam espiões e jornalistas numa curiosa aposta neste pelotão como elemento inconstante capaz de desequilibrar a situação.

Na verdade, todos os elementos do pelotão partilham, sem o saber, do mesmo segredo. Há medida que as aventuras e desventuras se desenrolam, vamos descobrindo que todos os soldados daquela curiosa unidade são mulheres, incluindo trolls, vampiros e criaturas biológicas manufacturadas. Mulheres que têm em comum histórias que as levaram ao campo de batalha, desafiando as proibições teocráticas que as obrigam ao segredo, disfarce e subterfúgio. 

Parte do drama é esta reflexão sobre o papel da mulher na guerra, mas também na sociedade, Pratchett sublinha bem as desigualdades que se mantém arreigadas através das desventuras destas heroínas ocultas, sempre com o seu cunho de ironia inesperada. O resto é a tradicional ideia de sociedades ossificadas que precisam de mudar e evoluir, mas estão presas aos velhos modelos e ideais.

Por vezes tocante, outras hilariante, mas sempre surpreendente, este livro é um valioso elemento da longa série Discworld.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Hogfather


Terry Pratchett (1996). Hogfather. Londres: Corgi.

É a noite mais longa do ano,  e aqueles que podem juntam-se para celebrações bem comidas e melhor regadas. As crianças estão ansiosas, esperando no dia seguinte encontrar o que mais desejam. Os muito ricos preparam lautos banquetes, os pobres, arremedeiam-se com o que lhes é dado. Os lojistas esfregam as mãos, antevendo os lucros da época. É a noite mais longa do ano, aquela em que o bonacheirão Hogfather percorre todo o Discworld no seu trenó puxado por uma vara de porcos, escorregando pelas chaminés para deixar a justa recompensa dos meninos bem e mal comportados, aproveitando a oferta de jerez e frutas para restaurar forças. 

Mas, este ano, forças obscuras conspiram para travar o significado da noite de Hogswatch. Forças que manipulam o universo Discworld, com uma estranha aversão a seres vivos, e que alistam um dos mais temerosos assassinos da Guilda de Assassinos num longo plano para capturar o Hogfather, e, com isso, impedir que o sol volte a nascer sobre o mundo. Sabendo dos perigos que a não excecução de um ritual tem num universo mágico, é a Morte que se chega à frente e decide substituir-se ao Hogfather, tornando-se, com ajuda de uma barba postiça e uma almofada para ficar com um ar barrigudo, o distribuidor de prendas para a humanidade de Discworld. É aí que as coisas começam mesmo a correr para o torto, dada a literalidade com que a Morte decide encarnar o seu papel de dádiva. 

Junte-se a isso a manifestação espontânea de espíritos que encarnam ideias menores, com um deus das ressacas ou gnomos de tudo e mais alguma coisa, um bando de facínoras que tem mais medo do assassino que os lidera do que quaisquer castigos, os sábios pouco sabedores da academia da magia, um cérebro artificial mecânico feito de formigueiros e favos de mel, e temos a receita para o caos. No meu disto, a infeliz neta da Morte (se lerem Mort, percebem esta), que só gostaria de viver uma vida de pacata normalidade, mas é nas suas mãos que ficará o destino do mundo.

Sátira divertida ao natal, Hogfather coloca todos os lugares comuns natalícios dentro do bizarro mundo de Discworld. É, como semrpe, Pratchett a deslizar sem derrapar pelo absurdismo - a Morte a tentar ser Pai Natal é a coisa mais delirante que poderão ler, num romance como só ele era capaz de fazer. Leitura perfeita para uma consoada, diria. 

quinta-feira, 9 de julho de 2020

The Book of Atrus


Rand Miller, Robyn Miller, David Wingrove. (1996). Myst #01: The Book of Atrus. Nova Iorque: Hyperion

O jovem Atrus vive uma existência solitária, nas fímbrias de um deserto, partilhando a casa com uma avó que lhe transmite bondade e sabedoria. Essa existência bucólica é interrompida quando o seu pai regressa, para o levar consigo como aprendiz. Este buscar restaurar a antiga sabedoria dos D'ni, construtores de mundos há muito desaparecidos, capazes de invocar realidades com palavras. Atrus aprende a criar mundos a partir de cuidadosas descrições, mas depressa se apercebe que o desejo do pai de recriar a sabedoria antiga é mais do que curiosidade, é sede de poder, de querer gerar mundos para ser proclamado o seu deus. A insatisfação de Atrus cresce na mesma medida que as suas capacidades de invocar realidades se desenolvem, e tudo desaba no mundo gerado de Riven, onde ajudado por uma jovem nativa, consuma a sua revolta contra a loucura do pai.

Myst é uma lenda no mundo dos videojogos dos anos 90, pela beleza estética que trouxe a um meio que não estava muito habituado a visuais esplendorosos. Mais do que um jogo de computador, foi um universo fantástico criado por dois irmãos americanos, que ganhou expressão em ilustrações e jogos de computador. Ou seja, este livro não é uma novelização, mas sim uma exploração do mundo ficcional. Esta variante literária não é muito bem sucedida, o livro é um lamaçal narrativo. Consegue invocar a iconografia fantasista do seu mundo ficcional, mas é uma leitura penosa.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Lisboa Oculta - Guia Turístico


João Ventura, et al (2018). Lisboa Oculta - Guia Turístico. Lisboa: Imaginauta.

Devo dizer que me diverte a ideia de turistas incautos, calcorreando as ruas de Lisboa de telemóvel em punho, prontos a registar os fenómenos descritos neste livro. Subindo ao aqueduto das águas livres, assobiando em busca da sonoridade certa que irá fazer derrocar o arco maior. Olhando de soslaio na estação do Terreiro do Paço, à procura da porta com dois ferrolhos que dá acesso ao encarceramento de um certo Grande Ancião. Fugindo dos seguranças no Palácio Foz, esperando pela noite em busca da possibilidade de ser atendido no restaurante Abadia. Tentado escutar aqueles que se reúnem no jardim Jorge Luís Borges, para saber se já encontraram a entrada para a biblioteca de Babel. Procurando as assombrações no Instituto Superior Técnico ou nas Termas Romanas.

Estes são alguns dos deliciosos locais de interesse turístico que dão a inspiração para esta antologia da Imaginauta. A ideia clássica do sacarino guia turístico é aqui subvertida com a intrusão do fantástico, através de contos curtos. O livro sabe a pouco, mas é esse o objetivo, mais o de estimular o imaginário urbano que o explorar exaustivamente. Numa proposta intrigante, a Imaginauta criou uma edição bilingue, e esperemos que os turistas que eventualmente se deparem com este livro nas livrarias (talvez na cave mítica da Bertrand) percebam que estão não perante um guia turistico, mas um artefacto bem concebido e representativo do melhor que se faz na literatura fantástica portuguesa. O design gráfico, a cargo da Credo Quia Absurdum, escapa muito ao habitual neste tipo de edições.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Titus - O herdeiro de Gormenghast



Mervyn Peake (2010).  Titus - O herdeiro de Gormenghast. Porto Salvo: Saída de Emergência.

Há um tremendo ar de grandiloquência barroca neste clássico de Mervyn Peake. O texto é excessivamente trabalhado, filigranado, caricatural a roçar o grotesco. É um ambiente pesado, profundamente gótico no sentido sturm und drang. As personagens são caricaturais, arranstando-se em acção teatralizada por palco decadente, vasto e semi-arruinado. Isto não é fantasia no sentido clássico, de visões bucólicas e feitos heróicos. E é isso que torna este livro interessante.

Este primeiro livro da série Gormenghast (vá, pronunciem a palavra, saboreiem a sua arquitectura gutural, e percebem o barroquismo decadente do livro) é em essência um longo apresentar de personagens, dispondo-as num convoluto tabuleiro de xadrez narrativo. Ficamos a conhecer a incrivelmente disfuncional família senhorial do condado de Gormenghast, com o seu conde moroso, esposa que se interessa unicamente pelos seus gatos, filha semi-selvagem e irmãs gémeas com óbvia deficiência mental. Somos apresentados à caricata entourage de altos funcionários que de se dedicarem a funções fortemente ritualizadas, tornaram-se eles próprios ritualizados. Isto num castelo vasto, entre o sombrio e o assombroso, centro de uma terra que em si também encerra esquisitices quanto baste.

A história, contada com uma lentidão agonizante, narra-nos os primeiros anos de Titus, o filho varão do conde e grande esperança do reino. Um herói que nada faz, é um personagem secundário na sua própria história. O grande personagem é Steerpike, um inteligente e ambicioso anti-herói, jovem que consegue encontrar forma de se erguer de mero escravo de cozinha até se posicionar para se tornar o de facto dono do poder em Gormenghast. Sinuoso e implacável, capaz de manipular com fina inteligência aqueles que o rodeiam, um líder apropriado para a decadência ritual do condado.

A lentidão narrativa é em si outro artifício literário. Sublinha o filigranado barroco do texto, o caricatural das personagens e o teatral das peripécias da narrativa.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

aCalopsia: Apocryphus Volume 1



Uma nova publicação independente dedicada à banda desenhada portuguesa é sempre de saudar, e pelo que revela nesta primeira edição, a revista Apocryphus promete trazer banda desenhada de qualidade ao seu público alvo. Especializada na fantasia épica, a Apocryphus evita as livrarias e foca-se exclusivamente no circuito dos festivais e eventos ligados à Ficção Científica e Fantástico. Crítica no aCalopsia: Apocryphus Vol. 1.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Quest for Tula



Patrik Caetano (2016). Quest for Tula e outras histórias de Fantasia. Lisboa: Escorpião Azul.

Patrik Caetano tem sido um dos desenhadores mais consistentes e interessantes a ser publicado nas páginas da H-alt, revista de banda desenhada e história alternativa que dá espaço de publicação às vozes mais novas da BD em portugal. Caetano tem um traço muito distinto, expressivo e alicerçado na iconografia clássica da fantasia épica pós-tolkieniana, e um uso esplendoroso da cor, com paletas cuidadas em tons dominantes. São características plenamente evidentes neste Quest for Tula, livro que colige as suas histórias curtas para a H-alt e outras experiências, editado pela Escorpião Azul.

Pergunto-me que ordem define a escolha das histórias. Como qualquer jovem desenhador, Caetano tem um estilo gráfico em desenvolvimento. Apesar de já ter um traço seu, olha-se para os seus desenhos e percebe-se que só poderiam ser seus, percebe-se que ainda falta muito caminho a percorrer. Isso nota-se na heterogeneidade gráfica das histórias, algumas com traço mais incipiente, outros claramente apurado. A nível narrativo há também ainda muito que desenvolver. As histórias também escritas pelo autor são simples, nalguns casos quase pueris na forma como a narrativa se desenvolve. Sendo histórias curtas, percebe-se a dificuldade, mas na aventura mais longa e que dá o título ao livro continuam a notar-se as inconsistências narrativas, saltos temporais, personagens pouco estruturadas que agem de forma pouco clara.

Não é por acaso que a melhor história deste livro, O Bom Filho, conte com argumento de Vítor Frazão. Aí, a parceria brilha numa história bem medida e esplendorosamente ilustrada. Destacaria também Eyaer pela qualidade gráfica, só com manchas de cor a definir as imagens, e L. Gaiteiro quer pelo grafismo quer pela divertida ironia da história. As restantes parecem mais incipientes, passos de aprendizagem em que o autor vai afinando o seu estilo e técnica narrativa. Os estudos e concept art que encerram o livro mostram que Patrik Caetano pode e vai mais longe no seu grafismo. Suspeito que seja um nome a ter em conta quando se falar no futuro da BD portuguesa.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Comics


The Autumnlands #14: Kurt Busiek encerra o segundo arco desta intrigante mistura de pulp, fantasia e FC conseguindo fugir à questão central: o que é, precisamente, o mundo de Autumnlands, onde a magia pode ser ciência, bárbaros de espada em riste controlam nano-implantes digitais, cariátides são robots inspiradas no mito de pigmalião, animais antropomórficos constroem civilizações, e personagens aparentemente divinos se mostram humanos detentores de alta tecnologia? Suspeito que Lord of Light de Zelazny tenha sido uma das fontes de inspiração desta série. Pelo menos partilham a mistura de FC com misticismo.

Batman #14: Uma vinheta surpreendente, a rematar uma sequência impressionante. Creio que nenhum argumentista se tinha atrevido a tornar tão explícita a relação entre Catwoman e Batman. Tom King surpreende com os seus argumentos discretos, contidos, sólidos mas que se atrevem a desbravar terrenos inesperados.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Dicionário de Lugares Imaginários



Alberto Manguel, Gianni Guadalupi (2013). Dicionário de Lugares Imaginários. Lisboa: Tinta da China.

Nesta era em que cada milímetro quadrado do planeta está mapeado com rigor, observado pelo olhar lenticular dos satélites em órbita, cada recanto registado pelas suas coordenadas no espaço abstracto dos meridianos e paralelos, fotografado nos espectros do infravermelho ao ultravioleta, calcorreado por exploradores, aventureiros ou servos de gigantes tecnológicos apostados em digitalizar o planeta, traçado em atlas e mapas pixelizados, precisamos talvez mais do que nunca de espaços desconhecidos, de vazios nos mapas que prometem dragões e ao fazê-lo despertam os voos mais exóticos da imaginação humana. Foi este o meu primeiro pensamento ao folhear este delicioso tomo. Escrevi isto antes de o abrir com olhos de leitor, e só depois li o fantástico prefácio de Manguel, que espelha com precisão esta necessidade de imaginar o desconhecido na era onde as luzes do conhecimento iluminam o mais recôndito, longínquo ou obscuro. Não só, mas também o fascínio pelos voos de imaginação, pelos locais que existem em mapas que mapeiam não a geografia física mas os escolhos e penedos da imaginação sonhadora.

A lista é longa e exaustiva, itemizada de A a Z. Duvido que tenha esgotado as geografias imaginárias da literatura. Não vi por lá referências à FC, tendo os autores ido beber às especulações filosóficas, história antiga, fantástico, fantasia e surrealismo. Depois do longo mergulho nos apontamentos sobre estes mundos, há padrões que se fazem notar. Um é o óbvio encantamento dos autores por uma certa fantasia épica, bem como de alguma fantasia infantil. Richard Adams, Ursula K. LeGuin e Tolkien têm um peso muito elevado nas entradas deste dicionário. Os mundos de Oz e Dr. Doolittle não são tão interessantes quanto o peso que têm neste livro. O outro grande padrão é a evolução conceptual dos mundos de ficção. Apesar do livro não estar ordenado de forma cronológica, nota-se que há uma evolução das geografias imaginárias. Nos textos mais antigos são utilizados como parábola filosófica, utópica, satírica ou religiosa. A tónica está na mensagem que os autores pretendiam inculcar nos seus leitores, e não na coerência dos mundos ficcionais. Um elemento que se altera, com a ficção a explorar estas geografias do imaginário apenas pelo prazer de criar novos mundos, algo que caracteriza a fantasia de hoje.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Aniquilação


Jeff Vandermeer (2016). Aniquilação. Estoril: Saída de Emergência.

Há uma deliciosa inversão ballardiana neste romance, primeiro de uma trilogia, de Jeff Vandermeer. Ao lê-lo, é impossível não recordar os romances-catástrofe de J.G. Ballard, onde personagens solipsistas explorar as suas psicoses em paisagens de catastrofismo barroco naturalista. A referência mais óbvia é The Drowned World, com as suas assombrosas visões de uma Londres transformada num pântano luxuriante, com a arquitectura semi-submersa matizada pelos verdes de uma natureza em revolta. Há muito disso nas descrições que Vandermeer faz da sua surreal Zona X, um misto de pântano floridiano com paisagens dos sonhos de Max Ernst, zona de biologia misteriosa que vai engolindo, lenta e metodicamente, as zonas circundantes.

Os seus mistérios são sondados por expedições sucessivas, enviadas por uma agência secreta num misto de procura de conhecimento e pânico. A zona já engoliu povoações, e poderá ter no seu cerne uma estranha criatura que absorveu os seus habitantes. Criatura que reside no fundo de um poço espiralado, cujas paredes se encontram cobertas por inscrições sucessivas escritas por um fungo bioluminescente. É também uma área onde nada do que é moderno funciona, e os exploradores têm de depender de meios mecânicos antiquados para registar as bizarrias da fauna e da flora.

A grande força deste livro é a sua iconografia, a forma como concebe uma natureza em mutação que ameaça engolir uma normalidade humana que lhe é indiferente. A constante sucessão de selva, imaginada sob um céu azul, plantas em crescimento desmesurado, fungos de efeitos imprevisíveis, estruturas arquitectónicas progressivamente engolidas pelos verdes. É um curioso cruzamento entre a ficção Weird e os temores despertos por uma era onde as alterações imprevisíveis trazidas pelas catástrofes climatéricas já não são especulativas. A história, se tal existe porque a força das imagens é mais avassaladora do que a do enredo, centra-se mais num périplo por esta iconografia, mergulhando-nos no exotismo barroco de uma natureza em mutação.

Nesse périplo somos conduzidos pela mão de uma bióloga, elemento da mais recente expedição à Zona, entre cujas razões para integrar mais uma tentativa que se verá gorada de exploração deste território se misturam a curiosidade profissional e uma busca de respostas pelo destino do marido, que integrou a missão anterior e, como outros membros sobreviventes destas missões, lhe apareceu em casa sem saber como é que tinha saído da área isolada. E talvez não o tenha feito, talvez o que saia das áreas, encarnada no corpo dos exploradores, seja uma manifestação das misteriosas forças fungais que dominam a área X. Mistérios que ficam deliberadamente sem resposta, reforçando a estranheza do livro.

Se o foco de Ballard era nos espaços interiores da alma humana, espelhados pela paisagem decadente, Vandermeer, revendo a iconografia catastrofista sob uma perspectiva de colapso ambiental, foca-se no exterior, no mistério da paisagem, e na vida pessoal das personagens como forma de tornar mais denso o mundo ficcional. Como bom primeiro livro de trilogia, deixa-nos com mais questões do que respostas, marca a mente com as iconografias que invoca. Não consigo deixar o reparo deste ser um intrigante uso ficcional para o poço iniciático da Quinta da Regaleira, uma das inspirações do autor para este romance, que o descobriu aquando de uma passagem por Portugal no âmbito do Fórum Fantástico.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Adventures in Unhistory



Avram Davidson (2006). Adventures in Unhistory: Conjectures on the Factual Foundations of Several Ancient Legends. Nova Iorque: TOR.

And each connection, it is said, shines and glitters, like a jewel.
É deste tipo de pensamento que é feito o substrato do imaginário. Antigos mitos, ideias díspares, histórias que talvez já tenham sido verdadeiras, algures no tempo. Peças desconexas que uma mente inquisitiva poderá vislumbrar como elementos de um puzzle. Este curioso livro de ensaios de Avram Davidson é um pouco isto, uma manta de retalhos de ideias, misturando mito, história, literatura, Ciência e muita conjectura.

As questões que Davidson levanta são algo esotéricas. De onde vieram as fénix, por onde andou Sindbad, quem realmente foi Preste João porque é que o dodó é tão simbólico ou o que anda por detrás das histórias de sereias, entre outras questões que costumam fazer parte dos livros sobre fantasia ou mitologia. Davidson segue um caminho muito pessoal, em vias sinuosas entre história, Ciência e literatura. Esboça hipóteses, que ele próprio aponta como elucubrações, sobre as origens reais dos mitos que ainda hoje nos encantam.

É curioso que nunca segue o caminho mais óbvio de apontar simplismo ou ignorância aos antepassados. Mostra-nos, antes, que se os factos que originaram os mitos se perderam na noite dos tempos, deram origem a histórias que se foram modificando ao longo do tempo. Porque quem conta um conto acrescenta um ponto. Para embelezar, tornar mais fascinante, ou simplesmente desviar as atenções para manter algo em segredo. É impossível não sorrir ao ler a interpretação do autor sobre as estranhas histórias que Heródoto registou como verdadeiras, talvez advindas da capacidade inventiva de nativos com pouca vontade de revelar ao ingénuo forasteiro os segredos do seu território.

Tudo contado com um cunho de oralidade marcante. Mais do que textos literários, estes ensaios soam a palestra, cheios de interjeições e desvios típicos da oralidade, que enriquecem e dão vida à sequência das ideias.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Saga #01

 

Brian Vaughan, Fiona Staples (2014). Saga Vol. 1. Maspalomas: G. Floy Studio.

Termino sempre desconcertado a leitura de Saga. Por um lado, intriga-me o brilhantismo de uma premissa que colide com extremo prejuízo as tropes clássicas da FC e Fantasia. A variante da história de amor entre filhos de casas desavindas, Romeu e Julieta para os shakesearianos, Píramo e Thysbe para os classicistas, aqui representados por um casal de espécies vizinhas mas eternamente em guerra que gera uma filha, alvo do interesse das mais poderosas forças galácticas.

A dualidade entre duas espécies em guerra eterna, uma claramente modelada nos ícones da FC clássica, em  uniformes de Buck Rogers e Flash Gordon e asas truncadas, lideradas por cyborgs robóticos hedonistas cujas cabeças replicam os televisores dos anos 50, a outra uma caricatura de Pan com cornos e poderes mágicos. A guerra por proximidade entre dois vizinhos, habitantes do mesmo sistema planetário, que para não danificarem os seus lares combatem no que eufemisticamente chamam de planetas-cliente, terrenos de luta arrasados com as populações nativas exterminadas ou vendidas para escravatura nos bordéis galácticos. Estranhas estratégias de sobrevivência dos povos subjugados, como a espécie planetária que após o seu extermínio persiste como fantasmas que assombram os combatentes. Perigosos caçadores de recompensas capazes de virar a galáxia do avesso para cumprir os seus contratos. São estes os elementos em colisão nesta intrigante série.

Feitiços, raios laser, foguetões biológicos, estações espaciais, encantamentos, assombrações, fraldas sujas. A junção é muito bem feita, temperando ironia pós-modernista com comentários acérrimos à actualidade. Guerras por proxy? Prisões de combatentes? O dualismo entre terrorista e combatente pela liberdade? Percebe-se bem. Então, porquê o sentimento de desconcerto?

Na verdade, não consigo colocar o dedo no que precisamente é a ironia desta série. Não percebo se é Monty Python, absurdista mas a fazer pensar, ou Benny Hill, hilariante mas acéfala. Por vezes, a colisão Fantasia/FC é demasiado óbvia, as personagens e situações demasiado caricaturais. Noutras, a ironia é fina e intrigante. Uma dualidade que começa logo pelo nome da série, que suspeito ser o que seria se Joseph Campbell tivesse escrito sobre a estrutura do progresso do herói em tom de comédia.

O que Saga tem provado ser é uma saga de sucesso junto do público, com continuidade assegurada na Image Comics e traduções editadas globalmente.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Peer Gynt


Confesso que temi o pior. Aproveita bem o café, vão ser três horas e meia de espectáculo numa sala quentinha que convida ao soninho, disseram-me momentos antes da peça começar. Três horas e meia, no final de uma das minhas habitualmente longas semanas, com o corpo fatigado por uma noite no Super Bock Super Rock. Temi que iria lamentar a minha sanidade em ter vindo ao Teatro Experimental de Cascais assistir à representação de Peer Gynt. E a sala era, de facto, quentinha. Numa noite de verão, quente como um forno de cozedura em lume brando. Aposto que será uma sala acolhedora nas noites frias de inverno. Felizmente, a sala excessivamente quente e abafada foi o pior aspecto desta noite teatral.


Tudo o resto foi uma surpresa avassaladora. Pode parecer uma comparação exagerada, mas não consigo encontrar outra que transmita o quão surpreendente foi este espectáculo. Três horas e meia? Não se sentiram. O cenário austero, uma estrutura que deve ter provocado alguns dolorosos acidentes durante os ensaios, não distraía o olhar com elementos decorativos e convidava a mente do espectador a imaginar os espaços cénicos, direccionado pelo texto, actuações e uns deliciosos figurinos de Fernando Alvarez, entre o realismo clássico e a pura fantasia. Aliás, no registo fantástico dos trolls da montanha ou das lascivas criaturas da floresta, os figurinos estavam fabulosos.

A tradução do texto de Ibsen soube manter o ritmo da poesia e, trabalho certamente mais difícil, o sentido das rimas. Quando, por exemplo, o Bøyg diz dá a volta, não é de um gesto físico que se trata, mas de toda a atitude de dar a volta aos problemas, e percebemos isso. O humor, as camadas de sentido, o ritmo poético foram preservados pela abordagem ao texto.


Foram três horas e meia, disse? Só se sentiram pelo calor na sala. O ritmo foi muito rápido, com um enorme dinamismo nas cenas. Quase frenético, nalguns momentos. Fiel à vertente musical desta peça clássica, houve vários momentos de canção e bailado, em complexas coreografias e com uma qualidade musical que surpreendeu. Os esforços de Natacha Tchitcherova e Ana Neves na coreografia e canto, respectivamente, traduziram-se em cenas encantadoras e de elevadíssima qualidade, especialmente levando em conta a grande quantidade de actores em palco a cantar e dançar ao vivo. Já na banda sonora Grieg foi o obrigatório ponto de partida, mas a peça não seguiu o caminho do bailado e buscou outras sonoridades. E até influências cinéfilas. Quando vemos actores a pular como macacos (e a fazê-lo mimetizando muito bem os movimentos dos símios) à volta de Peer enquanto se ouve o Zarathrustra de Strauss, sabemos que a piscadela de olho a 2001 é intencional.


Nada disto funcionaria sem actores no topo do seu desempenho. O elenco incluiu veteranos, com uma Maria Vieira apaixonante como Aase, mãe de Peer, a oscilar na perfeição entre o humor e o trágico. Constança Rosa como Solveig traduz a iconografia da delicada e apaixonada donzela nórdica. Mas o palco, aliás, a noite, pertenceu a José Condessa a incorporar Peer Gynt. Leiam "pertenceu" com o mesmo sentido que os l33tspeakers dizem pwnd. Tudo gira à sua volta, em três horas e meia incansáveis, que começam com um registo energético e intencionalmente pueril mas terminam com amargura e possível redenção. Sempre imparável, Condessa levou-nos às aldeias norueguesas, aos desertos africanos, aos mares revoltos e ao regresso a um lar que se desvaneceu em busca da vida de que se fugiu. É a força e energia que imprime ao seu desempenho que, de facto, sustentam esta peça.

Resta sublinhar o trabalho dos restantes actores, que nos leva à grande ambição revelada nesta produção. Os veteranos ancoravam o trabalho de finalistas e alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, mas o trabalho destes foi de excelência, A peça não funcionaria sem o melhor desempenho de todos. Um dos aspectos surpreendentes foi a qualidade do desempenho destes alunos numa peça que teve o seu quê de prova de aptidão final de curso profissional. Quanto à ambição, note-se a coragem do encenador Carlos Avilez a levar em diante esta representação com largas dezenas de actores em palco. Sublinho o largas dezenas. Funcionou, encantou e espantou.


Ibsen caminhou entre o naturalismo, o fantástico e o proto-surrealismo nesta peça onde pegou em lendas do substrato de folclore noruguês, legando uma história intemporal que nos leva a questionar se todos nós, aqueles que mantém vivos os seus sonhos e não desistem de resistir aos sufocos têm algo de Peer Gynt dentro de si. Isso, a impossibilidade de retornos, a acção na inacção, aspectos focados num texto que têm uma forte componente de magia e fantasia clássica. Algo que esta representação também sublinha. Os antros do rei da montanha são um excelente exemplo, tal como o orientalismo das arábias imaginárias com odaliscas e dunas, ou, na mais magistral de cenas magistrais, a tempestade em alto mar onde o corpo dos actores e um vago fumo como efeito especial chegam para conjurar uma portentosa tormenta. Um tecnólogo como eu, apaixonado pelos efeitos das tecnologias e por dead media, não pode deixar de reparar na referência à daguerreotipia como uma nova tecnologia capaz de fixar o espírito que ouvi algures na peça. Suspeito que o texto de Ibsen, disponível no Projecto Gutenberg, se irá tornar leitura próxima.

Só não se perdoa o forno abafado que é a sala do TEC. Foi uma provação para a sala esgotada, e certamente que também para os actores. No restante, no que realmente importa, Peer Gynt é uma encenação excepcional, ambiciosa, que agarra quem a vê, com um ritmo e dinamismo imparáveis. Está em cena até dia nove de agosto no Teatro Experimental de Cascais. Diria que é imperdível para conhecedores de teatro (coisa que se deve notar que não sou). Para fãs do fantástico nas artes, digamos que é uma belíssima experiência ver o texto desenrolar-se aos nossos olhos pela voz e postura corporal dos actores. Peer Gynt tem o seu quê de existencialismo, mas também nos leva para mundos feéricos povoados por sensuais leiteiras, trolls egocêntricos, implacáveis demónios e a voz incórporea do bøyg. Fantástico, no sentido clássico do termo. E não vão precisar de café, mas levem água que a sala é uma sauna que vos irá desidratar.

Imagens descaradamente surripiadas à página Facebook do Teatro Experimental de Cascais.

quinta-feira, 12 de março de 2015

The Whispering Swarm


Michael Moorcock (2015). The Whispering Swarm. Nova Iorque: TOR.

Numa entrevista recente Moorcock referiu que este livro será, provavelmente, a última vez que conseguirá tentar fazer algo de novo em literatura. É notável que um veterano de longa idade resista ao conforto dos seus louros e insista em inovar na sua prosa. O resultado é um pouco desconcertante. The Whispering Swarm lê-se demasiado como o Hemingway de A Moveable Feast, embora contada por um exímio fabulista que entretece o fantástico com o real. Boa parte do livro incide num Moorcock auto-biográfico que nos fala e reflecte sobre a sua vida, a sua dedicação à literatura e as aventuras na Londres dos swinging sixties. No meio das muitas histórias da sua vida vai colocando pitadas de sobrenatural, que incrementa gradualmente até ao momento em que o fantástico que tanto desejamos toma conta do livro e coloca de lado a biografia do fabulista.

O romance não tem sido bem recebido pelo público, talvez por ser tão desconcertante e contrariar expectativas. Esperamos algo dentro do fantástico tradicional e sai-nos uma autobiografia fabulista em que a vida real vai perdendo terreno para um imaginário táctil ao longo das páginas. Algo que certamente desagradará aos fãs mais hardcore que estariam à espera de mais umas espadeiradas moralmente ambíguas à Elric ou deslumbres proto-steampunk com Cornelius.

No seu cerne está um mistério sondável, e um conceito fascinante para aqueles que como eu adoram os jogos geométricos do espaço urbano. Moorcock faz situar no centro histórico de Londres um local onde as regras do tempo se alteraram. Atravessar os portões e entrar no quarteirão junto ao rio que designa como Alsacia é entrar num mundo onde passados, presentes e futuros se misturam. Uma espécie de zona franca dos tempos possíveis, onde personagens históricos e ficcionais se mantém vivos para lá do seu tempo. Um local que parece fixo num eterno século XV, completo com casas soturnas à beira-rio, verdadeiras estalagens de taberneiros e um templo nominalmente cristão no seu epicentro. Um espaço isolado do fluir do tempo, mas que não lhe é imune. A arquitectura fixou-se num pós-medievalismo, os habitantes vivem num perpétuo século XV, os personagens das ficções pulp das várias eras partilham canecas de boa cerveja na estalagem, mas os artefactos das eras mais recentes encontram-se nas lojas e o jornal da abadia no centro do quarteirão é impresso nas gráficas da vizinha Fleet Street. Afinal, um jornal é um jornal, porque não ser impresso onde o eram os maiores jornais londrinos?

Em parte, este romance é um hino à cidade, a uma Londres vivida, nostálgica e idealizada, talvez longe do recreio europeu dos super-ricos em que parece estar a tornar-se. Hino à Londres do passado real de Moorcock, entre os swinging sixties, os clubes de música, as redacções dos jornais e revistas por onde passou. E hino à Londres histórica e fabulista, a capturar a imaginação de leitores e escritores.

O lado nostálgico também é perceptível neste livro. A vénia ao pulp clássico, aos heróis dos penny dreadfuls vitorianos ou dos romances juvenis do princípio do século, é muito profunda. Moorcock recupera personagens esquecidos e envolve-se romanticamente com uma aventureira do século XVI, porque, enfim, neste romance a barreira entre a realidade e ficção não existe. Alsacia é um espaço onde a ficção é real. Um dos homenageados é um certo Príncipe Rupert, que Moorcock nunca completa com o óbvio de Hentzau, que viaja pelo mundo em busca de elementos para um artefacto de mecânica cósmica e envolve Moorcock numa atribulada aventura para tentar salvar o pescoço do rei inglês deposto do machado dos algozes do parlamento de Cromwell, aventura cheia de peripécias dignas de Os Três Mosqueteiros. Que, já que os menciono, são personagens que também participam no livro. Refira-se que a homanegem às narrativas aventureiras do passado também é expressa pela própria estrutura do livro, feita de pequenos capítulos que se seguem a bom ritmo e deixam sempre algo em suspenso para ser continuado no seguinte.

Moorcock não faz grande segredo do artefacto guardado pela estranha ordem de monges que, nas suas próprias palavras, não se chateiam que sejam confundidos com cristãos porque isso lhes facilita a vida. Curiosa ordem sincrética, que conta entre os seus membros dispersos muçulmanos, judeus, budistas e hindus. Veneram a essência do divino sem se preocupar com a forma exterior e guardam um velhote quase eterno, um rabi de sabedoria intemporal.

The Whispering Swarm é um livro desconcertante. Não é o que se esperava do autor, com uma mistura entre ficção e auto-biografia que apesar da excelente prosa se torna por vezes cansativa. A veia geográfica, a homenagem à ficção popular de outros tempos e a um espírito mais inocente intrigam os leitores mais conhecedores das referências de que o autor se apropria. É daqueles livros que nos agarra sem que saibamos precisamente porquê.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

When altruism wasn't silly.


"I was a child of the innocent '60s and '70s, we thought we'd abolished misery, when it seemed so little effort was needed to build utopia. When altruism wasn't silly. Or didn't cost you your life."

Palavras amargas mas certeiras, escritas por Michael Moorcock nos primeiros capítulos do seu mais recente romance, The Whispering Swarm. Capturam o sentimento de mal estar com a contemporaneidade neo-liberal. Capítulos curiosos. Em vez de nos mergulhar no mundo ficcional do livro, leva-nos a uma Londres de forte recorte auto-biográfico. Apetece cruzar a biografia ficcionada do Moorcock deste romance com a do autor e ver até que ponto somos desviados do real pela prosa treinada de um mestre do fantástico. Moorcock é um fabulista consumado, por isso há que desconfiar do que parece verosímil. Porque, camuflado em pequenos detalhes que se vão multiplicando, o mundo ficcional do romance está lá. Paralela à Londres animada dos anos 70 está uma Londres intemporal que só o olhar de alguns consegue vislumbrar.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ficções

Attack of the Giant Ants: Marabunta para a hipermodernidade. Um conto leve de Rudt Rucker que imagina formigas mutantes inteligentes e adaptáveis a invadir a cidade de São Francisco, acordadas de um longo sono nas profundezas pelos terremotos induzidos pela extracção de petróleo por fracking. Quando o Terraform ameaçou que queria publicar FC com o pulso na contemporaneidade, era isto que eu temia: grandes nomes a despachar uma historieta para enquadrar na temática. Confesso que dos que abriram esta variante do Vice Motherboard dedicado à FC só o do Bruce Sterling me impressionou.

Targeted Strike 2: Judgement Database: Não percebi. A sério. Não percebi. Isto é uma história de FC militarista? Uma variante da estrutura clássica da guerra futura? Uma sátira ao gaming e aos filmes de acção que usam FC militarista como adereço? Fiquei sem perceber. Estes elementos estavam todos dentro deste conto, mas não havia uma linha clara que nos indicasse onde o conto quer chegar. E, ao contrário de ficções mais arrojadas que fazem da inexistência de fios condutores excelentes contos, supõe-se que este pretendia chegar a algum lado.

Father Christmas A Wonder Tale Of The North: Charles Vess a escrever ficção? Sim, é encantador. E a sua ficção escrita é tal e qual o seu grafismo. Classicista, feéerica e inocente, com uma clareza de imagética que mostra porque é um dos melhores ilustradores contemporâneos de fantasia. A história em si é simples, uma variação sobre lendas do pai natal com trolls e muita ambiência mítica das florestas geladas da europa do norte. Encanta pelo classicismo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Contos do Androthélys


António de Macedo (1993). Contos do Androthélys. Lisboa: Caminho.

O equilíbrio mágico entre os ditames do coração e os do intelecto é frágil, bem sabe o endiabrado Androthélys, criatura angelical das esferas superiores que começa a desesperar com a orientação de Vallatius, aprendiz de magia superior que já vai na sexta encarnação sem conseguir aceder às esferas etéreras. A causa é a sua paixão culposa por uma Sílfide que está disposta a perder a sua imaterialidade por amor. As pulsões carnais atrapalham a ascensão, ou talvez não. A corrente encarnação de Vallatius está num humilde guarda-livros lisboeta, cuja vida cinzenta e apagada é irremediavelmente transformada por um estranho encontro nocturno com um árabe livreiro que por preço simbólico lhe dá os mais raros livros de esoterismo, e com isso despoleta uma aventura em que os sábios etéreos, mestres de Vallatius, se descobrem ameaçados por uma terrível força sobrenatural. E no final o que salvará os sábios e os outros é o amor entre o aprendiz e a sílfide. Mas talvez o Androthélys sempre tenha sabido isso, mantendo distâncias e provocando sobressaltos para testar a força do amor.

Em tom de parábola inspirada na literatura mágica, este livro é um mergulho na poesia esotérica de António de Macedo. É sempre interessante ler a forma como o romancista e realizador de cinema, homem dedicado ao Fantástico nas artes, sublima a tradição de conhecimento esotérico através de histórias cheias de poesia onírica, com o seu inimitável bom humor.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Comics


The Manhattan Projects #25: Vinte e cinco é um belo número para Hickman e Pitarra colocarem este comic bizarro em pausa. A tempo de não se perder em repetições, da insanidade surreal não se diluir na regularidade. Uma pausa, não um fim. Hickman ganha fôlego para regressar em maio com nova série dentro deste universo ficcional tão peculiar. Até lá, Oppenheimer domina o mundo mas prepara-se para um confronto com a xenocracia soviética, Von Braun será talvez vivissecado por alienígenas, os Einsteins e Feynman domesticam Terras paralelas, e Gagarin irá reencontrar-se com a sua Laika, antropomorfizada por efeito de tecnologias evolucionárias no espaço profundo. A high weirdness deste comic promete continuar.


ODY-C #01: A intemporal Odisseia em tom de space opera. Matt Fraction revisita um dos textos seminais da tradição literária ocidental, com ilustrações deslumbrantes de Christian Ward. Pena é que a prosa clássico-futurista do comic ronde o ilegível. A poesia homérica não é rica em facilitismos linguísticos, e Fraction a tentar ser um Burguess dos comics é daquelas coisas que não funciona. Refiro Burguess porque o seu Clockwork Orange é um exemplo perfeito de como criar prosa futurista que funciona em termos literários e não dispersa o leitor.


Trees #07: Trees, o comic onde nada acontece... de central. As personagens principais quedam-se imóveis e insondáveis. Toda a acção decorre à sua volta. Os dramas, as paixões, os conflitos. As árvores alienígenas parecem imutáveis, apesar de indícios alarmantes detectados por cientistas isolados. À sua volta fervilham como formigas as vidas humanas, sobrevivendo nos ambientes de normalidade catastrófica que tanto fascinam Warren Ellis.


Shadow Show #01: Calhou a Joe Hill o argumento deste primeiro número de um comic dedicado a Ray Bradbury. O seu objectivo é interessante: não mais uma adaptação das obras clássicas do autor (e disso já há muito por aí), mas histórias de autores contemporâneos que se inspiram no estilo de Bradbury. E Hill arranca muito bem e em cheio, com um conto que espelha muito bem aquele misto de inocência, maravilhoso e horror que caracteriza a obra de Bradbury. O trabalho de ilustração foge ao realismo habitual nos comics sem dele se distanciar muito, tornando este Shadow Show visualmente interessante.


Wayward #04: Uma intrigante série Young Adult da Image, onde uma jovem irlandesa vai viver com a mãe japonesa. As agruras da adolescência, do habituar-se a viver noutro país com uma mãe que mal conhece são tornadas mais complicadas quando a adolescente manifesta poderes sobrenaturais e se cruza com uma por vezes encantadora, por vezes arrepiante visão do sobrenatural japonês. As ruas de Tokyo estão cheias de espíritos inquietos e criaturas monstruosas, e a jovem adolescente vê-se no epicentro do que poderá ser um evento catastrófico planeado por forças ocultas.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Comics


The Annihilator #03: Livre dos constragimentos das editoras mainstream, Grant Morrison mergulha-nos num psicadelismo introspectivo deliciosamente ambíguo. Estaremos a assistir às alucinações de um argumentista com um tumor cerebral? Será uma história de FC clássica com alienígenas a invadir a terra e um herói galáctico para a defender? Será uma introspecção sobre o processo criativo? Esta vinheta em que a história é um cancro na mente do escritor deixa-nos a pensar.


The Multiversity Pax Americana #01: Segunda dose de Grant Morrison, desta vez no épico Multiversity. Leva-nos a Earth-4, onde os heróis são os adquiridos pela DC à Charlton Comics, aqueles em que Alan Moore se baseou para o marcante e incontornável Watchmen. Aliás, este Pax Americana lê-se como Watchmen reescrito por Grant Morrison. Percebe-se a vénia a Moore, dentro da complexidade multimensional cujo fio condutor é a revista de banda desenhada que contamina os mundos paralelos. Este é um momento forte e implacável da série, com Morrison a não poupar os leitores com super-heróis rendidos ao establishment, outros amorais e outros que condescendem em tratar os inferiores humanos como se realmente os primatas ruidosos fossem dignos de atenção. Estou curioso com a próxima paragem da convoluta narrativa, e especialmente curioso sobre como irá Morrison encerrar a série. Será que no final tudo encaixará e fará sentido?


Victorian Secret Steam Queens #01: Há muito pouco de steam e vitoriano nesta edição saída de uma editora especializada em steampunk. Variante de War of the Worlds, adopta um sólido e cativante estilo dieselpunk. As publicações da Antartic Press não se distinguem pela complexidade narrativa, apesar de terem um certo encanto ingénuo de steampunk à solta. Visualmente, esta variante dieselpunk surpreende e agrada,


Tooth and Claw #01: Outra boa surpresa visual, com um argumento intrigante. Os talentos combinados de Ben Dewey e Jordie Bellaire dão vida com o melhor da estética do fantástico com toque steampunk. O argumento de Busiek promete. Dá-nos a entender que esta história de mito e magia se passa num futuro onde a magia é real e os animais antropomórficos falam. Mas houve um passado, e intui-se que a faísca da magia terá sido despertada por um humano. Parte de mim quer que a narrativa de fantasia mágica clássica continue, outra parte intui qualquer coisa no domínio das virtualidades e da tecnologia entendida como magia, numa espécie de Doutour Moreau cyberpunk. Intrigante, muito intrigante.