quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Comics


Afterlife With Archie #01: Pronto, esta foi inesperada. A Archie Comics especializa-se num grupo de personagens eternamente adolescentes centrado no epónimo Archie, teenager prototípico à volta do qual se reúnem duas eternas rivais pelo seu coração e um grupo estereotipado de amigos. Não é anormal fazerem edições especiais de halloween com horrores da noite mas nunca saem do registo de humor leve em estilo cartoon. Isto torna este Afterlife ainda mais surpreendente. O argumento está a anos-luz do simplismo normativo da editora, dando uma profundidade inusitada a alguns dos mais bidimensionais personagens dos comics. Os conhecedores ficarão surpreendidos ao ver um Archie farto das óbvias predações sexualizantes da ricaça Verónica e da girl next door Betty. Jughead passa de comic relief a adolescente solitário que se defende com uma persona idiossincrática das pressões sociais. Reggie disfarça traumas interiores debaixo do ar de machão. Nem a simpática Sabrina, a bruxinha adolescente, se livra de umas tias que debaixo da bonomia ocultam poderes aterradores. Wow. Isto de facto é inesperado. A história inspira-se declaradamente em Pet Sematary de Stephen King, com o inevitável baile da escola (talvez dos mais batidos cenários das aventuras adolescentes da Archie Comics) a ser interrompido por um surto de zombies. Para rematar em cheio Francesco Francavilla ilustra com um estilo que está a anos-luz do visual a quatro cores claras habitual nestes comics. Realmente surpreendente.


Constantine #07: Eu sei que me estou a repetir, mas é deprimente acompanhar a decadência acelerada de um grande personagem. Depois da subtileza psicológica de Hellblazer, temos os raios mágicos de Constantine. Vou repetir. Raios. Mágicos. Que por enquanto saem das mãos, mas em breve ainda veremos o herói a fazer um ar concentrado para saírem raios da cabeça. Para compor a irritação, personagens cuja duplicidade era o seu encanto, como Mister E ou Sargon, ficaram reduzidos à mais plana bidimensionalidade. Se bem que Sargon, agora filha do original, enquanto jovem sensual deve fazer disparar as hormonas do público adolescente que é claramente o alvo desta reinvenção de John Constantine. Não vem mal ao mundo que uma editora se focalize em lucros a curto prazo, mas uma dica: a maior parte dos adolescentes quando cresce deixa de comprar comics. Os fãs adultos mantém a DC como pináculo crítico com alguns dos melhores exemplos do comic como transcendente de fronteiras mas a editora tem feito pouco por esse público-alvo mais afluente. A longo prazo talvez não seja a melhor ideia, até porque há limites para a quantidade de reimpressões de Sandman e outros títulos da era dourada da Vertigo.


Cryptozoic Man #01: A menção de comic mais WTF da semana vai para esta coisa bizarra da Dynamite Entertainment. A leitura nem sequer é compreensível, o que não augura grande coisa para as capacidades narrativas do argumentista.  Mas olhem para a premissa: cenário apocalíptico. Porquê? O texto teria de ser compreensível para se perceber. Um homem alterado por alienígenas para lutar não se percebe bem se a favor se contra a humanidade. Este herói reúne literalmente as características de seres criptozoológicos como o Yeti, Mothman, Chupacabra ou Sasquatch. E quando escrevo literalmente é mesmo isso que quero dizer, caso a imagem não pareça suficientemente ilustrativa. Este herói luta contra uma criatura de ar humano que se oculta debaixo de uma máscara de porco cor de rosa. Só me resta perguntar: o que é que estes tipos tomaram ou fumaram quando criaram isto?


Three #01: Kieron Gillen está a subir depressa na lista de argumentistas a manter debaixo de olho. Assina na Avatar Press o divertido Über, misturando super-poderes com nazismo e II guerra num registo que, sendo para a Avatar, não tem limites para a violência. Agora surpreende com esta nova série para a Image, escrita, segundo as palavras do próprio, em reacção contra as incoerências deliberadas de 300. Debaixo do estilismo admirável um Frank Miller fascizóide tentou passar a mensagem de que a liberdade e pureza ocidentais foram defendidas da ameaça dos orientais degenerados por um punhado de corajosos espartanos, super-homens na visão mais nietzeschiana da coisa. Ignorou deliberadamente que os espartanos não eram corajosos amantes da liberdade mas sim tiranos esclavagistas, provenientes de uma cidade de clivagem social extrema onde a elite espartana dominava em absoluto sobre a sub-humanidade hilota. Como tiranos esclavagistas defensores da liberdade é coisa que soa mal, Miller optou pelo tratamento hiperbólico da coragem absoluta dos defensores isolados dos bastiões ocidentais, tal como Spengler escreveu e Hitler se inspirou.

Bolas, meti Hitler no argumento e agora a discussão terminou. Regras da internet.

Sempre que releio 300 admiro o grafismo mas descubro cada vez mais camadas de racismo e conservadorismo fascista oculto sobre uma leve pátina libertária no texto de Miller. Kieran Gillen, sem escamotear a importância dos históricos 300 (que contando com os seus hilotas cooptados para a batalha seriam se calhar mais de 600), quer colocar a nu o real carácter espartano. E consegue-o logo nas primeiras vinhetas, quando sobrepõe sons of the masters - sons of the free no retrato que faz. Liberdade oligárquica é um paradoxo que alimenta esta série e uma visão de alerta perante um momento contemporâneo em que os valores de liberdade democrática estão sob ameaça de um novo fascismo oligárquico-financeiro que está a esforçar-se por regredir a tradição ocidental aos tempos pré-iluminismo em nome do lucro desmedido, distorcendo conceitos tão nobres como mérito, sustentabilidade e respeitabilidade.