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quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Welcome to Night Vale
Josef Frink, Jeffrey Cranor (2015). Welcome to Night Vale. Nova Iorque: Harper Perennial.
Confesso que não esperava que este livro me desiludisse tanto. Para quem desconhece, Night Vale é um genial podcast que, mimetizando um programa de informação na rádio, transmite as notícias sobre a estranha comunidade de uma cidade perdida no tempo. A voz alegre de Cecil, o apresentador, discute os terrores da vida, anota as tragédias que assolam constantemente os habitantes, e transmite as instruções rigorosas da polícia secreta cujas ordens não devem ser ignoradas. É um podcast brilhante, que brinca, cheio de elegância e absurdismo, com as iconografias e pressupostos da ficção de terror.
Escalar o conceito de formato áudio para livro é um passo lógico, que permitiria explorar mais a fundo o interessante mundo ficcional de Night Vale. Nesse sentido, o livro é bem sucedido, mergulhando mais a fundo nalgumas das bizarrias da vila, que formam a base do podcast. Como, por exemplo, as criaturas aterrorizantes que são as bibliotecárias da biblioteca, local onde raros são os bibliófilos que entram e sobrevivem para contar a história.
Há uma tremenda dissonância entre o carácter absurdista do mundo ficcional e um romance que depende de linearidade narrativa. É aqui que o livro falha. Tenta envolver-nos nas histórias confluentes de duas personagens, atraídas por palavras indeléveis misteriosas e que ganham coragem para enfrentar os vários perigos e desvendar o mistério, mas não consegue. Estas passagens são duras de ler, pesadas, e não envolvem o leitor nem despertam a sua curiosidade. O que vai safando a leitura são as interjeições saídas do podcast, com o omnipresente programa de rádio que domina a vida da cidade.
Como romance de terror, Welcome to Night Vale falha. Morno, fraquinho, sem especial interesse. Funciona melhor como expansão do mundo ficcional, com o formato narrativo a permitir aprofundar elementos que, necessariamente, ficam difusos no podcast. Talvez a real falha do livro seja a manifesta incapacidade dos autores de transpor para o livro o elemento que dá ao podcast o seu toque especial, a liberdade associativa de ideias assente na oralidade. Convenhamos, também não é uma tarefa fácil.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
The Land of the Green Man
Carolyne Larrington (2015). The Land of the Green Man - A Journey through the Supernatural Landscapes of the British Isles. Londres: I. B. Tauris.
A leitura deste livro mostra-nos o quanto a literatura fantástica está contaminada pela visão vitoriana do folclore tradicional das ilhas britânicas. O que não é em si surpreendente. Os autores que deram forma à visão contemporânea de fantasia, Machen, Lewis, Tolkien, Gaiman, entre outros, foram beber inspiração às suas raízes. É destas raizes que a autora nos fala nesta obra que percorre um caminho periclitante entre estudo académico e divulgação literária.
Pela mão conhecedora da autora, claramente mais erudita do que faz transparecer, somos levados num périplo pelas lendas e tradições das ilhas britânicas, histórias passadas de geração em geração que antecedem a história da anglicidade. Terras submersas, criaturas de terror que exercem predação sobre humanos descuidados, a dualidade amoral das fadas, seres telúricos cujas interacções com os homens se saldam em tragédia, bruxas, lendas arturianas, dragões e essa colisão entre nostalgia por um passado mitificado e as pressões ecológicas que é o homem verde, constructo relativamente recente. São alguns dos elementos que redescobrimos neste livro.
Escrevo redescobrimos porque são temas e personagens que nos são familiares da iconografia da literatura, banda desenhada e cinema. A autora mostra muito bem os paralelismos entre as lendas tradicionais e algumas das obras mais conhecidas e marcantes da literatura fantástica. Mostra também como essas visões foram recolhidas no século XIX por uma legião de clérigos e personalidades locais que, ao preservar as narrativas tradicionais, não resistiram a alterá-las com toques típicos da sensibilidade vitoriana, enfatizando o romantismo e eliminando a sexualização patente em muitas lendas. É difícil não reconhecer aqui um dos elementos característicos da fantasia literária contemporânea.
sexta-feira, 9 de outubro de 2015
Our Robots, Ourselves: Robotics and the Myths of Autonomy
David Mindell (2015). Our Robots, Ourselves: Robotics and the Myths of Autonomy. Nova Iorque: Viking.
O ponto mais interessante dos argumentos sobre robótica autónoma deste livro é o equilíbrio que mantém entre visões de deslumbramento e apocalípticas do impacto social e histórico destas tecnologias. Coisa rara. O mas habitual é ler-se um deslumbramento total, com a robótica como mito salvífico que irá libertar a humanidade do jugo do trabalho sem sentido (pensem Hans Moravec, e todos os que postulam vidas de ócio possibilitadas por servos mecânicos). Ou, corrente mais contemporânea e influenciada pela crise global que atravessamos, visões tenebrosas onde software de automação e robots pulverizam empregos e carreiras, beneficiando elites dominantes enquanto condenam uma grande parte da humanidade à indigência. Já Mindell tem os pés mais assentes na terra, especialmente porque se torna notório ao longo do livro que não é teórico ou economista, mas sim engenheiro com uma larga experiência nalguns dos mais icónicos projectos de robótica autónoma. Quando se participa nas equipas de trabalho multidisciplinares que constroem e operam robots autónomos, a visão do omnipotente robot overlord desvanece-se face às fiabilidades, avarias, inconsistências, bugs de sistemas que obedecem primariamente às leis de Murphy.
Mindell conduz-nos através de algumas das vertentes de investigação neste campo, passando pela automação de sistemas aeronáuticos, robots submersíveis, drones militares, veículos autónomos e exploração espacial. São retratos que tece com detalhe por vezes excessivo (há parágrafos que são melhor legíveis na diagonal, o argumento está feito, os exemplos dados, o resto é acessório, interessante mas não fundamental). A imagem que transparece é uma de simbiose entre máquinas e humanos, em vários níveis. Sublinha o quanto a dependência de sistemas automatizados pode prejudicar o sentido crítico de quem os utiliza, com consequências potencialmente fatais. Mostra que as possibilidades da telepresença criam um sentimento de imersividade nos utilizadores. E, fundamentalmente, aponta para a omnipresença do factor humano mesmo na robótica mais avançada. Somos nós que a concebemos e programamos, e as nossos pressupostos influenciam directamente a sua concepção. Este é o argumento mais pertinente de um livro intrigante, que segue um caminho sóbrio e intermédio, ancorado na experiência prática, na reflexão sobre práticas e consequências da robótica e automação.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Leituras
A maturidade dos jogos de computador enquanto media de expressão artística é sublinhado pela existência, hoje, de crítica séria, capaz de contextualizar e dissecar videojogos para além dos domínios técnicos e intrísecos ao tipo de jogo. Ian Bogost tem-se distinguido quer pelo seu trabalho académico quer pelos projectos que desenvolve no domínio do serious gaming. Também faz crítica, sendo mais acessível aos leitores globais através das crónicas que escreve para a revista The Atlantic. Este livro colige algumas das crónicas de Bogost, onde analisa com profundidade elementos do campo dos videojogos, desde as aplicações mais populares às implicações artísticas dos jogos criados por independentes. Coloca em evidência aspecto ligados à criatividade, técnica, narrativa e contextualização económica e social. Apesar de uma prosa por vezes fortemente elaborada, é um livro incisivo que expande os horizontes da cultura dos jogos.
Olivier Le Carrer (2015). Atlas of Cursed Places: A Travel Guide to Dangerous and Frightful Destinations. Nova Iorque: Black Dog & Lewenthal Publishers.
Os paraísos são sobrevalorizados. Este curto livro leva-nos ao outro lado do paraíso. Aos locais de terror, às terras amaldiçoadas pela história ou pela economia, aos sítios das lendas tenebrosas, aos pontos misteriosos do mapa. Leitura curta, não se distingue pela profundidade, sendo mais capaz de despertar a curiosidade de jovens leitores.
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
Styx
Bavo Dhooge (2015). Styx. Nova Iorque: Simon & Schuster.
Raphael Styx é um típico polícia veterano, corrompido pelo sistema. Acredita piamente na justiça enquanto espanca suspeitos e faz negócios com criminosos ligados ao contrabando. Também acredita na felicidade familiar, apesar do filho não lhe falar e a mulher estar cheia de vontade de pedir um divórcio. Tem de aturar na esquadra um chefe demasiado intrometido na sua vida pessoal e um colega novo, um belga de raízes congolesas que decidiu passar a vestir-se como um sapeur após o suicídio da irmã.
Styx está embrenhado numa caça ao homem. A sonolenta e provinciana cidade de Ostende está a ser palco de uma vaga de assassínios macabros cometidos por um assassino em série que se inspira nas obras icónicas dos pintores surrealistas belgas para dispor os corpos das suas vítimas. Quando confronta o assassino, o impensável acontece. Styx é abatido, mas renascerá como um zombie que vai apoderecendo pelas ruas da cidade enquanto continua a busca pelo psicopata. Renascido na morte, confronta os dilemas da sua antiga vida, descobre que é capaz de saltos ao passado para visitar a Ostende da Belle Époque, apercebe-se que de vez em quando convém dar umas trincadinhas em carne humana para se manter um morto-vivo apresentável, e só poderá contar com a ajuda do colega cuja propensão para roupa cara e garrida não consegue compreender.
Um mimo, este pequeno romance policial com um toque de horror do escritor belga Bavo Dhooge. Leitura rápida que desperta e mantém a curiosidade do leitor, faz bom uso das estruturas narrativas do policial com um toque do visceralismo do terror zombie. O recordar das belas artes belgas, com referências a Ensor, Delvaux e Magritte, dão-lhe uma certa elegância erudita. Styx será editado em novembro de 2015.
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Finches of Mars
Brian Aldiss (2015). Finches of Mars. Nova Iorque: Open Road.
A acreditar no que se lê sobre este livro, é com esta vénia que Brian Aldiss despede-se da ficção científica. E que vénia. Finches of Mars é FC depurada, mais próxima do experimentalismo literário legado ao género pela New Wave do que da rígida estrutura narrativa entre aventura e infodump que caracteriza a maior parte desta literatura. O enredo é traçado com grandes pinceladas, sem mergulhar em pormenorizações. Se este livro fosse um quadro, seria uma obra impressionista. Ou uma paisagem abstracta de De Stäel. O todo está lá, mas quando nos aproximamos para contemplar os pormenores esfumam-se nas pinceladas largas.
Fugindo aos pressupostos do que deve ser um romance de FC, assemelha-se a um rascunho estrutural que, nas mãos de outros escritores, daria material para uma infindável série de múltiplos livros que explorariam até à exaustão os inúmeros caminho que Aldiss expressa. A tentação de escreve escritores menores que Aldiss é grande, mas seria incorrecto. Grandes escritores de FC também fariam o mesmo. Mas é bom ler esta capacidade sintética, pegar num livro com o seu quê de épico e saber que não se vai espraiar ao longo de milhares de paginas em diversos volumes.
O título não nos prepara para o romance, embora o defina na perfeição. É algo que só nos apercebemos ao terminar o livro, demonstrando a escrita de um mestre como Aldiss, que nos vai levando pela mão através dos caminhos ínvios da sua mente até a um destino certo. Os tentilhões do título, referência directa à Origem das Espécies de Darwin, são a chave da obra.
Não esperemos um futuro risonho. O futurismo, aqui, é desolador. Estamos num futuro próximo, com a humanidade a começar a dar os primeiros passos no sistema solar. A Lua é habitada continuamente, apesar de haver uma restrição de noventa dias de permanência por razões de saúde. As primeiras bases marcianas, financiadas por uma improvável coligação de universidades, estabelecem a primeira colónia humana no planeta vermelho. Quem para lá vai sabe que não há possibilidade de regresso. Aldiss não é um optimista, sublinhando os efeitos nocivos das viagens pelo espaço sobre o corpo.
Abrigados em torres, os colonos marcianos vivem uma vida regrada na nova fronteira. São assolados por um trágico mistério, que coloca em perigo a viabilidade da colónia. É impossível levar a cabo uma gravidez bem sucedida no planeta, e as tentativas dos colonos traduzem-se numa desolação de fetos nado-mortos. Talvez, intuem, sejam necessárias adaptações biológicas evolucionárias para que os ventres humanos possam parir noutro planeta.
Aldiss não escapa à tentação de povoar o planeta com formas de vida alienígena. Fá-lo com uma espécie de lagartos mamíferos que sobrevive nas profundezas marcianas, onde há água em abundância, e talvez o ecossistema que permite a sua existência. Estranha-se este uso do artifício da criatura isolada encontrada num planeta desprovido de vida, esquecendo que formas de vida complexas não existem por si só mas dependem de ecossistemas, mas as pinceladas amplas do romance abrem espaço a esta ideia.
Sabendo que não há regresso possível, que a vida é difícil num planeta inóspito, que não parece haver esperança numa primeira geração de colonos nascidos em Marte, o que é que os leva a fazer a viagem? Aldiss, claramente influenciado pelos tempos contemporâneos, traça um retrato de um planeta à beira da extinção. As guerras violentas sucedem-se, os mais poderosos países são invadidos e os conflitos envolvem o uso desregrado de armas nucleares. Mesmo no final do livro, Marte perde o contacto com a Terra, e se não nos é dito o porquê, não é difícil intuir.
Para romance de FC, este é especialmente desolador. Mas haverá um bizarro, quase surreal mas também nostálgico, toque de esperança. Os sobreviventes em Marte serão visitados pelo que a principio parecem ser alienígenas, mas se revelam humanos vindos do futuro, seres cuja biologia evoluiu para se adaptar à vida fora do planeta Terra. E os colonos marcianos, que se julgam à beira da extinção pela incapacidade orgânica de levar a gravidez a cabo, são os antepassados directos desta futura humanidade que aos nossos olhos parece alienígena. É aqui que entram os tentilhões de Darwin, referência erudita à teoria da evolução. O momento do primeiro contacto é uma homenagem de Aldiss à FC clássica, com um casal a ser surpreendido por uma nave que aterra e de onde saem três estranhas criaturas que os saúdam. É um momento tão filme de série B que é impossível não sorrir.
Finches of Mars é um romance inquietante. Desolador, longe do optimismo da FC mais actual, mas também a não se meter no campo das distopias. É... diferente. Essa diferença é sublinhada pelo forte lado experimental na técnica narrativa. Não há longos infodumps a enquadrar aventuras bem gizadas. Este romance constró-se em fragmentos, por vezes dispersos, sem um grande esforço em aprofundar as personagens nem em definir os momentos da história. Este carácter fragmentário, em mãos menos experientes do que as de Aldiss, condenaria o livro. Não é o caso. Lê-se como se contempla um quadro impressionista. São manchas fragmentadas o que vemos de perto, e é quando nos afastamos que nos apercebemos da beleza do conjunto.
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Europe at Midnight
Dave Hutchinson (2015). Europe at Midnight. Solaris.
Europe at Midnight parte de uma premissa fantástica para gerar o seu mundo ficcional. Lê-se a bom ritmo, com um enredo interessante que nos mantém agarrados à obra para perceber por onde é que a história se vai desenvolver. Apesar disto, tem alguns defeitos estruturais que dificultam a sua compreensão.
Vamos por partes. Primeiro, o mais interessante. O mundo ficcional deste romance que mistura ficção científica com distopia e policial procedimental desenrola-se num futuro próximo. A Europa colapsou, vítima das pressões trazidas por crises económicas e uma misteriosa pandemia que matou milhões. Os próprios estados colapsaram, com micro-países a irromper um pouco por todo o território de uma União Europeia que parece ainda existir no papel. A Inglaterra já não é um reino unido, com a Escócia e Gales independentes, e a Cornualha a travar uma guerra civil.
Mas há mais territórios, e mais Europas. Numa curiosa mistura entre ficção científica hard e fantasia, Hutchison fala-nos de dois territórios paralelos, pequenos mundos circunscritos que coexitem com o nosso planeta. A explicação para a sua existência mistura topologia n-dimensional com um acto de criação levado a cabo séculos antes por um casal de geógrafos, que ao mapear regiões ficcionais acabou por lhes dar origem. É este o elemento mais interessante do romance, fazendo recordar um dos episódios do arco narrativo de Air, comic de G. Willow Wilson e M. K. Perker, em que os personagens aterram num território encastrado entre a Índia e o Paquistão esquecido pelos mapas. Se bem que a principal inspiração talvez tenha sido a ideia de que o mapa forma o território, tão bem lançada pelo magistral conto Tlön, Uqbar e Orbis Tertius de Borges.
O romance vive de tensões de espionagem e jogos de poder entre o mundo real e as realidades paralelas. Uma é um enorme campus universitário, outra uma segunda Europa que se estende da península ibérica a Moscovo que se assemelha a uma gigantesca Inglaterra idílica. Há pontos de contacto entre os mundos, caminhos que parecem seguir um percurso mas levam a outro. E há algo mais soturno. Se o nosso mundo desconhece as realidades que lhe são paralelas, o mundo universitário vive encerrado numa espécie de redoma conceptual. Já a Europa paralela, colonizada por famílias vindas da Europa real, conhece bem e influencia o mundo mais vasto que está para lá da sua topologia.
São estas tensões que formam uma linha narrativa próxima do romance de espionagem. Oscilamos entre o ponto de vista de um agente de segurança inglês, que descobre, atónito, a existência destes mundos paralelos, e um refugiado do mundo universitário, também ele um agente secreto que se verá envolvido em diversas conspirações que, metodicamente, nos vão revelando os segredos deste mundo fascinante.
É na duplicidade de pontos de vista que o romance falha. Oscilamos entre narração de primeira e terceira pessoa com alguma desconexão, nem sempre sendo aparente quem é o narrador. A sequenciação da linha narrativa depende de uma multiplicidade simultânea de eventos que só nos é apresentada, muitas vezes, demasiado tarde. Apesar destas falhas, é um romance intrigante que desperta a atenção pela premissa em que se baseia. Uma ficção sobre ficções que se tornaram reais. Não resisto a destacar o pormenor da arma cronenberg, uma pistola totalmente orgânica de um só tiro que não deixa quaisquer pistas sobre a sua utilização. Quem se recorda de Videodrome percebe o aceno.
Europe at Midnight será editado em novembro. Esperemos que até lá as inconsistências estruturais que prejudicam um divertido livro sejam limadas graças às indicações dos leitores que leram a ARC.
domingo, 23 de agosto de 2015
City
Clifford D. Simak (2015). City. Nova Iorque: Open Road.
Um livro intrigante, inquietante ao inverter as premissas humanistas da FC clássica. Em City, Simak entrega o planeta aos cães, num sentido muito literal. As espécies caninas vão-se tornar na forma dominante de vida inteligente numa Terra abandonada pelos humanos, partidos em busca de paraísos reais ou virtuais. As histórias, originalmente publicadas em diversas revistas de ficção científica, vão nos mostrar a evolução do planeta ao longo de milénios. O que é para nós um relato, é-nos apresentado como uma lenda, contada pelos fiéis companheiros de uma humanidade da qual apenas guardam vagas recordações. A Open Road reedita este clássico da Ficção Científica em formato digital, respeitando a sua estrutura e adicionando um interessante prefácio que nos ajuda a compreender melhor a obra.
O que intriga neste livro, colecção de contos dispersos com um fio condutor bem vincado, é a forma como Simak antecipa algumas das nossas correntes contemporâneas de ficção científica e pensamento tecnológico. Simak mostra-nos as consequências de um almejado futuro pós-escassez, onde a pobreza é eliminada graças à tecnologia. Fiel ao optimismo tecnocrático vigente nos anos 50, condena a humanidade a um ócio eterno, que a irá estagnar. Visão contrastante com a nossa, que aceita que a pós-escassez, a acontecer, será dominada por uma restrita elite, deixando o resto da humanidade na pobreza.
As transcendências singularitárias são também antevistas nestes contos. Quer com o destino da humanidade, transformada em criaturas pós-humanas, quer com o destino das restantes espécies animais, que com alguma ajuda humana irão evoluir até desenvolverem inteligência e civilizações próprias. Será que David Brin se inspirou nestes contos para a sua série Uplift?
Os impactos imprevistos do progresso tecnológico nas sociedades são também evidenciados nestes contos, com um curioso aceno às virtualidades digitais. Décadas antes de se falar em realidade virtual, Simak fala-nos de uma parte da humanidade que se refugia num sono eterno, habitando mundos electronicamente induzidos.
City: Uma variante progressista de visões de futuro pós-escassez, com a automação, energia abundante e novas técnicas de cultivo a tornar obsoletos os modelos económicos e sociais vigentes. Num futuro destes, as cidades estão a ser abandonadas por populações que já não precisam delas. A pressão social agora é regressar ao campo. Com as quintas tornadas obsoletas por formas de cultura hidropónica e técnicas baratas de construção de casas, qualquer um pode ter uma grande propriedade nos vastos confins rurais. Restam nas cidades os arreigados aos antigos sistemas, incapazes de compreender a profundidade das mudanças, e os que foram levados pela enxurrada da inovação, cujos modos de vida se tornaram obsoletos neste admirável mundo novo. Mas não temam. Simak escrevia no auge do positivismo tecno-científico, onde estas alterações eram vistas como benignas, e onde o conceito de ajuda ao ajustamento funcionaria como mitigante para os impactos negativos de um progresso globalmente visto como positivo. Curioso contraste com as nossas assustadoras visões contemporâneas sobre o progresso da automação e o impacto negativo que terá nas relações laborais. Tem ainda um pormenor curioso, específico da guerra fria: um dos objectivos deste impulso de regresso ao campo foi, em tempos, o de dispersar populações e recursos para minimizar o impacto de possíveis guerras nucleares. Daí parte uma inexorável marcha que mudará a face do planta. Curiosa reflexão de Simak sobre a forma como as consequências previstas dos planos futuristas raramente são aquelas que modelam os futuros.
Huddling Place: Há um nome de família, os Webster, que surge no primeiro conto, com um personagem que resgata a cidade da destruição para a transformar num museu natural. Essa família irá tornar-se o fio condutor das várias histórias que formam este livro. Nesta segunda, um cirurgião de renome vê-se impedido de salvar a vida de um amigo, filósofo marciano, ao descobrir que sofre de agorafobia. Há duas correntes neste conto. Por um lado, o sentimento de segurança quebrável por deslocações como grilhão que começa a prender uma humanidade acomodada na pós-escassez. Os efeitos morais perniciosos da libertação da pobreza e escassez são um tema que estará em evidência ao longo dos contos. Simak parece fazer notar que se as utopias paradisíacas são belos sonhos, sem vicissitudes ou desafios o espírito humano definha. Noutro, directamente relacionado com a sequência narrativa, a morte do filósofo vai negar à humanidade uma descoberta fundamental para a psique.
Census: Um governo mundial a esboroar-se perante uma humanidade cada vez mais rarefeita envia um recenseador até às terras selvagens. A sua missão é a de documentar grupos de humanos cujas mutações lhes conferem inteligência avançada e longevidade. De caminho tropeça na mansão familiar dos Webster, com os seus robots atenciosos e os cães capazes de falar, algo tornado possível graças a experiências médicas que conferiram o dom da palavra aos fiéis companheiros do homem. Já os mutantes revelam-se donos de um intelecto verdadeiramente superior, e o recenseador entrega-lhes o trabalho incompleto do filósofo marciano.
Desertion: Nem toda a humanidade se rende à inércia. Alguns atrevem-se a explorar o sistema solar, desbravando os planetas. Em Júpiter, um cientista e o seu fiel cão decidem-se a enfrentar o desconhecido. Perante o falhanço do regresso de exploradores enviados para o planeta, o cientista e o seu cão são metamorfoseados em criaturas de jupiterianas para tentar concretizar a missão de exploração. Que mistérios se ocultam na atmosfera de Júpiter? Tomando a forma das criaturas gasosas que o habitam, descobrem que a pressão insuportável e a atmosfera de metano são locais idílicos para as suas novas formas, praticamente imortais e capazes de se compreender através de telepatia.
Paradise: Alguém se sacrificou para regressar à humanidade, trazendo-lhes notícias do paraíso. Num curioso artifício, o conto anterior leva-nos a entender que seria o cientista, deixando para trás o seu fiel cão. Neste percebemos que foi o cão que regressou, tomando forma humana graças à tecnologia que permite transformar homens noutras criaturas. As notícias que para atingir um paraíso eterno bastaria à humanidade vir até Júpiter e tomar a forma das suas formas de vida gasosa não é bem recebida. A promessa da felicidade poderá dar a machadada final numa humanidade cada vez mais amorfa. Mas enquanto se debatem com o dilema de divulgar ou não esta notícia, algo estranho acontece. Os mutantes que fizeram a sua aparição em Census revelam o segredo filosófico que se julgava perdido com o falecimento do pensador marciano, e ao fazê-lo despertam uma capacidade psíquica latente na humanidade, tornado todos capazes de ler e compreender pensamentos.
Hobbies: Em cada conto Simak faz-nos avançar uma geração. Como elementos de continuidade temos a família Webster e a sua casa, à qual regressamos num conto que nos mostra uma humanidade cada vez mais rarefeita. A larga maioria optou pela fuga para a pós-humanidade nos céus de Júpiter. Os que restam vão vivendo uma espécie de vida vazia, centrados em Genebra como último centro humano, quase um museu vivo onde os habitantes, libertos de qualquer necessidade, se entregam a um incessável e superficial ócio. E começam a escolher outro destino, optando por uma espécie de criogenização com sonhos digitais, fuga completa à fisicalidade terrestre. Neste périplo sobre um tipo de futurismo proto-singularitário, trazendo à mente esta filosofia futurista antes de ter sido criada, somos conduzidos por mais um Webster, descontente com que sente ser a decadência e ocaso de uma humanidade mais preocupada com a gratificação sensorial momentânea do que com a sua evolução. Mas talvez a fuga da humanidade tenha algo de positivo, permitindo a outra espécie desenvolver-se e atingir o seu potencial. Os cães, cuidadosamente cuidados pelos robots centenários da casa Webster, dotados de fala e capazes de intervir no mundo graças a robots especializados criados especificamente para eles, começam a afirmar-se como civilização, prometendo uma nova forma de vida inteligente sobre a Terra. Não sendo mecanicistas como os humanos, apostam na empatia e nas capacidades perceptivas, sendo capazes de intuir outras dimensões potencialmente habitadas que coexistem com a nossa. Enquanto a humanidade se condena ao ocaso, exilando-se para paraísos eternos, serão os seus fiéis companheiros a herdar o planeta.
Aesop: A referência a Esopo no título justifica-se num conto que faz regressar o planeta ao tempo em que os animais falavam. Passados alguns milhares de anos após os eventos do último conto, restam alguns raros humanos num estado semi-selvagem, vivendo em harmonia numa sociedade onde os cães souberam transmitir a sabedoria e evolução aos restantes animais. Imaginem uma inversão moral da Ilha do Dr. Moreau de Wells e ficam com uma noção desta arcádia onde todos os animais se compreendem e o matar foi abolido. Esta nova forma de viver é guardada com bonomia por um robot já milenar, eterno servente dos Websters, nome de que família passou a designar os humanos restantes. Com o planeta entregue a um bucolismo arcádico, a humanidade transmigrada para formas de vida gasosa em Júpiter ou adormecida sob Genebra, são os robots selvagens que mantém acesa a chama do progresso, construindo naves que os levarão às estrelas.
The Simple Way: Tal como os seus ancestrais humanos, chega agora a hora dos cães e restantes animais sentientes partirem para outros espaços. Fazem-no não através da tecnologia, mas da capacidade psíquica de aceder a dimensões paralelas, pelas quais se espalharão até a Terra, o seu berço ancestral, se tornar um mito. Mas o planeta não ficará desprovido de vida inteligente. As formigas começaram a dar sinais de desenvolvimento de uma civilização, cooptando robots para construir edifícios que ameaçam ocupar todo o planeta.
Epilog: Resta ao simpático robot que acompanhou esta evolução milenar de espécies planetárias, o único que recorda os tempos áureos da humanidade, partir. Partir e abandonar de vez um planeta-berço, agora vazio, mas que espalhou incontáveis formas de vida.
Notes To...: Cada conto é acompanhado de uma pseudo-nota bibliográfica. Este é um dos pontos mais interessantes do livro, que dá maior coerência a um conjunto de histórias ligadas entre si. Suaviza as problemáticas de construir um livro através de contos. O ritmo disperso da publicação original força-os a repetir as principais linhas narrativas para manter o contexto, algo que se torna cansativo quando coligidos. Já as notas adensam, para além das páginas dos contos, o ambiente narrativo. São observadas através do ponto de vista dos cães, descrevendo num tom irónico de análise literária a sua perplexidade perante o que consideram mitos que talvez tenham fundo real.
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