sexta-feira, 17 de junho de 2016

Lembranças da Terra



Ângelo Brea (2014). Lembranças da Terra. Santiago de Compostela: Através Editora.

A culpa disto é da Cristina Alves, do Rascunhos, que deu com este livro numa livraria e partilhou a página da editora, escrita num português estranho. Sabendo o quão raro é FC em língua portuguesa, muito mais se não vier dos sítios do costume, o assunto merecia alguma investigação. O mistério do estranho português resolveu-se ao perceber que a editora, bem como autor, são galegos. A curiosidade aguçou-se, mas o livro revelou-se esquivo. Até ao dia em que, por puro acaso, o encontrei numa das minhas peregrinações às livrarias de Óbidos.

Peregrinações é o termo certo. Notem que a principal livraria fica na antiga igreja ao lado do castelo, que obriga a atravessar toda a vila e subir uma rampa inclinada para se lá chegar.

Lembranças da Terra é um livro muito curioso. Pelo que é, obra de FC de um autor galego, escrita num galego internacional que é quase indistinguível do português. Notam-se as diferenças em algumas expressões e construções frásicas, que dão um gosto especial de exotismo à leitura. Mas, essencialmente, pela sua banalidade interessante. Estranha combinação de ideias, bem sei, mas este livro de Brea não traz nada de novo ao campo da FC. Bem pelo contrário, é uma mistura de temas e estruturas narrativas clássicas do género. Um carácter que assume, e que trabalha de formas curiosas. É interessante notar que se cada conto apresenta sólidas construções de mundos ficcionais, na maior parte deles nada de concreto se passa.

Lembranças da Terra: Num planeta Marte cujos colonos se sentem cada vez mais afastado da Terra, berço natal, um jovem marciano pergunta ao pai do que é que este se recorda da sua viagem ao planeta. As recordações do pai são muito marotas, tendo lá ido em viagem de núpcias, e revela ao jovem que foi concebido na Terra, o que abala um aspirante à independência marciana. Conto bem humorado, mas que falha porque a sua premissa central, a do jovem lutador pela independência das colónias de Marte, só é revelada no final e não tem qualquer impacto na narrativa.

A Máquina da Entropia Inversa: Um físico consegue realizar o seu sonho de descobrir o antigo Egipto ao tornar-se voluntário de testes de uma máquina de viagens no tempo. Os viajantes não se deslocam fisicamente, antes incorporam-se como habitantes do passado, e os paradoxos temporais são evitados pelo sistema computacional que controla a viagem. O sistema é um misto de realidade virtual com máquina do tempo e depende de um anel, que o viajante retira quando quer regressar ao seu tempo. Mas este físico apaixona-se por uma bela egípcia, e pela ideia de viver no passado, usando a sua sabedoria do presente para aliviar os males medicinais dos antigos egípcios. Enquanto o seu corpo fica numa espécie de coma induzido no presente, vive no passado uma vida que lhe agrada mais do que a que deixou. As consequências deste acto são imprevisíveis.

As Exploradoras: Uma missão de exploração chega a um planeta cheio de vida, com alguns vestígios de ter sido no passado habitado por formas de vida inteligente. Na lua que orbita o planeta, encontram alguns espécimes crio-preservados dos antigos seres, numa base abandonada. As exploradoras revivem-nos e devolvem-nos ao planeta, esperando que assim a espécie tenha uma segunda hipótese de sobrevivência. Conto que inverte de forma muito simpática uma premissa clássica da FC, a história de exploração planetária. Aqui, os exploradores são alienígenas e a Terra o planeta selvagem com vestígios de uma antiga civilização.

As Grandes Vantagens da Neolíngua: Num futuro próximo, um professor de japonês reflecte sobre a beleza que se perde com a extinção iminente das línguas globais face à prevalência de uma língua franca. Ganha a facilidade de comunicação, perde a diversidade cultural. Conto que aborda uma questão querida à editora deste livro, a preservação do galego, sob uma perspectiva de FC.

Doze Anos em Titã: Conto com um sólido mundo ficcional onde nada de especial acontece. Toda a narrativa é a construção de um ambiente de FC Hard clássica, centrada num posto avançado de colonização em Titã para extracção de recursos naturais, que está no limiar de se tornar uma pequena cidade. O foco está nas agruras do administrador, que tendo a infelicidade de ser competente, não se consegue livrar dos contratos sucessivos na lua de Saturno. Homem que embora se sinta a a envelhecer, com a vida a passar-lhe ao lado, não deixa de se focar no que considera ser o seu dever.

Estação Lunar Alfa: Não confundir com essa outra base lunar Alfa (embora tenha talvez tido o seu quê de inspiração). A FC aqui serve de cenário a um conto policial, típico whodoneit com um inspector destacado em comissão de serviço na base lunar a investigar a morte violenta de dois cientistas e um condutor de rovers lunares. O motivo tem o seu quê de western, com a descoberta de uma jazida de ouro sob a superfície marciana e um par de geólogos que decidem aproveitar-se, em segredo, da sua descoberta.

Nas Montanhas de Magadar: Um conto longo, onde nada parece passar-se. Narra o mergulho na clandestinidade de um grupo de fugitivos a uma revolução que transforma numa sanguinária ditadura. As descrições da convulsão política num sistema solar colonizado por descendentes de russos são interessantes, mas toda a história se limita ao iniciar de um processo de sobrevivência nas montanhas. É um conto curioso. Geralmente conta-se o que acontece antes, ou depois, destes momentos morosos de adaptação...

O Bonsai: variação sobre as histórias de autómatos inteligentes que adquirem algo de humano. Aqui, um autómato criado por um cientista isolado da família vai tornar-se um quase filho. Construído para seguir a tradição familiar de criar bonsais, irá dar mostras de humanidade e tornar-se ele mesmo um legado para passar às próximas gerações. Junto com a homenagem à história clássica de robótica, há um forte fascínio com a cultura japonesa tradicional.

O Efeito Smith: Visão curiosa. A derrota e exterminação da Terra às mãos de um império estelar, contada num discurso de vitória que mostra o pormenor cultural que deu aos alienígenas a vantagem sobre a tecnologia terrestre: o individualismo democrático, entendido como fraqueza estrutural por estes alienígenas vitoriosos que se prepararam para esmagar a galáxia sob as suas pesadas botas. Daqueles contos que não se percebe serem um hino ao ideário fascista, ou uma ironia.

O Sol no Horizonte: A dicotomia entre os habitantes de uma colónia remota, que devido à forte radiação no sistema solar duplo onde se encontra o planeta colonizado não têm qualquer contacto com o resto da humanidade. Da terra restam os produtos culturais mediáticos, agora artefactos milenares, que satisfazem o saudosismo dos colonos. Mas as novas gerações começam a inquietar-se e a querer construir a sua cultura.

O Varredor: a história de um astronauta especial, malvisto pela família e sociedade, que ganha protagonismo e merecido reconhecimento quando a sua nave de recolha de lixo espacial é a única capaz de salvar a tripulação de uma importante missão espacial.

Perdidos na Lua: História de FC Hard sobre dois astronautas que, encarregues de reparar um espelho no observatório no lado escuro da lua, se vêem obrigados a abrigar-se nas crateras para sobreviver ao dia lunar após um micro-meteorito lhes dar cabo do veículo de transporte.

Por Causas Naturais: na incipiente colonização marciana, impõe-se a pergunta: quem será o primeiro explorador a morrer em Marte? A combinação de uma astronauta grávida e uma tempestade de pó que isola as secções da colónia vai dar a resposta, com o parto do primeiro bebé marciano a causar a morte da mãe.

Rosas de Admete: Um conto sobre plantas alienígenas que fascinam a humanidade já se sabe onde vai parar. Este segue um esquema similar ao Day of the Tryffids de John Wyndham, com variantes. As flores são belas, produzem energia eléctrica, convivem bem em todos os ecossistemas, e... quando florescem, simultaneamente em todos os planetas colonizados de 31 e 31 anos, libertam esporos adaptados ao ecossistema agreste original, que para sobreviver nos primeiros minutos libertam uma toxina mortal que depressa se desvanece. O extermínio da humanidade é quase total. Só sobrevivem aqueles que por estarem em locais isolados em terra ou no espaço, não estão em contacto com estas rosas fatais.

Um Planeta Remoto: Sob o panorama de uma civilização galáctica a colapsar, os colonos de um asteróide mineiro procuram um refúgio seguro, longe do caos violento em que mergulharam os planetas da diáspora humana.

Um Pôr do Sol Vermelho: Daquelas histórias neste livro onde nada de especial parece acontecer, funcionando com especulação sobre o processo de terraformação de Marte, seguindo os pensamentos de um astronauta que tem um acidente na superfície marciana.