domingo, 17 de maio de 2015

Outras Literaturas: Ficção Científica


João Barreiros, Lauren Beukes, Fátima Vieira e Fábio Fernandes no auditório 3 da Gulbkenkian.

Saí da Gulbenkian com a sensação que ficou a faltar qualquer coisa. Não me interpretem mal. A sessão sobre ficção científica promovida como parte integrante do festival Próximo Futuro foi uma conversa muito interessante ue juntou três autores, o brasileiro Fábio Fernandes, o português João Barreiros e a sul africana Lauren Beukes, moderada por Fátima Vieira. Barreiros, eterno enfant terrible da literatura de FC portuguesa (sempre que posso uso isto para o qualificar), dispensa apresentações. Fernandes é escritor, docente e tradutor, e Beukes argumentista e escritora com um livro, Zoo City, distinguido com um prémio Arthur C. Clarke. Fátima Vieira dedica-se ao estudo e análise de utopias, campo próximo da ficção científica. O Próximo Futuro ainda incluiu paineis sobre Banda Desenhada, ao qual não pude ir por calhar em horário lectivo, e literatura Policial sob o tema Outras Literaturas.

Parece estranho estar num colóquio com estes quatro grandes nomes ligados á literatura fantástica e sentir que algo de importante ficou para trás. A conversa foi rica e interessante, mas faltou olhar para a estrutura, reflectir sobre o porquê da importância da FC como género literário, a sua pertinência face à modernidade contemporânea. A moderadora ainda tentou levar a conversa por outros caminhos, sublinhando os aspectos sociais, mas o fluxo seguiu mesmo a partilha de experiências, o enumerar de livros, o deslumbre com as ideias galopantes, intrigantes e bizarras da FC. O que é sem dúvida interessante, especialmente com um Fábio Fernandes muito comunicador, João Barreiros igual a si próprio, espremendo prazer no chocar a audiência (como habitual, as expressões faciais de quem não está preparada para seu o estilo muito próprio de comunicação são de surpresa com toque de repelência descrente e Vieira não foi excepção). Lauren Beukes, por nos trazer a realidade trans-nacional do mundo anglófono, tocou em aspectos importantes patentes na sua obra sobre igualdade de géneros, desequilíbrios sociais gritantes, afro-futurismo e o impacto cognitivo de um presente que em muitos aspectos ultrapassa as mais bizarras especulações. Look, we have robots - drones, bombing people in the skyes, it's insane! I could never predict that in my book, disse. Apesar de interessante pela perspectiva global e pelo contexto em que estava inserida, não foi, fundamentalmente,  uma sessão muito diferente das inúmeras sessões de apresentação de livros onde os autores discorrem em grande detalhe sobre o seu trabalho esquecendo por completo o contexto maior em que estão inseridos. Inúmeras, mas nunca suficientes, digo eu como inveterado leitor.

Se calhar estou a ser demasiado exigente. Mas sinto, talvez por trauma meu, que a Ficção Científica requer uma quase constante legitimação externa, que mostre aos que a desconhecem e desdenham como entretenimento escapista a importância que nós, fãs e leitores, nela intuímos. A FC é campo privilegiado de reflexão sobre o papel da ciência e tecnologia,  de especulação informada sobre as linhas estruturais quase invisíveis que torneiam as modernidades contemporâneas (e a já longa história da FC passou por várias contemporaneidades), das transformações sociais e humanas trazidas por um mundo onde os atefactos tecnológicos fizeram explodir as possibilidades ao alcance dos nossos dedos, da busca prometeica e algo utópica pela contínua expansão das fronteiras do que sabemos. O seu amplo espaço de imaginário possibilita ferramentas únicas de analise, extrapolação e especulação informada. Talvez, creio, a melhor forma de comprovar esta intuição óbvia para os fãs conhecedores do género não seja ficarmo-nos pelo pormenorizado enumerar geek de bizarrias literárias e dissecação dos barroquismos da construção de mundos ficcionais. Contra mim falo, que também me comprazo como geek que sou (tecnicamente acho que pelos meus interesses académicos sou mais nerd) com livros cheios de ideias outré, conceitos de especulação sem limites, livros influentes e as intricacias dos mecanismos de world building. Mas olhar e analisar a FC vistas sempre de dentro ignora a sua pertinência face ao momento contemporâneo. Fala-se na morte da FC, tornada irrelevante por uma modernidade que a parece ter ultrapassado no futurismo galopante, quando se mantém relevante nas partes que não fossilizaram nas utopias tecnocráticas de outras eras.  Como provar a sua contínua relevância e pertinência a outros públicos? Nós,  fãs conhecedores,  sabemo-lo intuitivamente. Como passar esta ideia fundamental para lá do nosso  espaço conceptual? E, até, afirmar que o lado escapista é também fundamental como escapismo especulativo que nos leva a olhar mais além pelos olhos do imaginário? Os tempos complexos em que vivemos desafiam os futurismos luminosos com uma angústia de um presente desagregado que augura um futuro pouco prometedor. As utopias falharam, o positivismo converteu-se no neo-liberalismo destrutivo, e os leitores refugiam-se nas distopias, porque no fundo retratam o que sentem sobre o momento contemporâneo, ou fogem para passados míticos onde o mundo parecia menos complexo. Diria que, mais que nunca, correndo o risco de soar epocalista, a Ficção Científica tem uma palavra a dizer que ultrapassa fronteiras de géneros ou gostos.

A meio da conversa entre Fernandes e Barreiros houve uma intrigante oportunidade perdida, quando Fátima Vieira os questiona sobre as possibilidades dos media digitais. As respostas depressa resvalaram quer para o gosto pela materialidade do livro enquanto objecto quer para as intricacias da publicação digital. Mas percebia-se que a pergunta daria para outras especulações, apontando para a natureza conservadora das estruturas narrativas da Ficção Científica. As possibilidades técnicas do hipertexto podem trazer o lado especulativo e inventivo da FC estilhaçando a própria estrutura linear das narrativas, criando, por exemplo, diferentes percursos de leitura. Algo que a Banda Desenhada já experimenta com os motion comics, e que um livro como Night Film de Marissa Peshl fez muito bem, utilizando recortes e outros elementos arrastados da web para o espaço das páginas que eram elementos fundamentais da história. É um dos paradoxos do género, o afirmar-se como irreverente e criativo mas depender de formalismos conservadores. Tema este que daria pano para outras discussões, especialmente nas tentativas de restringir a especulação e os temas a um consenso clássico, rejeitando aberturas formais e temáticas ao grande mundo que está para lá do espaço de ideias anglo-americano. Nem na Gulbenkian nos livramos dos sad puppies.

Se a reflexão mais estrutural se mostrou elusiva, estas três horas de discussão à volta da FC souberam a pouco. A partilha de experiências foi riquíssima, e as perspectivas exteriores trazidas por Beukes e Fernandes um belíssmo retrato das possibilidades globais da Ficção Científica. Saí de lá com uma enorme curiosidade pelo trabalho de Beukes e Fernandes, vontade de reler Barreiros, e de pegar nas sugestões literárias afloradas durante a discussão. Sublinho também a abertura da Fundação Gulbenkian por ousar desafiar a discussão desta e outras literaturas de género como parte do programa Próximo Futuro. Mas não se fiem nas minhas palavras. O festival disponibilizou no Livestream as sessões do Próximo Futuro.

Edit: entretanto, se quiserem visões menos opinativas e mais descritivas sobre esta sessão rumem ao Rascunhos e ao Viagem a Andrómeda.