terça-feira, 24 de maio de 2016

Aniquilação


Jeff Vandermeer (2016). Aniquilação. Estoril: Saída de Emergência.

Há uma deliciosa inversão ballardiana neste romance, primeiro de uma trilogia, de Jeff Vandermeer. Ao lê-lo, é impossível não recordar os romances-catástrofe de J.G. Ballard, onde personagens solipsistas explorar as suas psicoses em paisagens de catastrofismo barroco naturalista. A referência mais óbvia é The Drowned World, com as suas assombrosas visões de uma Londres transformada num pântano luxuriante, com a arquitectura semi-submersa matizada pelos verdes de uma natureza em revolta. Há muito disso nas descrições que Vandermeer faz da sua surreal Zona X, um misto de pântano floridiano com paisagens dos sonhos de Max Ernst, zona de biologia misteriosa que vai engolindo, lenta e metodicamente, as zonas circundantes.

Os seus mistérios são sondados por expedições sucessivas, enviadas por uma agência secreta num misto de procura de conhecimento e pânico. A zona já engoliu povoações, e poderá ter no seu cerne uma estranha criatura que absorveu os seus habitantes. Criatura que reside no fundo de um poço espiralado, cujas paredes se encontram cobertas por inscrições sucessivas escritas por um fungo bioluminescente. É também uma área onde nada do que é moderno funciona, e os exploradores têm de depender de meios mecânicos antiquados para registar as bizarrias da fauna e da flora.

A grande força deste livro é a sua iconografia, a forma como concebe uma natureza em mutação que ameaça engolir uma normalidade humana que lhe é indiferente. A constante sucessão de selva, imaginada sob um céu azul, plantas em crescimento desmesurado, fungos de efeitos imprevisíveis, estruturas arquitectónicas progressivamente engolidas pelos verdes. É um curioso cruzamento entre a ficção Weird e os temores despertos por uma era onde as alterações imprevisíveis trazidas pelas catástrofes climatéricas já não são especulativas. A história, se tal existe porque a força das imagens é mais avassaladora do que a do enredo, centra-se mais num périplo por esta iconografia, mergulhando-nos no exotismo barroco de uma natureza em mutação.

Nesse périplo somos conduzidos pela mão de uma bióloga, elemento da mais recente expedição à Zona, entre cujas razões para integrar mais uma tentativa que se verá gorada de exploração deste território se misturam a curiosidade profissional e uma busca de respostas pelo destino do marido, que integrou a missão anterior e, como outros membros sobreviventes destas missões, lhe apareceu em casa sem saber como é que tinha saído da área isolada. E talvez não o tenha feito, talvez o que saia das áreas, encarnada no corpo dos exploradores, seja uma manifestação das misteriosas forças fungais que dominam a área X. Mistérios que ficam deliberadamente sem resposta, reforçando a estranheza do livro.

Se o foco de Ballard era nos espaços interiores da alma humana, espelhados pela paisagem decadente, Vandermeer, revendo a iconografia catastrofista sob uma perspectiva de colapso ambiental, foca-se no exterior, no mistério da paisagem, e na vida pessoal das personagens como forma de tornar mais denso o mundo ficcional. Como bom primeiro livro de trilogia, deixa-nos com mais questões do que respostas, marca a mente com as iconografias que invoca. Não consigo deixar o reparo deste ser um intrigante uso ficcional para o poço iniciático da Quinta da Regaleira, uma das inspirações do autor para este romance, que o descobriu aquando de uma passagem por Portugal no âmbito do Fórum Fantástico.