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terça-feira, 8 de março de 2016
Universos Paralelos
Três seguranças aliviam o tédio de passar os dias a olhar para um enorme ecrã de feeds de câmaras de video-vigilância espreitando o que aqueles que estão encarregues de proteger estão a fazer. Vão descobrir que estão envolvidos numa experiência tecnológica, numa empresa anónima cujos engenheiros decidiram recriar uma réplica do mundo real habitada por seres computacionais para testar os efeitos de condições sociais. A realidade e a virtualidade depressa de confundem numa história tortuosa onde os personagens estão aprisionados à incapacidade de distinguir o que é real do que é virtual.
Universos Paralelos é uma peça que em ritmo de comédia leve se envolve com alguns temas muito actuais, retirados das hipóteses científicas e do mundo contemporâneo. Mexe com a ideia borgesiana de que o mapa se pode tornar o próprio território que representa, com a hipótese de existirem universos de simulação computacional cujos habitantes não têm a consciência de serem simulacros submetidos aos efeitos de algoritmos programados pelos seus criadores, não esquecendo aqui uns retoques cuidados de glitches in the matrix. Jorge Luís Borges, o filme Matrix e Baudrillard são as influências óbvias do texto. Há outro aspecto, substanciado pela imagem dos ecrãs de videovigilância omipresentes sobre as figuras dos seguranças, que sublinha a prevalência discreta da sociedade-panopticon na era contemporânea, onde espaços públicos e privados estão sempre sob o olhar das lentes das câmaras.
Confesso que o Teatro Nacional D. Maria II seria o último espaço onde pensaria ir ver algo directamente ligado com Ficção Científica. Teatro de FC é raro, mas acontece, e com esta já tive oportunidade de ver duas peças portuguesas contemporâneas que abordam estas temáticas. Universos Paralelos é uma FC mais leve, vista como comédia, mas os elementos e o referencial estão lá. Se o público presente mostrou ficar bem surpreendido com o enredo tortuoso, para um conhecedor do género o sentido narrativo era óbvio ao fim de poucos minutos. Podemos não estar a falar de um possível candidato aos prémios Hugo ou Nébula, mas este texto de Jorge Andrade é uma boa incursão teatral nos domínios tecnicistas da FC.
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
Breviário para um Extermínio Silencioso
Corporate drone. Não sei traduzir esta expressão, que descreve muito bem aquelas pessoas com que nos cruzamos que parecem incorporar os ideais corporativos das empresas onde trabalham. São detectáveis à distância. Usam uma espécie de uniforme, com fato de corte e gravata de cor suavemente berrante, ou tailleur com adereços de moda, a projectar uma imagem de dinamismo conservador e próspero. Comportam-se como alfas obedientes aos ditames da alcateia, exageram num optimismo constante, e têm no olhar a indisfarçável expressão de nos considerarem descartáveis assim que os seus objectivos são atingidos. São capazes de defender o indefensável e torná-lo aceitável utilizando expressões difusas, sinónimos suaves de palavras atrozes, que disfarçam a dureza e frieza do que nos querem impor a bem da nação ou da organização, sempre com sorridentes como deve compreender ou mas repare que ou o cumprimento do disposto é o desejável ou temos de ser responsáveis. Talvez, fora das horas de expediente, regressem à normalidade e voltem a ser humanos com sentimentos e desejos. Talvez tenham no coração os chavões repetidos até à exaustão nos retiros corporativos para onde vão regularmente fazer bonding e outras palavras estrangeiradas que soam modernas. Suspeita-se que em muitos casos a infecção viral da cultura corporativista estaja demasiado entranhada no organismo e se tenha tornado incurável.
Breviário para um Extermínio Silencioso é uma peça de ironia discreta mas cortante que toca nesta despersonalização do ser face à instituição corporativa economicista, que exige a sobreposição dos seus objectivos e projecções milimetricamente traçadas nas simulações económicas às necessidades humanas. É uma pura distopia económica. Estamos no século XXI. As distopias políticas ou pós-apocalípticas já não descrevem a ansiedade que sentimos perante a sensação opressiva transmitida pelas forças que movem o mundo. Já não tememos regimes totalitários nem desertos atómicos. Agora é a submissão do indivíduo face à projecção económico-financeira, ao memorando de entendimento, ao contratualizado, o que nos aterroriza. Porque sentimos a desconexão entre a necessidade de justiça e humanismo e a bonomia que tenta disfarçar a tirania institucional. Como observa certeiro o encenador Rui Neto, "a desapropriação de todas as liberdades individuais em função de uma lógica empresarial e do lucro, é a estratégia adoptada, silenciosa, invisível, maquiavélica e não inocente (...) como uma contracção da liberdade (até de pensamento), para um futuro social de escravatura". Aspectos em evidência no texto de Mike Bartlett, levado à cena pela Escola de Mulheres - Oficina Teatro.
Carla Chambel é uma jovem funcionária a quem a sua gerente faz exigências cada vez mais desumanizadas, em nome do estrito cumprimento da regras estabelecidas. Exigências duras, colocadas sempre com um sorriso, sempre com palavras amigáveis que avisam que o que pensamos que nos faz mal afinal não faz ou que o que não queremos é realmente o que queremos. Retrato hiperbólico das relações laborais na sociedade neoliberal, onde cada vez mais as escolhas se restringem ao consumo e a necessidade de manter o emprego se sobrepõe a tudo o resto. Isabel Medina é a gerente, intencionalmente representada num misto de Alice e da lagarta azul de Alice no País das Maravilhas na versão dos Jefferson Airplane. Questionadora implacável, desumana nas suas imposições, esmagadora na forma como verga os subordinados à vontade corporativa, sempre de sorriso melífulo e voz compreensiva. Roger Madureira é o lacaio perfeito, autómato discreto e obediente. São interpretações fortíssimas, sempre a caminhar na fronteira entre a ironia e a frieza, mantendo o dramatismo sem resvalar na caricatura.
O cenário é espartano, centrado na interacção fria entre as personagens. Tem um detalhe intrigante que remete para as problemáticas da sociedade panopticon possibilitada pela tecnologia digital. Duas televisões que nos mostram vídeos cada vez mais invasivos da privacidade da personagem, símbolos da videovigilância pervasiva e da intromissão por sistemas digitais da intimidade individual em nome da segurança e da eficiência. Um detalhe arrepiante, apropriado a esta era em que os nossos amados dispositivos encerram em si a promessa de imposição de hipervigilâncias perante as quais os piores excessos dos regimes mais totalitários empalidecem.
Para conhecedores de ficção científica, textos deste género e as reflexões que suscitam são terreno bem conhecido. Fora deste contexto de nicho surpreendem, e são levados a alguns exageros melodramáticos para impressionar leitores e espectadores. Senti isso neste texto, com algum levar da espiral de tortura psicológica sobre a personagem vitimizada a exageros melodramáticos quando a lógica das ideias e a reflexão que provocam já estava bem definida. Esta é uma refilice válida para quem conhece bem as distopias de FC mas compreende que o público mais mainstream não está habituado a reflectir em certas consequências do papel das tecnologias e organizações sobre o espírito humano na tradição iluminista. Note-se que esse melodrama está ausente das interpretações, mantidas numa continuidade de frieza e distanciamento que sublinham a falta de humanidade presente na cultura corporativa contemporânea que a peça nos quer mostrar.
Breviário para um Extermínio Silencioso está em cena no local surpreendente do Espaço Escola de Mulheres - Clube Estefânia, em Lisboa, até ao dia 14 de novembro. Podem saber mais na página facebook da peça. Zona tramada para quem vive fora da cidade e depende do automóvel para poder participar nestas actividades culturais, mas a peça faz valer bem a pena. O texto interessante, representações acutilantes, e uma ambiência imersiva fazem deste um espectáculo teatral a não perder.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
Peer Gynt
Confesso que temi o pior. Aproveita bem o café, vão ser três horas e meia de espectáculo numa sala quentinha que convida ao soninho, disseram-me momentos antes da peça começar. Três horas e meia, no final de uma das minhas habitualmente longas semanas, com o corpo fatigado por uma noite no Super Bock Super Rock. Temi que iria lamentar a minha sanidade em ter vindo ao Teatro Experimental de Cascais assistir à representação de Peer Gynt. E a sala era, de facto, quentinha. Numa noite de verão, quente como um forno de cozedura em lume brando. Aposto que será uma sala acolhedora nas noites frias de inverno. Felizmente, a sala excessivamente quente e abafada foi o pior aspecto desta noite teatral.
Tudo o resto foi uma surpresa avassaladora. Pode parecer uma comparação exagerada, mas não consigo encontrar outra que transmita o quão surpreendente foi este espectáculo. Três horas e meia? Não se sentiram. O cenário austero, uma estrutura que deve ter provocado alguns dolorosos acidentes durante os ensaios, não distraía o olhar com elementos decorativos e convidava a mente do espectador a imaginar os espaços cénicos, direccionado pelo texto, actuações e uns deliciosos figurinos de Fernando Alvarez, entre o realismo clássico e a pura fantasia. Aliás, no registo fantástico dos trolls da montanha ou das lascivas criaturas da floresta, os figurinos estavam fabulosos.
A tradução do texto de Ibsen soube manter o ritmo da poesia e, trabalho certamente mais difícil, o sentido das rimas. Quando, por exemplo, o Bøyg diz dá a volta, não é de um gesto físico que se trata, mas de toda a atitude de dar a volta aos problemas, e percebemos isso. O humor, as camadas de sentido, o ritmo poético foram preservados pela abordagem ao texto.
Foram três horas e meia, disse? Só se sentiram pelo calor na sala. O ritmo foi muito rápido, com um enorme dinamismo nas cenas. Quase frenético, nalguns momentos. Fiel à vertente musical desta peça clássica, houve vários momentos de canção e bailado, em complexas coreografias e com uma qualidade musical que surpreendeu. Os esforços de Natacha Tchitcherova e Ana Neves na coreografia e canto, respectivamente, traduziram-se em cenas encantadoras e de elevadíssima qualidade, especialmente levando em conta a grande quantidade de actores em palco a cantar e dançar ao vivo. Já na banda sonora Grieg foi o obrigatório ponto de partida, mas a peça não seguiu o caminho do bailado e buscou outras sonoridades. E até influências cinéfilas. Quando vemos actores a pular como macacos (e a fazê-lo mimetizando muito bem os movimentos dos símios) à volta de Peer enquanto se ouve o Zarathrustra de Strauss, sabemos que a piscadela de olho a 2001 é intencional.
Nada disto funcionaria sem actores no topo do seu desempenho. O elenco incluiu veteranos, com uma Maria Vieira apaixonante como Aase, mãe de Peer, a oscilar na perfeição entre o humor e o trágico. Constança Rosa como Solveig traduz a iconografia da delicada e apaixonada donzela nórdica. Mas o palco, aliás, a noite, pertenceu a José Condessa a incorporar Peer Gynt. Leiam "pertenceu" com o mesmo sentido que os l33tspeakers dizem pwnd. Tudo gira à sua volta, em três horas e meia incansáveis, que começam com um registo energético e intencionalmente pueril mas terminam com amargura e possível redenção. Sempre imparável, Condessa levou-nos às aldeias norueguesas, aos desertos africanos, aos mares revoltos e ao regresso a um lar que se desvaneceu em busca da vida de que se fugiu. É a força e energia que imprime ao seu desempenho que, de facto, sustentam esta peça.
Resta sublinhar o trabalho dos restantes actores, que nos leva à grande ambição revelada nesta produção. Os veteranos ancoravam o trabalho de finalistas e alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, mas o trabalho destes foi de excelência, A peça não funcionaria sem o melhor desempenho de todos. Um dos aspectos surpreendentes foi a qualidade do desempenho destes alunos numa peça que teve o seu quê de prova de aptidão final de curso profissional. Quanto à ambição, note-se a coragem do encenador Carlos Avilez a levar em diante esta representação com largas dezenas de actores em palco. Sublinho o largas dezenas. Funcionou, encantou e espantou.
Ibsen caminhou entre o naturalismo, o fantástico e o proto-surrealismo nesta peça onde pegou em lendas do substrato de folclore noruguês, legando uma história intemporal que nos leva a questionar se todos nós, aqueles que mantém vivos os seus sonhos e não desistem de resistir aos sufocos têm algo de Peer Gynt dentro de si. Isso, a impossibilidade de retornos, a acção na inacção, aspectos focados num texto que têm uma forte componente de magia e fantasia clássica. Algo que esta representação também sublinha. Os antros do rei da montanha são um excelente exemplo, tal como o orientalismo das arábias imaginárias com odaliscas e dunas, ou, na mais magistral de cenas magistrais, a tempestade em alto mar onde o corpo dos actores e um vago fumo como efeito especial chegam para conjurar uma portentosa tormenta. Um tecnólogo como eu, apaixonado pelos efeitos das tecnologias e por dead media, não pode deixar de reparar na referência à daguerreotipia como uma nova tecnologia capaz de fixar o espírito que ouvi algures na peça. Suspeito que o texto de Ibsen, disponível no Projecto Gutenberg, se irá tornar leitura próxima.
Só não se perdoa o forno abafado que é a sala do TEC. Foi uma provação para a sala esgotada, e certamente que também para os actores. No restante, no que realmente importa, Peer Gynt é uma encenação excepcional, ambiciosa, que agarra quem a vê, com um ritmo e dinamismo imparáveis. Está em cena até dia nove de agosto no Teatro Experimental de Cascais. Diria que é imperdível para conhecedores de teatro (coisa que se deve notar que não sou). Para fãs do fantástico nas artes, digamos que é uma belíssima experiência ver o texto desenrolar-se aos nossos olhos pela voz e postura corporal dos actores. Peer Gynt tem o seu quê de existencialismo, mas também nos leva para mundos feéricos povoados por sensuais leiteiras, trolls egocêntricos, implacáveis demónios e a voz incórporea do bøyg. Fantástico, no sentido clássico do termo. E não vão precisar de café, mas levem água que a sala é uma sauna que vos irá desidratar.
Imagens descaradamente surripiadas à página Facebook do Teatro Experimental de Cascais.
terça-feira, 12 de maio de 2015
Hécuba O Sofrimento Desmedido
Tive o privilégio de is ver esta brilhante peça no Teatro S. Luiz. A partir da peça de Eurípides, Hécuba O Sofrimento Desmedido leva-nos a redescobrir os textos da antiguidade clássica, hoje tão esquecidos e tão raros de hoje se reencontrar. Tem interpretações brilhantes, com destaque para uma brilhante Carla Galvão, um cenarismo baseado na iluminação espantoso na forma como gere a cor e as sombras, canalizando o hieratismo elegante da estatuária grega clássica. Dá-nos intensos momentos de arrepio, em que no silêncio opressivo do negro do palco, quebrado pelos toques de luz intensa iluminando estas mulheres milenares que para lá do desespero gesticulam, entretecendo fios imaginários enquanto sussurram fiapos de pensamento, como se as profundas vozes do tempo nos falassem através dos murmúrios das benevolentes euménides. É uma história trágica, profundamente feminina, tão infelizmente contemporânea, porque por mais que queiramos esquecer os antigos parecemos condenados a repetir os seus erros. Está até dia 17 de maio no S. Luiz. Recomendo vivamente.
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Terrores curtos na noite escura.
Uma belíssima surpresa, o espectáculo Curtas de Terror e Outras Coisas Fantásticas, a que assisti na noite de dia 8 no Palácio do Sobralinho. Os espectadores eram levados a percorrer os corredores escuros de um palácio com o seu quê de elegante decadência de fin de siècle para assistir a três momentos teatrais/performances. Na primeira delas Ana Vilela da Costa canalizava Audrey Hepburn com a performance Alice in Underwear, sobre o imaginário de Alice no País das Maravilhas com algum toque da nostalgia surreal do fantástico do passado. Uma alice vintage que recorda o seu coelho num décor simples mas eficaz, com o seu quê de antiquário e com estímulos videográficos e aurais. Houve ali belíssimos momentos estéticos.
Noutra sala escurecida assistimos a um trabalho de iluminação notável de Alexandre Lyra Leite no desconcertante Bounjour Chérie, performance minimalista onde uma criatura que faz recordar o loplop de Ernst contempla uma mulher deitada sobre uma mesa ao som de passagens dos Cantos de Maldoror de Lautréamont. O trabalho de luz, com focos certeiros a quebrar o negrume da noite, reflexos subtis na superfície polida da mesa, deixou-me encantado.
Terminou com a voz hipnótica de Bruno Schiappa nas suas repelentes Memórias de um Psicopata, micro-peça que já conhecia do Teatro Rápido mas que num decadente salão palacial fin de siécle de tecto com painéis deslubrantes mas com o restante espaço num vazio austero ganhou toda uma nova dimensão de horror. Note-se que qualifico de repelente no bom sentido. O texto é fortíssimo e incómodo, com a voz pausada e grave do actor cadenciada pelo barulho metálico da cadeira de rodas a circular pela sala a deixar os espectadores desconfortáveis. Que é, no fundo, um dos objectivos da peça.
Excelente, a ideia a de usar um palácio à noite, mergulhando espectadores em labirintos de corredores escuros para degustar peças curtas e happenings de horror/fantástico. Uma iniciativa do Palácio - Espaço de Criação.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Teatro Rápido: Puro Terror
O mês de novembro está a terminar mas ainda vão a tempo de apanhar as peças programadas para o Teatro Rápido deste mês. Recomenda-se. O tema é puro terror, prometendo arrepios e as quatro peças alinhadas não desiludem.
Destaca-se Memórias de um Psicopata, peça onde o actor Bruno Schiappa, num cenário austero e minimalista declama em sussurros quase monocórdicos um texto arrepiante e absolutamente fenomenal. Só a voz e as palavras são suficientes para despertar aquela sensação incómoda que caracteriza o melhor horror. Sem desprezo à experiência de imersão no espaço teatral, que é muito eficaz, gostaria de poder reler o texto em silêncio, no escuro da noite.
Reunião na Sala 3 apanha-nos de surpresa. Os actores condensaram tanta coisa em vinte frenéticos minutos que é quase impossível sintetizar por onde anda o texto. Invoca o terror clássico com criaturas maquiavélicas, puxa ao grand guignol pelo histerismo intencional, critica a correria contemporânea do empreendedorismo predador onde lucros e não a criação são preponderantes, aponta o dedo ao ridículo dos reality shows e consegue algo que francamente eu não achava possível: adaptar torture porn, género que pessoalmente não gosto, ao palco do teatro. Violento, perturbador, inquietante, e com um dos actores a canalizar na perfeição a expressão de pura maldade no rosto que nos remete para Mefistófeles, inumeráveis Igores e Crypt Keepers, ou os inesquecíveis olhares de Jack Nicholson em The Shining.
O conto clássico La Mort de Maupassant é adaptado a monólogo com uma excelente utilização de cenários e luzes. Quem conhece os espaços austeros do Teatro Rápido ficará surpreendido com a qualidade do design de luz e a simplicidade de um cenário que remete para o terror gótico dos cemitérios assombrados. Infelizmente o classicismo do texto é canalizado pelo actor que o representa, de forma hiperbólica mas pouco inspirada, muito artificial e pouco sentida. O texto de A Carta mistura terror e comédia com uma micro-sitcom onde o abrir de uma temível carta da segurança social desperta os piores medos dos personagens. Realmente, quem já teve chatices com a kafkiana máquina burocrática financeira do estado português, especializada em esmagar os mais desprotegidos, percebe o alcance do texto. Tendo lugar na maior sala do teatro, a peça sofre de uma certa desconexão espacial que nalguns momentos chave me confundiu. Não que a reconstrução do espaço teatral como algo que envolve o espectador me chateie. Mais, uma das grandes virtudes do Teatro Rápido é eliminar o paradigma espectador sentado - contempla o palco - palco onde tudo se passa atomizando o espaço cénico e transformando o espectador em elemento das peças.
A programação deste mês é boa para fãs das artes cénicas e para amantes do horror e do fantástico. Rumem ao Chiado. Vale a pena descobrir as peças, e de caminho quebrar o ar gélido destes dias de inverno com um copinho de vinho quente com especiarias. Aproveitem que o mês está a chegar ao fim.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Teatro Rápido - Fevereiro Por Amor
Condizente com o dia de S. Valentim, o tema das peças deste mês foi Por Amor. Para um anti-romântico assumido da minha laia, que olha para o funesto catorze de fevereiro como um resquício de velhos tempos em que lobisomens cheios de tesão andavam à solta para violar qualquer virgenzinha que apanhassem à frente e não como o festival de lamechices cor de rosa que é, um tema destes causa algum receio. Mas é o Teatro Rápido, pensei. É sempre interessante e inovador, com volteios inesperados aos temas propostos. E é também um prazer lá ir, ver as peças e beber uma bebida no bar acolhedor do teatro (com wifi gratuito, o que só acrescenta aos encantos para um agarrado ao tablet como eu).
Quatro salas, quatro peças, quatros bombas psicológicas a encantar, desconcertar e surpreender o espectador. Na sala 1, Onde é que Julgas que Vais, momento fortíssimo com uma fantástica Fernanda Neves a encarnar o papel de prostituta que sabe que é ao mesmo tempo mulher e objecto, momentaneamente enfraquecida pelo carinho de um cliente. Este, interpretado solidamente por João Passos, oculta a sua fragilidade debaixo de uma camada de masculinismo. A solidão e os pequenos gestos que a quebram mesmo nas condições mais inesperadas estão em destaque num ambiente de intimidade soturna.
A sala 2 reserva-nos surpresas desconcertantes com um casal que aparentemente parte da audiência começa a discutir e joga um curioso jogo de equilíbrios de forças em Não Sou Eu, És Tu. Um jovem Hugo Ramos e uma madura Rosa Villa colidem nos altos e baixos de uma relação de desigualdades de vidas, idades e experiências que tem em comum a paixão que os une.
Na sala 3 uma imóvel Cristina Areia, em pose de estátua quebrada por um inquietante sorriso de deleite sensual mergulha-nos num monólogo onde uma mulher de meia idade reflecte sobre a sensualidade e os tabus que enfrenta quem ao reconstruir a vida percebe que pode recomeçar novamente, e pode experimentar, apesar das sensações de experiência trazerem consigo o peso de mágoas ou remorsos. Goodbye é um momento dominado por uma actriz resplandecente.
Quem perdeu alguém, e a quem isso nunca aconteceu, sabe o peso da solidão opressiva, da espera por quem sabemos que não regressa, das memórias desesperantes e o eco do vazio na alma. Lídia Muñoz inquieta os espectadores com uma interpretação fortemente intimista em que a alma abalada da personagem se coloca a nu em Onde é que estavas quando te vi pela última vez. Na sala 4, um sofá, fotos e o olhar intenso da actriz a mergulhar dentro de nós.
Novamente, as peças curtas do Teatro Rápido tocaram a alma, inquietaram o espírito e intrigaram a mente. O formato e o espaço convidam à envolvência e a qualidade teatral revela-se cada vez mais apurada. Para março o tema é Em Nome do Pai e a programação já está disponível na página do Teatro Rápido.
Quatro salas, quatro peças, quatros bombas psicológicas a encantar, desconcertar e surpreender o espectador. Na sala 1, Onde é que Julgas que Vais, momento fortíssimo com uma fantástica Fernanda Neves a encarnar o papel de prostituta que sabe que é ao mesmo tempo mulher e objecto, momentaneamente enfraquecida pelo carinho de um cliente. Este, interpretado solidamente por João Passos, oculta a sua fragilidade debaixo de uma camada de masculinismo. A solidão e os pequenos gestos que a quebram mesmo nas condições mais inesperadas estão em destaque num ambiente de intimidade soturna.
A sala 2 reserva-nos surpresas desconcertantes com um casal que aparentemente parte da audiência começa a discutir e joga um curioso jogo de equilíbrios de forças em Não Sou Eu, És Tu. Um jovem Hugo Ramos e uma madura Rosa Villa colidem nos altos e baixos de uma relação de desigualdades de vidas, idades e experiências que tem em comum a paixão que os une.
Na sala 3 uma imóvel Cristina Areia, em pose de estátua quebrada por um inquietante sorriso de deleite sensual mergulha-nos num monólogo onde uma mulher de meia idade reflecte sobre a sensualidade e os tabus que enfrenta quem ao reconstruir a vida percebe que pode recomeçar novamente, e pode experimentar, apesar das sensações de experiência trazerem consigo o peso de mágoas ou remorsos. Goodbye é um momento dominado por uma actriz resplandecente.
Quem perdeu alguém, e a quem isso nunca aconteceu, sabe o peso da solidão opressiva, da espera por quem sabemos que não regressa, das memórias desesperantes e o eco do vazio na alma. Lídia Muñoz inquieta os espectadores com uma interpretação fortemente intimista em que a alma abalada da personagem se coloca a nu em Onde é que estavas quando te vi pela última vez. Na sala 4, um sofá, fotos e o olhar intenso da actriz a mergulhar dentro de nós.
Novamente, as peças curtas do Teatro Rápido tocaram a alma, inquietaram o espírito e intrigaram a mente. O formato e o espaço convidam à envolvência e a qualidade teatral revela-se cada vez mais apurada. Para março o tema é Em Nome do Pai e a programação já está disponível na página do Teatro Rápido.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Teatro Rápido - Janeiro de 2013
É um conceito novo, ao mesmo tempo contemporâneo e intimista. O Teatro Rápido aposta em peças curtas, temáticas e de autores e actores novos com um calendário exigente de representações diárias. Situa-se em pleno Chiado, em salas anexas ao silo automóvel que foram reaproveitadas como espaços de teatro austeros, sem qualquer decoração e nem sequer um disfarce do cimento rugoso ou das paredes negras de betão pintado do parque de estacionamento. Esta austeridade é curiosamente acolhedora, em directa oposição aos conceitos clássicos de espaços de entretenimento público que ocultam a estrutura arquitectónica sob os mais díspares elementos decorativos. Mas aqui temos apenas o betão nu, os actores e a representação. Esta simplicidade é cativante e o seu intimismo pode ser um pouco aterrador para anti-sociais da minha laia, uma vez que a relação de proximidade entre espectadores e actor se resume a uma distância de poucos centímetros. Não estamos confortavelmente sentados a apreciar (ou a tentar não adormecer). Estamos imersos no espaço cénico e no universo ficcional da peça.
Atento à hipermodernidade contemporânea, este teatro afirma-se rápido. É quase relâmpago, um blitzkrieg representativo concentrado em quinze minutos de mergulho em universos ficcionais. Ao espectador cabe a escolha de passar duas horas saltitando entre peças, com pausas para dois dedos de conversa no agradável bar do teatro que alia a austeridade do betão ballardiano com toques de decoração nostálgica retro, ou no final de um longo dia de Lisboa aproveitar quinze minutos esquecidos a ver teatro. De forma descontraída e intimista.
Janeiro reservou-nos as peças Bolas de Neve, Professor Roberto, pode beijar a noiva e Diagonais, com o tema promessas como elemento de ligação. Diagonais funcionou como um happening, onde um texto fortemente poético sublinhava a geometria de afastamento de um casal. Como parte do cenário algo de totalmente inesperado: um projector de slides ainda funcional. O meu olhar não deixa de reparar nestes toques de tecnologia extinta. pode beijar a noiva foi um momento inquietante, monólogo de uma mulher de promessas atraiçoadas que oscilou entre a esfera do indivíduo e a sociedade contemporânea passado numa escuridão perfurada pelos feixes das lanternas que foram distribuídas aos espectadores. Professor Roberto foi um violento momento sobre pedofilia e dinâmica das relações entre vítima e vitimizador. Destacou-se pela força da actriz no papel de menina entregue às perversões de um pedófilo, mas a poderosa representação do actor que representou o inefável professor Roberto fica na memória pela complexidade emocional. A surpresa de Bolas de Neve residiu na forma como foi tratada esta peça onde uma mulher é julgada por pequenas acções de egoísmo que se revelam com consequências funestas. Esta peça teve um intrigante toque de temática fantástica, com inspiração cinematográfica (vieram-me à memória filmes como Cube ou Saw) e um desenrolar de texto que estava a altura do melhor do género. Quatro boas surpresas para iniciar o ano de 2013.
Todos os meses há quatro peças à volta de um tema. Quanto a mim já percebi que uma visita ao Teatro Rápido passará a fazer parte das rotinas mensais (de preferência lá mais para o fim do mês, que é quando chega a Interzone à Tema). A programação de Fevereiro está disponível na página do Teatro Rápido.
Atento à hipermodernidade contemporânea, este teatro afirma-se rápido. É quase relâmpago, um blitzkrieg representativo concentrado em quinze minutos de mergulho em universos ficcionais. Ao espectador cabe a escolha de passar duas horas saltitando entre peças, com pausas para dois dedos de conversa no agradável bar do teatro que alia a austeridade do betão ballardiano com toques de decoração nostálgica retro, ou no final de um longo dia de Lisboa aproveitar quinze minutos esquecidos a ver teatro. De forma descontraída e intimista.
Janeiro reservou-nos as peças Bolas de Neve, Professor Roberto, pode beijar a noiva e Diagonais, com o tema promessas como elemento de ligação. Diagonais funcionou como um happening, onde um texto fortemente poético sublinhava a geometria de afastamento de um casal. Como parte do cenário algo de totalmente inesperado: um projector de slides ainda funcional. O meu olhar não deixa de reparar nestes toques de tecnologia extinta. pode beijar a noiva foi um momento inquietante, monólogo de uma mulher de promessas atraiçoadas que oscilou entre a esfera do indivíduo e a sociedade contemporânea passado numa escuridão perfurada pelos feixes das lanternas que foram distribuídas aos espectadores. Professor Roberto foi um violento momento sobre pedofilia e dinâmica das relações entre vítima e vitimizador. Destacou-se pela força da actriz no papel de menina entregue às perversões de um pedófilo, mas a poderosa representação do actor que representou o inefável professor Roberto fica na memória pela complexidade emocional. A surpresa de Bolas de Neve residiu na forma como foi tratada esta peça onde uma mulher é julgada por pequenas acções de egoísmo que se revelam com consequências funestas. Esta peça teve um intrigante toque de temática fantástica, com inspiração cinematográfica (vieram-me à memória filmes como Cube ou Saw) e um desenrolar de texto que estava a altura do melhor do género. Quatro boas surpresas para iniciar o ano de 2013.
Todos os meses há quatro peças à volta de um tema. Quanto a mim já percebi que uma visita ao Teatro Rápido passará a fazer parte das rotinas mensais (de preferência lá mais para o fim do mês, que é quando chega a Interzone à Tema). A programação de Fevereiro está disponível na página do Teatro Rápido.
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