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sábado, 21 de setembro de 2024

Fórum Fantástico 2024: As Escolhas do Ano

Este ano, o Fórum Fantástico trouxe de volta o clássico painel das escolhas literárias do ano, com a Cristina Alves, João Campos, Rogério Ribeiro e eu a partilhar alguns dos livros que mais nos marcaram ao longo do ano.

Confesso, no meu caso, dado que este painel já não acontecia há várias edições do Fórum, abusei um pouco e levei leituras de outros anos. Fica aqui o registo das minhas escolhas.

Ficção Científica e Fantástico


A Memória e o Vazio, Lívia Borges

No futuro que este livro nos mostra, a humanidade encontra-se à beira de uma crise energética. O hidrogénio explorado no espaço de que o planeta depende para as suas necessidades está a esgotar-se, e a principal empresa de extração prepara uma missão arriscadas: sair do sistema solar e procurar extrair hidrogénio nas fronteiras de um buraco negro.

Romance de ficção científica sólido, dentro do campo da Hard SF, A Memória e o Vazio é uma excelente proposta no reduzido panorama da Ficção Científica portuguesa.


Proletkult, Wu Ming

Este livro curioso faz-nos regressar às utopias do futuro progressista e revolucionário comunista. Invoca as estéticas da ficção científica soviética, com o seu sonho de espalhar a igualdade e o progresso pelas estrelas (claro que, como bem sabemos, por detrás destes ideais estava um estado repressivo em tudo igual a outros tipos de regime totalitário). A invocação é feita de forma delicada. Apesar de ser a essência do livro, estas ideias estão num esparso polvilhar, porque a estrutura narrativa leva-nos à amargura daqueles que estão a ver os seus ideais de liberdade esmagados pela ortodoxia sedenta de poder.


Lapvona, Otessa Moshfegh

Há livros que são chocantes, que se esforçam ao máximo por chocar o leitor, exaltando o pior, exacerbando a violência, chegando ao grand guignol. E há livros que são implacáveis, que desorientam e atormentam o leitor da primeira à última página, sem cair em litanias da desgraça mas pela forma desoladora como nos apresentam a alma humana. Lapvona é claramente um desses, uma obra sem piedade para com os seus temas e personagens, desoladora, um choque de ar fétido que não nos deixa indiferentes.

Não há remissão na violência intelectual deste livro. Todos os personagens, sem exceção, agem de acordo com os seus piores instintos. Não hesitam perante os extremos de violência, são impiedosos em todos os momentos. A sordidez das suas vidas, das pobres às luxuosas, assenta numa tremenda ignorância supersticiosa, onde tudo justifica relações de poder baseadas na violência e exploração. Lapvona é uma fantasia negra, uma longa metáfora do pior que a alma humana nos reserva. Um livro fascinante na sua negritude, daqueles a que não conseguimos virar a cara apesar da implacabilidade com que nos trata.


O Soldado Sabino, Nuno Garcia

Se a história é deliciosamente macabra, o olhar do autor sobre a representação histórica é cuidado e claramente alicerçado em forte investigação. Mergulhamos mesmo no dia a dia dos soldados do CEP na Flandres, nos seus medos e divertimentos, tal com entramos nas barricadas republicanas de dia 4 de outubro, ou nas terras distantes de um Moçambique assolado por askaris. A reconstituição histórica é cuidada, formando um sólido cenário narrativo. Mas, do meu ponto de vista, por excelentes que sejam estes pontos, há um elemento ainda mais sedutor neste romance: um sentido de humor negro terrivelmente corrosivo. A sociopatia do personagem principal dá azo às mais hilariantes observações negras, num sublimar dos maus espíritos da alma humana. Quem aprecia humor negro irá ficar irremediavelmente atraído pelas constantes observações de um Sabino que, acima de tudo, é um ladino.


Children of Memory, Adrian Tchaikovsky 

Esta série de Adrian Tchaikovsky leva-nos a olhar para os conceitos de inteligência a partir da ficção especulativa. No seu cerne, está a questão de como seriam inteligências não humanas, mas com traços evolutivos paralelos. A premissa desta Space Opera intrigante leva-nos a um futuro distante, em cujo passado a humanidade se começou a espalhar pelo espaço, levando a sua biotecnologia para terraformar planetas, plantando-lhes sementes de vida e guiando o seu crescimento. Um processo que tem um fim abrupto, quando um golpe provocado por uma facção terrestre que se opõem à expansão emite um vírus que desabilita os sistemas das naves e instalações orbitais, aniquilando as futuras colónias, aqueles que vivem em estações espaciais, e quase a vida na Terra.


The Long Way to a Small, Angry Planet, Becky Chambers 

Uma lufada de ar fresquíssimo num estilo envelhecido, é a forma como melhor consigo descrever este livro. Se há género batido, usado e abusado em ficção científica, é a space opera. Junte-se a isso a também muito usada linha narrativa da personagem novata e algo ingénua que se junta a uma tripulação, e ao longo de aventuras e desventuras acaba por criar laços tão fortes que os tripulantes formam uma familia, e temos o argumento básico de uma imensidão de livros, filmes e séries. A receita é banalizada, e no entanto Chambers consegue fazer dela um livro imensamente delicioso.

O interessante está na forma refrescante como este livro consegue ser culturalmente atual e progressista, sem se deixar dominar pela necessidade de ser progressista.


 The Singularity, Dino Buzzati

É uma leitura curta e rápida, simples de resumir. Um modesto professor universitário é desafiado a integrar um projeto misterioso, numa zona militar remota. Tão misterioso, que só quem trabalha diretamente nele ou os militares que guardam a zona sabem do que se trata. Os militares e responsáveis governamentais que aliciam o humilde professor desconhecem o projeto para o qual fazem o convite. A primeira parte do livro é uma piada kafkiana, com o académico a tentar perceber exatamente onde é que se meteu, sem que ninguém lhe consiga contar nada dada a profundidade do segredo.

Se estão a ver aqui uma visao ficcional ao estilo dos anos 60 da inteligência artifial assente em supercomputadores, não estão enganados. Buzzati segue as tropes esperadas, dos cientistas apostados em fazer nascer uma entidade inteligente cujo corpo se compõem de processadores e sensores, às especulações sobre se uma entidade que hoje chamaríamos de digital é capaz de sentir, sonhar, de ter consciência.


Parallel Botany, Leo Lionni

O tema do livro são as plantas efémeras, não pelos caprichos da natureza, mas por serem de uma natureza que está para lá da nossa realidade e tempo. Plantas fugazes, que só se deixam entrever por lentes especiais, quase impossíveis de estudar porque resistem à sua fixação no tempo. Vegetação esotérica, de estranhas proprieades, que se esfuma ao toque humano. Como vos disse, surrealismo poético transmutado em discurso pseudo-científico.

A acompanhar o delírio discreto do texto, ilustrações de perfeito surrealismo fora de contexto, retratando as fugazes plantas paralelas, ou os usos e costumes de tribos inexistentes em geografias irreais. Apesar da óbvia sátira, o livro nunca se descose, é sempre mantido o tom de onirismo em realismo científico. É sátira elegante e poética, não ironia rude.

O Meu Mundo Não É Deste Reino, Joao de Melo

Folhear as páginas deste romance deixou-me intrigado, prometia ser um voo de realismo mágico sobre a paisagem e gentes açoreanas. Arrisquei a sua leitura, e mergulhei num imaginário ao mesmo tempo luminoso e negro, um retrato com recortes de memória pessoal e etnográfica cruzado com uma certa visão de fantástico, temperado por sentimentos de isolamento geográfico no meio da paisagem do nordeste da ilha de S. Miguel.

A violência idílica da geografia transmite-se às relações de poder, aos desmandos daqueles que usam a religião e a lei para oprimir. Mas o tempo vai passando, a terra cresce, os homens saem e regressam, o progresso vai-se fazendo sentir, lento, mas inexorável. E, no meio de tudo, há mistérios e prodígios, mortos que visitam os vivos, aldeões analfabetos que oram em latim perfeito, animais que choram, estranhas neblinas, eclipes e pestilências, superstições moldadas por uma natureza amoral e violenta, que os dogmas religiosos não conseguem debelar.

Não-Ficção


Literary Theory For Robots, Dennis Tenen

Um livro que nos recorda a importãncia das ciências sociais para melhor se compreender a tecnologia. Mergulha a fundo na história da tecnologia e da literatura para nos levar a perceber as reais capacidades dos LLMs. E quando digo a fundo, vai a primórdios inesperados, como as regras combinatórias místicas de Llul e outros sábios medievais, os primeiros a estruturar sistemas de associação matemática de ideias para encontrar novos significados. Daqui segue para a interpretação da linguagem, e das ideias, com operações estatísticas que permitem automatizar processos de pensamento. Entra no campo dos primórdios da computação com o trabalho de Babbage e Lovelace, e faz um desvio intrigante para a padronização de ações, mostrando como a literatura floresceu com essas técnicas.

O livro não é alarmista em relação à IA Generativa, mas foge dos deslumbres que caracterizam muito do discurso sobre este tema. Mostra-nos que é uma tecnologia com imenso potencial, se entendida como ferramenta e não fim em si. E que talvez o seu maior risco seja a sua excessiva antropomorfização, que distorce a forma como a entendemos, bem como desresponsabiliza alguns dos maus usos.


Nuclear War, Annie Jacobsen

Classifico, sem qualquer dúvida, este livro como uma das leituras mais arrepiantes e aterrorizantes que fiz nos últimos tempos. Não é uma leitura simpática, e mostra-nos a cada novo capítulo como o impensável pode acontecer, como todos os sistemas de suposta salvaguarda têm tudo para não funcionar, como um acto irreflectido pode levar ao extermínio civilizacional

Toda a lógica do livro se baseia na teoria dos dominós, quando um equilíbrio instável é abalado por um acontecimento inesperado, ativando sistemas e protocolos, e se torna impossível travar a reação em cadeia. Assusta especialmente perceber que o tempo se mede em minutos, os decisores não têm tempo para decisões bem pensadas, uma guerra nuclear global duraria duas ou três horas e devastaria o planeta, com consequências que perdurariam por dezenas de milhar de anos.

Banda Desenhada e Comics

Ice Cream Man, W. Maxwell Prince, Martin Morazzo

É uma das séries de comics mais consistentes e interessantes da atualidade. O formato é episódoco, o fio condutor é o Homem que Vende Gelados, uma espécie de espírito maligno que não é especialmente interventivo, apenas testemunha as espirais de horror e decadência em que mergulham os personagens com que se cruza. A narrativa é arrojada e experimental, atreve-se a quebrar os moldes do storytelling normal dos comics, e o traço de linha clara realista sublinha a ironia de um horror profundo mas adocicado.


Lembranças de Emanon, Shinki Kajio, Kenji Tsuruta

Esta proposta editorial da Sendai, como sempre surpreendente, dstingue-se por dois aspetos. O trabalho gráfico cuidado do mangaka Kenji Tsuruta, e o onirismo de uma história de uma ficção científica subtil. Incerteza, lenda e fantástico cruzam-se nesta premissa simples, feita de memórias e encontros fortuitos, sempre em zonas de transiência (barcos, estações de comboio). O grafismo elegante sublinha este caráter, somos imediatamente atraídos pela personagem de Emanon, ao mesmo tempo frágil, forte e nostálgica, bem como percebemos o isolamento dos espaços liminares por onde passamos, aqueles espaços sobre os quais não pensamos, mas somos forçados, por passar tempo neles, a pensar em algo. Emanon é uma daquelas obras de poesia em ficção cientifica, que nos deslumbra por tudo aquilo que sentimos estar para lá do espaço narrativo.

Umbigo do Mundo volume-2, Carlos Silva, Penim Loureiro

Regresso ao mundo ficcional tecido por Carlos Silva e Penim Loureiro. Desta vez, embora mantenha o foco em momentos de ação, aprofundando a história que levou a esta distopia futurista. A ficção de Carlos Silva é de una curiosa distopia otimista, apropriando-se das estéticas de futuros apocalípticos mas sem cair em tons negros. A paleta de cores escolhida por Penim sublinha isso, mesmo nos momentos em que há um choque direto entre estéticas retro e apocalípticas (as cenas com um camião de cerveja dieselpunk cujo design se inspiranos anos 50, rodeados por selvagens germânicos que não ficaram nada fora de contexto naqueles filmes punk apocalípticos dos anos 80 é um excelente exemplo disso). No cerne disto, uma história sobre manipulação do tempo para garantir os privilégios de uma minoria à custa da civilização, e a rebelião da mulher-arma que foi o instrumento de manipulação, mas agora procura reverter o mal causado. Uma aventura de pura FC vinda do imaginário de Carlos Silva, acompanhada pelo traço de Penim, aquele que é um dos mais virtuosos praticante portugueses da arte do desenho em BD.


Neon, Rita Alfaiate

Com toda a certeza, este é o livro mais deslumbrante e visualmente avassaldor de BD portuguesa que li neste ano. O trabalho gráfico de Rita Alfaiate já surpeendia nos seus livros anteiores, num registo a preto e branco, mas neste é esplendoroso. A história é inquietante, parte das distopias de futurismo grimdark para nos falar de solidão, nostalgia e aquele imenso amor por um animal que só os amantes de cães verdadeiramente compreendem.


Umbra 4, Filipe Abranches 

Como era de esperar, esta quarta edição da Umbra mantém o elevado padrão de qualidade literária e gráfica das anteriores.  Desde o primeiro número desta revista que Filipe Abranches nos habituou a uma combinação rara: excelência gráfica e narrativa, aliada ao gosto pela ficção científica. Esse nível tem sido mantido ao longo das edições, sempre com excelentes propostas de banda desenhada potuguesa e internacional.


Zodiako, Jayme Cortez

Zodiako segue outros caminhos, menos assustadores e mais etéreos, inserindo-se nas estéticas cósmicas e psicadélicas da BD dos anos 70. O intrigante, em Cortez, é a forma como sendo artista praticante no ambiente comercial brasileiro, manteve o seu traço numa estética muito mais próxima de uma certa BD europeia, entre Moebius e Druillet.


Tomie v2, Junji Ito

É um marco, para os leitores portugueses, a edição completa de Tomie traduzida para português pela Devir. A série do inigualável Junji Ito é um dos grandes clássicos do manga de horror, e sem dúvida bem conhecida pelos fãs quer da BD japonesa, quer do j-horror. Faltava esta tradução, garantindo uma maior acessibilidade de uma obra clássica e incontornável.

terça-feira, 30 de julho de 2024

O Beijo; Julieta das Minhocas


José Vilhena (1966). O Beijo.

Mais um mergulho na mordacidade de Vilhena, infatigável cronista dos maus costumes e da hipocrisia dos que os praticam enquanto pregam a virtude. Desta vez o tema é o beijo, leve metáfora para atos mais profundos, analisado num tratado filosófico-humorístico no estilo clássico deste autor de culto.


José Vilhena (1970). Julieta das Minhocas.

Não se pode acusar o humor de Vilhena de ser subtil. Bem pelo contrário, o seu ridículo escabroso permite-o safar-se com uma crítica social ácida. Mas podemos acusá-lo de fazer uma das mais inesperadas homenagens a Shakespeare. Imaginem o enredo de Romeu e Julieta, transposto para um bairro de lata dos arrabaldes da Lisboa dos anos 60. Onde as aristocracias desavindas são as famílias dos taberneiros (e merceeiros, e agiotas) do bairro, os indomitáveis e de hilária aliteração Monteiros e Carapetos. Onde o jovem Romeu, aqui Romão, é um seguidor das modas pop da época, mas também um bom rapaz, tão bom rapaz que não corresponde à ardência da sua Julieta, que como todas as mulheres de Vilhena, não oculta a sua sexualidade. E o resto, é um desmontar parolo-erudito (isto não é uma qualificação insultuosa) da tragédia clássica, cheio de rixas e bebedeiras, de pais que vêem as filhas como um bem para ascender socialmente, que irá acabar mal para os amantes (spoiler: ela sobrevive e emigra para França, onde os seus atributos físicos lhe garantem sustento, ele, morre por ingestão de lagosta estragada numa marisqueira de Benfica), mas até termina bem para o povo de baixa condição do bairro. Pelo menos, até este ser aterrado para se construir apartamentos, que se destinam a albergar todos menos os que habitavam a zona. Cáustico, divertido, erudito e popular, Vilhena faz aqui mais uma profunda crítica mordaz aos seus tempos.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Mapa Cor de Sangue


Rui Cardoso (2023). Mapa Cor de Sangue. Alfragide: Oficina do Livro.

O tema das Invasões Francesas está um pouco esquecido na nossa visão contemporânea, relegado para alguns locais comemorativos, vestígios mal mantidos (com boas exceções) dos redutos das linhas de Torres, e algumas recriações de entusiastas. Talvez este afastamento se deva a ser um tópico muito incómodo na história recente de Portugal, que, como este livro observa, contraria aquela imagem de raiz estado-novista (mas que se arreigou na forma como nos vemos) de um país de brandas gentes e costumes. Os anos conturbados das invasões foram o início de meio século de lutas, invasões e guerra civil. Durante a primeira metade do século XIX, Portugal esteve a ferro e fogo.

Um papel desempenhado nas Invasões, academicamente estudado mas não muito divulgado, é o das revoltas populares que, logo aquando da primeira invasão, onde a capitulação nacional foi ordenada pela coroa que se retirava para o Brasil, deu a faísca que levou à expulsão francesa. As revoltas populares permitiram o reaviver das desarmadas forças portuguesas, e os desembarques ingleses de forças regulares para enfrentar o exército napoleónico. A história é complexa e sangrenta, bárbara em todas as partes, como é, infelizmente, a norma neste tipo de tempos. A violência revoltosa estendeu-se dos ocupantes àqueles que eram vistos como colaboracionistas, e a reação das tropas de Junot foi proporcianal em violência, arrasando terras revoltosas e executando populações como represália. Ficou-nos, na língua, uma expressão que recorda a violência extrema desses dias: ir para o maneta, celebrando a selvajaria do infame general Loison, conhecido pelo rastro de atrocidades que deixava atrás de si.

A resposta às restantes invasões fez-se de formas mais convencionais, já com forças regulares anglo-lusas e uma enorme contribuição de milícias e guerrilhas locais, bem como políticas de defesa assentes na terra queimada. Embora sem o cunho de revolta total e caótica primeira invasão, as seguintes voltaram a caracterizar-se pela enorme violência, não dos combates em si, mas de todo o seu contexto. A derrota francesa deu-se menos em combate aberto do que no constante desgaste de operações de guerrilha que dificultavam as operações. 

O fim das invasões não trouxe consigo  paz. Seguiram-se os anos de guerra civil entre liberais e absolutistas, também anos de violência, caos, e de senhores da guerra locais que perduraram na memória histórica como bandoleiros. Só a segunda metade do século XIX, com o firmar da vitória liberal, é que trouxe alguma paz ao país, bem como caminhos de desenvolvimento. Uma paz que depressa poderia decair em violência, como mostra o autor, traçando um padrão do tempo das invasões francesas à implantação da república, época de violência e revoltas, que só foram definitavemente travadas com a repressão do estado novo.

Esta não é uma leitura cómoda, não é uma história agradável de heroísmos, de um povo acossado que se defende com honra. A violência generalizada, a firmeza destrutiva dos responsáveis militares, a forma caótica com o povo se levantava, são aqui mostradas sem complacências. Foram tempos extremos, e todas as forças intervenientes reagiram de forma extrema.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Avelina; Elogio da Nobreza; As Noites Quentes do Cruzado D Egas

José Vilhena (1971). Avelina. Edições Branco e Preto. 

Por detrás do humor picante e mordaz, esconde-se uma nada discreta crítica social a um Portugal ultra-conservador, de virtudes públicas e vícios privados, pobre e injusto. Avelina é a história de uma rapariga tirada de casa por pais que a dão para servir pessoas abastadas. Pessoas que a vêem como menos que humana, sujeita às imposições de uma emproada mãe de família. Família que, como todas as pessoas de bem da zona, vive das aparências de virtude pública, enquanto em privado fazem o contrário do que apregoam. O pai de família é um médico local com negociatas e que almeja tornar-se presidente da câmara da terra e, claro, não só anda metido com a criada da casa como abusa das mulheres que frequentam o consultório. A filha que estuda para professora costuma deixar exausto o namorado, filho estróina de agricultor abastado, e o filho anda sempre à cata de Avelina, enquanto se deixa catar por uma prima quarentona solteirona. Desde que não se saiba, é o que interessa, embora todos sabem das tropelias, apenas fingem ignorar. É a receira para uma história picante, mas mordaz e afiada na crítica ao país contemporâneo de Vilhena. Sob a lupa do humor, tudo fica a nu. A pobreza e ignorância, a violência, a fome, as negociatas dos poderosos, a concupiscência da Igreja e dos senhores de bem e notáveis. A sátira é tão óbvia, o mau retrato do país tão nítido, que surpreende que a censura do estado novo tenha deixado passar a publicação.

É curioso como a personagem principal, apesar de atirada aos leões, não é de todo uma vítima. Defende-se e joga o jogo, percebendo que é manobrando as regras viciadas que consegue não ser prejudicada. Num mundo de pobreza extrema, há que sobreviver.


José Vilhena (1962). Elogio da Nobreza. Edições Branco e Preto. 

Neste opúsculo, a mordacidade visceral de Vilhena vira-se contra o emproadismo aristocrata, traçando a história de uma dinastia brasonada, entre a ascensão medieva, a pilhagem dos descobrimentos, a queda no final do século XIX e o ressurgir nos novos corredores de poder político e econónico no século XX. É sátira, demolidora, com a subtileza de um rolo compressor, que desmonta à bruta os ideários de superioridade inata e pedigree das classes altas, apontando os nepotismos e desmandos, tenuemente velada sob sucessão de piadas.


José Vilhena (1973). As Noites Quentes do Cruzado D. Egas. Edições Branco e Preto. 

Quando um rico nobre portuense decide ir de cruzada para a terra santa, rodeando-se de uma fiel tripulação onde não falta uma rija mocetona para lhe aquecer as noites, acaba por se meter numa série de peripécias que culmina numa espécie de assalto às costas da moirama, que acaba por se revelar a algarvia Albufeira. Entre um piloto pitosga que não se sabe orientar e as tropelias de Vilhenice típica, é uma história absurda e picaresca que cruza a visão do passado mítico e a ironia com o mundo contemporâneo. Uma leitura divertida, mas não das melhores obras deste autor tão independente.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A Revolução Interior: À Procura do 25 de Abril


João Lameiras, João Santos, José Carlos Fernandes (2024).  A Revolução Interior: À Procura do 25 de Abril. Lisboa: A Seita/Público.

Normalmente fujo às BDs mais pedagógicas. É trauma de infância, sou daqueles tempos em as "histórias aos quadradinhos" era completamente desconsideradas e menosprezadas, exceto os livros do Astérix "porque sempre se aprendia sobre os romanos", como muitos professoras me foram dizendo ao longo da escolaridade obrigatória. Apesar da BD pedagógica ter o seu lugar, tenho aquele trauma do compromisso, do tornar aceitável todo um género não pela suas qualidades intrísecas, mas por uma vertente de utilidade educativa. Mas quando deparo com um trabalho onde colaboraram João Lameiras e José Carlos Fernandes, é impossível de resistir.

Como disse, trauma, e estes meus achaques têm tudo a ver com a temática deste livro, a ideia da conquista de uma liberdade ao mesmo tempo individual e social. Partindo de uma clássica estrutura de perguntas e respostas, onde um jovem questiona o seu pai sobre vivências de um momento histórico, somos levados pela mão ao longo de uma necessariamente curta história do 25 de abril, que se centra mais no significado individual da liberdade do que nos movimentos factuais.

Criado para comemorar os 25 anos de Abril, é justa e atempada a sua reedição nos 50 anos da revolução dos cravos. O texto de João Lameiras e João Santos é didático e evocativo, e o traço de José Carlos Fernandes dá-nos aquela sua sensação de uma geografia portuguesa sem lugar específico.

E, confesso, agora fiquei curioso com a possibilidade de um épico de 200 pranchas de saga familiar sobre esta época. Se esta grande novela gráfica do 25 de abril alguma vez avançar, asseguro-vos, pelo menos, um leitor.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Enciclopédia do Terror Português


(2023). Enciclopédia do Terror Português. Oeiras: Verbi Gratia.

Este lançamento tinha-me escapado no Fórum Fantástico, claro que não podia perder a oportunidade no Festival Contacto. Confesso, mesmo sabendo que posso adquirir estes livros online, prefiro aproveitar os eventos em que os editores se encontram. É, também, uma boa oportunidade para conversar um pouco com o editor, sublinhando o trabalho duradouro e notável que a Divergência tem feito para dar espaço editorial aos autores portugueses no domínio do fantástico.

Sabemos que falar de uma enciclopédia do terror em português não será, à partida, um livro muito volumoso, pelas razões que todos bem conhecemos. Estes géneros por cá tardaram a ganhar raízes, há poucas obras representativas, apenas no final do século XX o panorama começou a mudar. Os ensaios coligidos analisam a possível história do género na literatura e cinema, sob pontos de vista que incluem especialistas em jogos, escritores, críticos e historiadores. 

Destaco os excelentes ensaios de David Soares sobre o fantástico na literatura de cordel (que me vai obrigar a ir a Óbidos ver se o exemplar da Horta de Literatura de Cordel ainda se encontra esquecido nas estantes da livraria da Igreja), João Monteiro sobre os poucos filmes de terror e fantástico no cinema português, Marta Nazaré com as suas pistas sobre terror e literatura infantil, e Patrícia Sá a analisar Mário de Sá Carneiro e Florbela Espanca. 

Alguns dos ensaios sofrem um pouco do mal de nos quererm explicar o que já sabemos antes de se centrarem no tema, e alguns são muito específicos, olhando mais para percursos pessoais do que para uma história e análise literária e fílmica. No entanto, este livro fica também como documento historiográfico, o que justifica a inclusão destes textos.

Podemos não ter uma longa e rica história destes géneros na nossa vida cultural, mas não desapreciemos o pouco que temos, os artefactos fílmicos e literários que se atreveream a desbravar um terreno que, nos dias de hoje, tem uma grande vitalidade e dinamismo. Se tal é possível, hoje, isso deve-se aos que no passado se atreveram a desafiar as monoculturas do gosto cultural, como esta enciclopédia nos mostra.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Cidade Proibida


Eduardo Pitta (2007). Cidade Proibida. Lisboa: Quidnovi.

Uma leitura intranquila, difícil de categorizar. Por um lado, lê-se como uma crónica da alta sociedade portuguesa, de prosperidade assegurada pelo seu nepotismo e redes de influência, onde o mérito se mede pelo status, e é fundamental o respeito por convenções que todos, secretamente mas num secretismo mal disfarçado, desrespeitam. Um mundo de aparências e dinheiro, que vive entre festas e casas de luxo, entretecendo as suas redes de influência e laços sociais, estanque perante quem não pertença ao meio.

Mas é, também, uma história de desamor entre o filho de uma dessas altas famílias, que se imagina diferente embora na verdade mantenha todos os vícios sociais e hábitos enraizados, e um inglês da working class que vive em Portugal como professor ao serviço de uma instituição cultural britânica. Um amor condenado, entre as convenções do português e os traumas do passado de um inglês que topou à légua o desdém social classista.

De um lado, a crónica desapiedada, de um queirosianismo ao estilo da viragem do século XX, de uma fatia da alta sociedade. De outro, a tempestuosidade tórrida e algo hedonista das relações entre amantes. A escrita surpreende pela sua frieza quase clínica, a acção trágica desenrola-se com uma perene inevitabilidade, e todas as personagens vivem para si, para os seus prazeres, estatuto e forma de vida. Nem nos amores a história aquece, há um profundo sentimento de descartabilidade, mesmo que o amor seja forte, a pessoa amada poder ser facilmente abandonada porque haverá sempre mais para ocupar o lugar na capa. Uma leitura incómoda e desapiedada.

terça-feira, 26 de março de 2024

Quadros Navais


Joaquim Soares (1972). Quadros Navais. Lisboa: Ministério da Marinha.

Um dos gostos do acaso dos alfarrabistas é cruzar-me com obras inesperadas. Este é um desses casos, uma obra coligida em dois volumes que reúne histórias marítimas. A sua autoria pertence a um contra-almirante da marinha portuguesa, que escreveu textos para um periódico lisboeta. Os relatos baseiam-se em histórias reais, que Soares dramatiza, e algumas histórias mais longas com recorte de romance. Não vale a pena esperar muito destes textos, têm o estilo típico de um militar reformado que escrevia no final do século XIX, cheios de frases gongóricas e apelos aos sentimentos de patriotismo. Em termos literários, não tem muito valor.

O que torna estes textos interessantes é o recuperar da memória de combates navais portugueses dos princípios do século XIX, entre o tempo das invasões francesas e da guerra civil entre liberais e absolutistas, com alguns desvios para as Índias. Os relatos tanto tratam os combates bem sucedidos, como das perdas. O tom patriótico é sempre exaltado, celebrando vitórias e exaltando aqueles que só se rendem quando nada mais há a fazer, mas isso, é o que se esperaria de um escritor que foi militar de alta patente. 

Estas história são interessantes, falam de um passado que raramente é abordado. Não são pérolas literárias. Quando o autor se alonga e tenta criar algo mais complexo, o resultado é de penosa leitura, e mesmo nos relatos curtos é precisa alguma paciência para os terminar. Vale pela evocação de uma história militar algo esquecida.

quinta-feira, 21 de março de 2024

O Vermelho e as Sombras


Vasco Graça Moura (2008). O pequeno-almoço do Sargento Beauchamp. Lisboa: Alêtheia.

Na Lisboa ocupada pelas tropas de Junot, vive-se um ambiente de intrigas e procura da sombra do poder. Com a coroa exilada, muita da aristocracia que se ficou tenta aliar-se aos ocupantes franceses, procurando com isso manter prebendas e ganhar favores. O espectro do ataque inglês paira no ar, e no resto do território grassa a revolta contra os ocupantes. Jacinto, um jovem aristocrata, vive um pouco alheado disso, apesar de ter de viver nesses meios. Frequentador dos salóes galantes, vai-se envolvendo com algumas mulheres, mas apercebe-se que despertou o interesse de uma filha de família de alta fidalguia. Antevendo aí um rumo para a sua vida, com a probabilidade de um casamento vantajoso que lhe traga elevação social, Jacinto decide reorientar a sua vida nesse sentido. Mas depara-se com um problema: a sua ligação à mulher de um oficial português exilado no Brasil traduz-se numa gravidez indesejada. Tentanto resolver a situação envitando um escândalo que lhe arrinuará o futuro, Jacinto retira-se com a amante grávida para a casa familiar desta, no Alentejo. Na noite em que o parto se está a consumar, parte em busca de uma mulher de aldeia capaz de resolver o problema. Ao regressar, depara-se com uma patrulha francesa, que o confunde com um desertor e o fuzila ali mesmo.

Primeira de três curtas novelas, esta história leva-nos aos tempos conturbados da guerra peninsular. Não sendo o foco da narrativa, que se centra nas intrigas e nas futilidades da vida em sociedade, é o elemento sempre presente e que domina todas as ações. O retrato da nobreza portuguesa é implacável, como intriguista, capaz de vender o patriotismo pelos favores dos invasores, e essencialmente empenhada em preservar o seu modo de vida, como pouco interesse dado ao país.


Vasco Graça Moura (2010). O Mestre de Música. Lisboa: Alêtheia.

Continuando a trilogia iniciada com o Pequeno Almoço do Sargento Beauchamp, é hora de olhar para os destinos do menino enjeitado, filho da relação escandalosa do fuzilado Jacinto com a mulher de um tenente da marinha. O abandono do filho não tem significado para a mãe, que vive consumida num certo ódio. Sabe que Jacinto se preparava para a abandonar para cortejar a filha dos condes de Sardoal, e mesmo como o amante morto, procura vingar-se da jovem que o encantou. Faz-lhe saber da morte do seu enamorado, e no desenrolar da história, a filha dos condes fica obcecada com o encontrar o filho de Jacinto, que decide adoptar como seu. Algo que se torna ainda mais intorelável para a mãe biológica da criança, que mete em andamento um ambicioso plano para raptar a criança. Para o conseguir, convence um antigo amante agora regressado a Lisboa, depois de um périplo europeu e americano por mesas de jogo, de que o filho afinal era dele (e, dada a vida algo licensiosa que esta mulher levava, até poderia mesmo ser isso). Este alia-se a um oficial inglês que, obecado por uma bela víúva que habita com os condes de Sardoal, também alinha num duplo rapto, o da criança enjeitada e o da viúva. Apesar da assistência de uma jovem criadita que os conspiradores conseguem infiltrar na família aristocrática, tudo correrá pelo pior. O rapto náo se consuma, e o suposto pai acaba morto por uma bala disparada de uma arma carregada pelo próprio suposto filho. Resta aos conspiradores ocultar-se, desviando atenções para que a verdade não seja descoberta.

Neste romance, sempre com as guerras peninsulares como pano de fundo, a ação torna-se mais rocambolesca e moralista. Há uma oposição entre a jovem que ama o falecido Jacinto ao ponto de exigir apadrinhar uma criança ilegítima, e a mãe desta, que quer apenas ferir e destruir a jovem. Pelo meio, temos um verdadeiro cortejo dos vícios sociais, com jogadores inveterados e mestres de música mais exímios em seduzir as jovens alunas, oficiais britânicos corruptos, e um verdadeiro bas-fond de mulheres que tudo fazem para manter as aparências e estatuto social.


Vasco Graça Moura (2011). Os Desmandos de Violante. Lisboa: Alêtheia.

Encerrando esta trilogia assumidamente amoral passada nos tempos conturbados das invasões francesas, a narrativa centra-se agora nas aventuras de Violante. Esta personagem surge no romance anterior como a criadita que é infiltrada na casa dos condes de Sardoal para propiciar o rapto falhado. Junto com a mãe do menino enjeitado, é a única que sabe de toda a verdade sobre o crime, mas consegue desviar as atenções da família e da polícia. Consegue uma nova vida como criada de confiança dos condes, mas almeja mais para si própria, conseguindo-se insinuar junto da jovem viúva que vive com os condes de Sardoal. Esta prepara um regresso a Inglaterra para tratar de negócios e leva consigo a jovem criada, que descobre um novo mundo de prazeres, e começa a sair da sua condição servil. Mas, antes da partida, terá ainda de fazer um favor à mãe do rapaz enjeitado, que não desistiu da ideia do rapto. Não está interessada no filho, mas sim em magoar profundamente a mulher que robou o coração do seu amante. Desta vez, o rapto será bem sucedido, o que levará a jovem filha dos condes à loucura. Regressada de Inglaterra, a criada Violante mostra-se ser a única capaz de sossegar os ânimos enlouquecidos da jovem. Mas não se resigna à sua condição de criada, e ameaça largar a jovem. O velho conde, recém-viúvo, resolve o problema casando-se com a criada, tornando-a condessa do Sardoal. A história encerra com uma tentativa de devolver o menino raptado à casa do Sardoal, que a nova condessa rejeita.

Termina assim a trilogia O Vermelho e as Sombras, onde VGM olha para a história das invasões francesas. Dado o tipo de narração, leve e cheia de peripécias, e a sucessão de desmandos morais das personagens, sente-se nestas três novelas uma homenagem ao folhetim, o género literário que se comprazia nos vícios humanos e nas intricadas intrigas de moralismo binário que faziam o gosto dos leitores do século XIX (e que hoje sobrevive nas telenovelas televisivas). A sequência destes três romances quebra a imagem de VGM como um escritor sério, dada a sua propensão para o picaresco, escabroso e licensioso. A história é amoral, e termina sempre com a vitória amarga dos piores personagens, enquanto os virtuosos saem sempre prejudicados. No seu conjunto, forma um intrigante romance de época que evoca a sociedade portuguesa nos tempos conturbados das guerras peninsulares, tempos sempre propícios a aventureiros e intriguistas.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

88 Vozes sobre Inteligência Artificial


(2023). 88 Vozes sobre Inteligência Artificial. Lisboa: ISCTE/Oficina do Livro.

Quando um formando me chega à sessão com este matacão debaixo do braço e me diz "toma lá, já tinhas visto...?", percebi que estava feito. Lá tive de ir a uma livraria (oh, que enorme suplício) e trazer esta obra documental (ordálio, deveras).  Não fico particularmente impressionado por livros cheios de nomes opinativos sonantes, mas suspeito que será um bom livro para a minha coleção de retro-futurismo. Um daqueles para voltar a pegar daqui a alguns anos e perceber se as tendências nele identifcadas evoluíram, ou se tornaram becos sem saída. 

A quantidade de pontos de vista sobre o tema é assinalável, o número 88 não é uma figura de estilo. Vindo de onde vem, a diversidade de pontos de vista não é muita, a maior parte das 88 vozes estão ligadas à economia ou a empresas. E daí já sabemos que tipo de discurso vem, muito deslumbrado, polvilhado com laivos de techbro, com bases técnicas algo duvidosas. E, nalguns casos, um nível intelectual confrangedor. Não são muitos, mas surpreende ver que responsáveis por empresas e organizações possam ser tão superficiais nas suas análises e pensamento. Destaco, pela positiva, os responsáveis ligados à saúde, com uma visão clara da forma como estas tecnologias podem ser aplicadas para melhorar a prestação de cuidados.

Os deslumbres são temperados pela vertente mais técnica daqueles que trabalham e investigam em Inteligência Artificial. Destes, lemos uma posição crítica mas otimista, que aponta as problemáticas da tecnologia, as suas possibilidades, e o potencial português nesta área. Complentam as visões ligadas às Artes e Ciências Sociais, muito focalizadas no potencial criativo mas também disruptivo da Inteligência Artificial, centrando-se também nas questões da ética e legalidade.

Dos ensaios, destaco "A Inteligência Não É Só Isto", de Emília Ferreira, diretora do MNAC. Ensaio erudito e assertivo, vai direto ao cerne de uma das questões mais propaladas pelos deslumbrados da IA, a criatividade intríseca dos sistemas e a visão da arte ao carregar de um prompt, mostrando que o criar vai muito  para além destas dimensões redutoras, mas não descartando o potencial enorme da IA Generativa nas mãos de artistas.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

As Trevas Fantásticas


David Soares (2005). As Trevas Fantásticas. Lisboa: Polvo.

Nos dias que correm, David Soares retirou-se para um discreto percurso académico, do qual nos vai dando vislumbres em vídeos e colunas na imprensa, ou densas e brilhantes notas nas redes sociais. Apesar desta fuga das luzes da ribalta, este escritor continua a ser uma das mais importantes vozes literárias da literatura fantástica portuguesa, autor de romances marcantes e incontornáveis como Batalha ou O Evangelho do Enforcado. 

O seu brilhantismo não assenta na simplicidade. Pelo contrário, é bem conhecida a sua implacabilidade no uso da língua, que chega a assumir proporções algo gongóricas. Nas temáticas, nas descrições, Soares não é carinhoso com personagens e leitores. A sua literatura toca, mergulha nos extremos, mas não de forma gratuita e voyeurista. Os mergulhos no horror em que nos leva são sempre profundos e sem condescendência. Isto torna-o numa voz poderosa e inquietante, cuja obra abala a tranquila sensibilidade portuguesa.

Num daqueles bons acasos de alfarrabista deparei-me com esta antiga edição de contos seus, que ainda não me tinha passado pelas mãos. É uma edição dos tempos em que o escritor se estava a afirmar como voz portentosa. Os contos são crus e elegantes na sua concepção, sente-se uma energia que toca os nervos do leitor. São estéticas que o autor viria a trabalhar nas suas obras posteriores. Uma leitura que não nos deixa indiferentes, e que não será para todas as sensibilidades. Para os que não temem abalos e choques profundos, a obra de David Soares é de descoberta obrigatória.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A Gata e a Fábula


Fernanda Botelho (1960). A Gata e a Fábula. Lisboa: Livraria Bertrand

Descobri este romance num acaso de feira da ladra, seduzido pelo design vanguardista antigo da capa. A prosa começou cheia de força, os primeiros parágrafos do livro são um portento de linguagem, mas depressa estabiliza num romance de sensações e sentimentos. Diria que vazio, a busca infrutífera para fugir a essa sensação, é o grande tema deste livro. 

Somos levados ao Portugal dos anos 40, para o seio de famílias de classe alta. Pessoas para quem as aparências contam, e as relações familiares são um eterno negócio por vantagens financeiras. O casamento é o meio privilegiado para se garantir uma vida desafogada, quer casando com pessoas financeiramente mais afluentes, quer sonhando com o futuro de potenciais herdeiros. Cruzam-se aqui duas famílias minhotas, cujos filhos parecem destinados a um casamento que unirá o nome aristocrático mas sem dinheiro de uns à riqueza de outros. É um destino a que o complexo Duarte, e a muito senhora do seu nariz Paula, tentarão fugir até um choque final. 

Duarte é a principal personagem deste romance, homem que cresce algo vitimizado pelo pai por não ser um típico rapazola amante de tropelias e ser mais dado aos livros. A relação do pai é de um profundo desprezo, é um homem que desde sempre entrou no jogo dos casamentos e heranças para ter uma vida desafogada com rendimentos, que passarão para os seus filhos. Mas como homem do século XX, Duarte incomoda-se com esse destino, procurando outra vida nos estudos e em viagens. De qualquer forma, o peso da tradição acabará por o apanhar, e regressará à aldeia minhota para cumprir o seu destino de casar com a amiga de infância.

Esta é bem conhecida pelo seu espírito independente, algo irreverente, inconveniente e pouco domável. No fundo, trata-se do conflito entre o querer ser livre e os grilhões familiares e sociais que a prendem. A liberdade, encontrá-la-á no final, ao recusar o casamento, conseguindo libertar-se do destino que a todos parecia ser conveniente.

Retrato de um mundo de pequenez, de aristocracia tacanha, do querer viver de aparências e rendimentos, sem nada criar, nada produzir, apenas pensar em esquemas e estratégias para enriquecer. Crítica a uma sociedade conservadora, retrógrada, para quem a autopreservação é o valor supremo. Uma interessante surpresa, vinda de uma escritora que apesar de ter o seu lugar de importância na história da literatura portuguesa, parece hoje um pouco esquecida (bem, nunca tinha ouvido falar dela) fora de círculos académicos.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Manual de Instruções


Nuno Markl, Miguel Jorge (2023). Manual de Instruções. Lisboa: Iguana.

Quando um homem eternamente distraído com o seu trabalho se vê abandonado pela mulher e filhos, com esta farta das pequenas negligências do dia a dia, decide tomar medidas para resolver o problema.  E fá-lo da única maneira que sabe, escrevendo um manual de instruções para se tornar melhor pai, marido e pessoa. O problema é que algumas das ações que escolhe para aprender e testar as suas ideias são de sanidade duvidosa. Miguel Jorge faz um trabalho notável de ilustração, a puxar para a caricatura mas mantendo o tom realista ao trabalhar sobre um texto de humor. Do argumento podemos esperar uma história simples, que pretende ser muito divertida mas não consegue passar de um humor insosso e convencional. O final feliz desperta alguns sorrisos.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Da fabrica que falece a cidade de Lisboa


Francisco de Holanda  (2021). Da fabrica que falece a cidade de Lisboa. Lisboa: Público.

Um mergulho nas visões de um dos nossos grandes homens renascentistas, originalmente editado em 1571. Neste livro, lido em versão fac-similada disponível numa coleção do jornal Público, mergulhamos numa visão de uma Lisboa quinhentista utópica. Com o olhar treinado pelas suas viagens a Itália, Francisco de Holanda propõe uma série de edificações, entre fortificações, fontanários, palácios e igrejas, que a seu ver tornariam a cidade de Lisboa merecidamente grandiosa. Pelo caminho, conta-nos a história, algo lendária, da cidade, e documenta alguns vestígios romanos. O livro é recheado dos seus maravilhosos esboços, que concretizam a sua visão para uma cidade que nunca aconteceu. O volume também colige um dos seus textos sobre a importância técnica, social, política e artística do desenho, procurando consciencializar os leitores.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Chocozombi Apocaliptico; Yo, Zombiro

Samir Karimo ,  Miguel Ángel Sánchez,  Felipe Arambarri (2021). Yo, Zombiro. Edição Independente.

Samir Karimo ,  Miguel Ángel Sánchez,  Felipe Arambarri (2021). Chocozombi Apocaliptico. Edição Independente.

Os frequentadores do meio sub, ou contra, cultural português ligado aos géneros do fantástico, horror e banda desenhada já se depararam com a figura algo peripatética de Samir Karimo. Homem baixo e rechonchudo, com uma voz que faz lembrar a de Mickey nos antigos desenhos animados. Simpático, sorridente e insistente, sempre a promover e a mostrar a sua obra. E é aqui que reside o maior contraste, entre a pessoa que é, e as bizarrias absurdas e extremas que saem da sua mente. Notem, não quero com este retrato depreciar a pessoa, de forma alguma. Até porque, mesmo não sendo apreciador das suas prosas, admiro-lhe o espírito de completa independência e liberdade criativa, de não se importar com limites, e, essencialmente, de ter o atrevimento de fazer a sua cena, e lutar por isso. Samir luta, e muito, é quase omnipresente em festivais e eventos.

Saí do Fórum Fantástico com dois dos seus livros. O homem apanhou-me a jeito, e não consegui dizer-lhe que não. Nem queria. Posso não apreciar as suas prosas, mas bolas, há que apoiar a independência.

Que dizer de bizarrias como Yo, Zombiro e Chocozombi Apocalíptico? Desafiam todas as descrições. Da mente de um homem tranquilo saem monstruosidades surreais e escatológicas. Um pouco como aquele dito que se tornou uma série de quadros de Goya, mas aqui os monstros são profundamente abstrusos. É uma mitologia muito pessoal, feita de imagens chocantes, num inacreditável contraste entre a tranquilidade da pessoa e as ideias que lhe saem da mente.

O problema destes livros é enveredarem pela banda desenhada, e aí Samir Karimo tem azar com os companheiros de bizarria. Os ilustradores que o acompanham não são muito bons, ou sequer bons, e tudo aquilo se perde num tipo de arte pré-adolescente rebelde mas sem talento. Pretende chocar, mas falta-lhe a qualidade visual mínima.

Apesar disto, vou apoiando e lendo o trabalho do Samir. Prefiro só em prosa. Não o apreciando, compreendo-lhe o alcance, e essencialmente admiro a postura de liberdade. Pode ser bizarro e estranho, mas merece que o acolham, não temos todos de subscrever os mesmos cânones do fantástico, e não ser enxotado (como vi alguém ligado a um projeto digital ligado ao terror português fazer em pleno Fórum).

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Assim Nasceu uma Língua


Fernando Venâncio (2019). Assim Nasceu uma Língua / Assi Naceu Ũa Lingua: Sobre as Origens do Português. Lisboa: Guerra e Paz.

Um livro intrigante que nos leva a descobrir as origens da nossa língua. Vai direto à sua tese, a do galego antigo como a origem do português, demonstrando-o com as inúmeras semelhanças de palavras, expressões e gramaticais entre estas duas línguas. De facto, o autor considera o galego mais próximo da nossa língua do que o português brasileiro, que do seu ponto de vista, está em processo de afastamento.

Não conheço o suficiente de gramática para dar crédito, ou descrédito, a estas teses. Da leitura, recordo um mergulho na origem das palavras, percebendo que da raiz latina brotaram o galego e o português, linguas praticamente irmãs apesar das suas diferenças. O autor também analisa a fundo algumas questões culturais sobre esta relação. Por um lado, a propensão dos estudiosos da língua em separar galego do português por razões de afirmação de nacionalidade; por outro, o peso de ideologias e da história, na forma como o galego é visto pelos galegos, por via da afirmação de nacionalismo espanhol. 

Ficamos também a saber que o nosso português está cheio de estrangeirismos, de palavras adotadas do espanhol, francês, italiano e inglês. Confesso que esperei uma listagem de influências linguísticas vindas dos descobrimentos e época colonial, mas o autor não se meteu nesse campo. As línguas são vivas, mudam, evoluem, e algo que me cativou neste livro foi a sua posição de tolerância e flexibilidade, rejeitando normativos excessivos e mostrando que a evolução, a adaptação aos falantes, é a maior riqueza da língua.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

O Meu Mundo Não é Deste Reino


João de Melo (2015). O Meu Mundo Não é Deste Reino. Lisboa: D. Quixote.

É um vício, confesso, talvez dos piores. Quando estou em viagem, quer por férias quer por outros motivos, invento sempre tempo para ir perscrutar as livrarias da zona, em busca de literatura local. Foi assim que dei por mim perante as estantes da simpática livraria SolMar, em Ponta Delgada, folheando as propostas de autores açoreanos disponibilizadas. 

Os lisboetas que eventualmente lerem este texto já estão a sorrir, bem sei, para nós Solmar é o nome de uma cervejaria clássica das Portas de Santo Antão, hoje em ruínas.

Folhear as páginas deste romance deixou-me intrigado, prometia ser um voo de realismo mágico sobre a paisagem e gentes açoreanas. Arrisquei a sua leitura, e mergulhei num imaginário ao mesmo tempo luminoso e negro, um retrato com recortes de memória pessoal e etnográfica cruzado com uma certa visão de fantástico, temperado por sentimentos de isolamento geográfico no meio da paisagem do nordeste da ilha de S. Miguel. 

A linearidade do tempo desfaz-se ao longo deste livro, a narrativa segue, deliberada, por caminhos cronológicos convolutos. As ações não se sucedem em ordem cronológica, embora estejam interdependentes. Sabemos, por muitas pistas deixadas no livro, que estamos em pleno século XX, algures entre os anos 20 e 60, mas isso não nos é clarificado. E talvez nem importe a clarificação, deixa-nos com um sentimento de imutabilidade temporal misturada com a inexorável evolução dos tempos, porque no isolamento ilhéu, o tempo escorre de forma diferente.


Este romance leva-nos à fictícia aldeia do Rozário, que simboliza os povoados rústicos encavalitados nas fajãs rodeadas de falésias vulcânicas do nordeste da ilha de S. Miguel. Terras de vida difícil e pobreza endémica, de luta diária pela sobrevivência desde a sua fundação, refém dos humores do mar, da tempestade e do vulcão.


Conhecemos a terra pelo olhar de alguns personagens cuja intervenção será decisiva para o povoado. Notem, por decisiva não interpretem positiva, grande parte do romance fala da crueldade humana, da cupidez e ganância. O romance prometia ser de realismo mágico, e é-o, mas não é uma fantasia luminosa. Pelo contrário, é uma meditação negra sobre a alma humana. 

O romance é determinado pelas ações de personagens chave. Temos o padre da terra, que chega a um local que mal se pode considerar aldeia, com igreja arruinada, e consegue reerguer o edifício enquanto espalha a palavra de deus aos ilhéus isolados. Mas, com o tempo, este padre torna-se criatura amarga, dogmática, alicerçando a fé através do medo e da acusação, e sendo sempre conivente com as personalidades mais asquerosas da terra. Um padre que prega o amor aos pobres, enquanto favorece os ricos. 

E não há mais rico na terra do que o regedor, nomeado pelo padre nos tempos em que a aldeola mal se poderia considerar freguesia. Homem violento e avarento, faz largo uso do seu poder para enriquecimento pessoal, tratando com brutalidade todos os que se lhe atravessam à frente. Brutalidade que se estende à sua mulher, criatura apagada e escanzelada que sofre, todas as noites, as sevícias de um brutamontes que se compraz em provocar a desgraça alheia.

A população é servida por um curandeiro, homem de muita filosofia que aprendeu o seu mester a tratar das vacas e das cabras. Rodeado de amuletos, procura sempre novas mezinhas que aliviem os males dos habitantes, e correm rumores que a mera invocação do seu nome provoca curas. Será desafiado por alguém que lhe mostra que as suas mistelas e terapias são sintomas de obscurantismo.

O eixo narrativo move-se em redor da interação destes três personagens com os restantes aldeãos, raramente de forma positiva. Isso fica bem claro no envolvimento de um grupo de personagens, uma família que o regedor consegue espoliar das suas terras, cujo pai de família jura vingança, mas acabará por viver uma quase morte em vida. Tudo é contrabalançado por um estranho personagem, viandante das canadas, talvez profeta e curandeiro, que morre e ressuscita. E ao regressar da morte, traz consigo a promessa do futuro, de novas ideias e da emancipação dos oprimidos face aos opressores.

A violência idílica da geografia transmite-se às relações de poder, aos desmandos daqueles que usam a religião e a lei para oprimir. Mas o tempo vai passando, a terra cresce, os homens saem e regressam, o progresso vai-se fazendo sentir, lento, mas inexorável. E, no meio de tudo, há mistérios e prodígios, mortos que visitam os vivos, aldeões analfabetos que oram em latim perfeito, animais que choram, estranhas neblinas, eclipes e pestilências, superstições moldadas por uma natureza amoral e violenta, que os dogmas religiosos não conseguem debelar.

Saí da livraria com um livro riquíssimo, poético e implacável, originalmente editado em 1983 Transporta-nos a uns Açores idealizados, onde a nostalgia pelas gentes e paisagens se cruza com uma visão negra do que o isolamento permite aos homens de mau coração. 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Lendas Japonesas


José Ruy (2023). Lendas Japonesas. Lisboa: Polvo.

As vicissitudes do ciclo natural da vida ditam que este é o último livro que o mestre José Ruy nos deixou. É apropriado que seja o seu último livro, porque muitos dos trabalhos que integram nasceram no início da sua carreira, ou foram criados em fases mais maduras. Como decano da BD portuguesa, Ruy teve um longo percurso por revistas e editoras, marcando com o seu traço clássico gerações de leitores. Tinha uma predileção especial pela história, ficanco conotado com adaptações para BD de episódios da história de Portugal. Estas Lendas Japonesas permitem ver um outro lado do autor, fascinado por exotismo e capaz de introduzir na sua estética pessoal elementos gráficos de outras iconografias.

Neste livro, Ruy presta uma profunda homenagem a Venceslau de Morais, escritor que se perdeu, e muito bem perdido, pelas terras orientais do sol nascente. Transmutou o seu fascínio pela cultura japonesa em livros clássicos, indo além do mero deslumbre orientalista para nos trazer olhares de profundo respeito pelo modo de vida nipónico. As lendas que fascinaram um ainda jovem José Ruy partem desse acervo literário.

Este é um livro que demorou décadas a ver a luz. No prefácio, descobrimos como há mais de meio século que o autor trabalhou nas suas histórias, numa saga de peripécias editoriais que por várias vezes quase levou este projeto a ser impresso, mas sempre sendo mal sucedido. Resta uma intervenção fortuita do editor da Polvo, numa conversa online, para nos trazer esta preciosidade. Dada a estabilidade e maturidade do traço de José Ruy, não vemos aqui uma evolução do seu estilo. Até porque as histórias mais antigas foram reformuladas. Nota-se, no entanto, um enorme esforço do autor para cruzar duas tradições estéticas, o realismo europeu e o estilismo japonês. Isso nota-se muito nos enquadramentos, onde Ruy transumta para o seu traço a estética das ilustrações japonesas.  

Tudo passa nesta vida, e podemos alegrar-nos que no final da sua vida, José Ruy tenha ainda deixado este último legado, que de certa forma é uma súmula da sua carreira, mas também de épocas, um posfácio aos tempos antigos da BD  portuguesa, e um curioso casamento de clássicos portugueses: vindo das palavras de um escritor clássico do século XIX para um autor clássico da BD do século XX. Ficamos nós, leitores, a ganhar, pelo deleite que é mergulhar nestas encantadoras adaptações de lendas japonesas. O livro tem o seu quê de arcaísmo, uma aragem de outros tempos, e isso torna-o ainda mais delicioso.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

O Navegador da Passagem


Deana Barroqueiro (2023).  O Navegador da Passagem. Queluz de Baixo: Manuscrito.

Confesso-me apreciador das ficções históricas desta escritora. O que mais seduz é o equilíbrio entre erudição histórica, visão crítica e sentimento de aventura patente nos seus livros. Percebi isso com o monumental Corsário dos Sete Mares, que transforam a Peregrinação de Fernão de Mendes Pinto numa aventura que nos deixa a pensar nas glórias e tragédias das odisseias portuguesas no Oriente.

Em O Navegador da Passagem, Deana Barroqueiro leva-nos a conhecer a figura de Bartolomeu Dias, o navegador responsável pelo dobrar do Cabo da Boa Esperança, pisando pela primeira vez o extremo da África e mostrando que era possível navegar da Europa à Índia contornando o continente africano. A escritora não se contenta apenas com essa saga, e cria um romance de aventura com sabor amargo, que salta constantemente entre duas das viagens de Dias: o dobrar do Cabo, e a armada da Índia de Pedro Álvares Cabral, que tropeçou no Brasil (um daqueles acasos que dificilmente foi um real acaso).

Este constante saltitar entre tempos e espaços torna a leitura um pouco confusa nas primeiras páginas do livro, mas depressa nos habituamos à viagem. E somos mimados com uma extraordinária reconstrução literária da época dos descobrimentos, onde o rigor histórico se cruza com um enorme prazer na visualização desses tempos de antanho. Tanto seguimos pela costa africana, descobrindo S. Tomé, Mina, os reinos do Congo e os povos à altura desconhecidos do que se veio a tornar a África do Sul. E tanto atravessamos o atlântico num longo desvio à carreira da Índia, entre as temiveis calmarias do alto mar, os primeiros contactos com os nativos sul-americanos, e a reconstituição da primeira missa em solo brasileiro. A capacidade descritiva da escritora é de um rigor extraordinário, revela um profundo conhecimento da época que retrata, e consegue fazê-lo de forma fluida na narrativa.

O livro não foge a uma visão crítica sobre os Descobrimentos. A visão não é dourada, de exaltação de feitos gloriosos. A dureza da vida nas caravelas é retratada de forma impiedosa, e as injustiças da busca pelos lucros da África e oriente são também mostradas sem floreados. A realidade da escravatura, um dos incentivos económicos à expansão portuguesa, é mostrada sem filtros, sendo um dos elementos centrais da narrativa. 

Estas obras de Deana Barroqueiro são uma excelente forma de meditar sobre a história portuguesa na era dos descobrimentos. Por detrás da aventura literária está o conhecimento histórico, e este tipo de ficções são uma forma prazeirosa de aprofundar o que se sabe sobre a nossa história. 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

História da Arte em Portugal


Flórido de Vasconcelos (1972). História da Arte em Portugal. Lisboa: Verbo.

Um livro necessariamente curto, que nos dá um panorama da história de arte portuguesa, da pré-história até aos primeiros anos da segunda metade do século XX. Cumpre a sua função, como obra introdutória que nos dá uma cronologia da forma como as diferentes épocas artísticas se manifestaram por cá. Livro didático, parte de uma coleção notável que hoje se encontra com alguma facilidade em alfarrabistas.