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sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Tomie 1 no Motelx

 



Apanbado no Motelx, onde a Devir me desafiou para participar do lançamento de Tomie 1, o primeiro volume do lendário, fascinante, perturbador e fabuloso manga de terror do mestre Junji Ito. A sessão decorreu no lounge do festival, como conversa entre mim e a editora. Foi uma oportunidade para partilhar o gosto pelo trabalho deste grande mestre da banda desenhada.
@archizer0 Uma graciosa surpresa da Devir. Para já, só à venda no Motelx. Para a semana chega às livrarias. #booktok #booktokpt ♬ Berlioz Symphony Fantastique, Op 14, 5 - The St Petra Russian Symphony Orchestra

Quanto ao livro, foi-me oferecido pela Devir, e posso dizer-vos que é uma excelente edição, num tamanho que faz justiça à qualidade do traço de Ito. Só conhecia este trabalho através das edições da Dark Horse (livros venerados na minha biblioteca), e foi bom reler em português, com pranchas grandes. O livro chegou às livrarias esta semana, e espero que seja bem sucedido, para que a Devir continue a aposta também neste género de mangá, mais adulto e erudito.

Infelizmente, este ano foi o único momento em que tive oportunidade de ir ao Motelx. O encerramento do 3Digital em Aveiro quebrou-me a tradição de mergulhar no cinema de terror antes de iniciar as atividades letivas.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Quarto Perdido do MOTELX


João Monteiro, Filipa Rosário (org.) (2022). O Quarto Perdido do MOTELX. Lisboa: CTLX.

Tendo em conta o já de si exíguo espectro do cinema português, que embora rico, espelha um país periférico onde a expressão cultural tradicionalmente se centra nas elites, únicas capazes de ter o tempo e os recursos para se dedicarem às artes, falar de um cinema fantástico nacional é algo que se resume em poucas linhas. Alie-se a isso a visão que temos do cinema como algo de entretenimento de massas, ou seja de filmes feitos para agradar à maioria da população, mas também do cinema como eminentemente intelectual, espelho estético das grandes preocupações artísticas. Na vertente cinema popular, por cá sempre se preferiu o gosto popularucho (exemplo disso são as comédias clássicas dos anos 40, que agora estão a ser alvo de remakes visando precisamente o mesmo tipo de públicos), que garantia retornos. Na variante intelectual, com todo o seu peso cultural, temos de contar com uma atitude clássica das nossas elites culturais, sempre desdenhosa com géneros ligados ao fantástico. É um traço cultural que hoje se começa a esbater, os novos criadores já cresceram como consumidores de cultura fantástica americana, europeia, e japonesa, e isso tem-se traduzido numa maior abertura cultural, apesar do mau olhar persistente quando se tenta falar de fantástico em certos meios (na melhor das hipóteses, isso é assumido como um mero prazer culposo por parte de algumas figuras intelectuais da nossa praça).

E, no entanto, houve cinema português dedicado aos temas do fantástico e outros géneros. Ao longo da já longa história do cinema português, houve filmes que se atreveram a falar de fantasmagorias, ficções futuristas, assombrações, e até entraram nos campos mais exploitation. Portugal também foi palco de várias coproduções europeias de filmes de série B, daqueles maus mas deliciosos filmes de horror com zombies medievais, freiras marotas ou outras explorações.

Apesar do progressivo peso do lado comercial do cinema fantástico e de terror que se tem viso assumir no MOTELX, quer do comercial mainstream quer do comercial de nichos, este festival sempre fez questão de olhar para o potencial terror no cinema português. Sem dúvida, graças ao trabalho dedicado de João Monteiro, um dos seus organizadores, e talvez a única pessoa a desenvolver trabalho académico focado nas cinematografias de terror, fantástico e exploitation no cinema português (se não for o único, é o mais visível). O seu trabalho de recuperação da memória fílmica de António de Macedo é notável. Inesquecível, a sessão com a presença do realizador que lhe foi dedicada na edição de 2016, com aquela ovação em pé dos espetados na sala principal do S. Jorge apinhada. Se bem me recordo, infelizmente, foi das últimas aparições públicas de Macedo, falecido meses depois.

Como espetador deste festival, confesso que a seção Quarto Perdido é das que mais aprecio. Sei que oferece sempre filmes obscuros da história do cinema português, tornados raros pelo clássico desprezo do cinema de género pelas elites intelectuais que são, simultaneamente, aqueles que gerem os sistemas de financiamento público do qual depende o cinema português.

A recuperação desta memória é importante, não só pelo redescobrir das obras. Hoje, os espectros culturais são mais alargados, e isto mostra a novas gerações que por cá, houve precursores, cineastas que experimentaram com estes temas, de forma isolada por todas as razões já elencadas, ou, quando de forma sistemática, a custar-lhes a carreira como realizadores. 

A lista de filmes portugueses ligados ao fantástico não é muito grande. Este livro recupera a sua memória, com ensaios dedicados aos principais filmes. Recupera a memória de filmes, dos seus realizadores, temáticas e inspirações. Podemos não ter por cá um longo historial de cinema fantástico, mas o que temos merece ser descoberto. E nisso até incluo estopadas como O Cerro dos Enforcados, belíssimo apesar do ritmo teatral lírico que era marca de época. 

terça-feira, 17 de setembro de 2019

H-alt: Legendary Horror Stories


Este fanzine foi uma das melhores companhias para esta edição do Motelx. Perfeito para se ir lendo na varanda do S. Jorge, com a bebida espirituosa de eleição bem gelada, para cortar o calor opressivo deste Setembro. A lufada gélida deste fanzine antológico é complementada por um easter egg que não resisto a spoilar (sempre dá mais uma boa razão para tentar praticar as artes de cutelo que aprenderam a ver os filmes do festival). Há um elemento gráfico comum a todas as histórias, que conseguem sempre incluir uma referência visual ao olho ensanguentado que faz a imagem de marca da Legendary. Resenha completa na H-alt: Legendary Horror Stories.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

MOTELX 2018


Havia um espírito diferente no ar durante este MOTELX. Notava-se uma ausência de elementos decorativos nos espaços do festival. Não houve morcegos pendurados no teto, ou enxames de balões vermelhos. Nada de sangue falso nas casas de banho. O único espaço mais decorativo foi montado pela TVCine, com props alusivas a séries  e filmes numa zona criada com o sentido estético de uma loja chinesa. Todo o ar de evento in e fashionista que se tem feito sentir no festival estava bastante discreto. De tal forma que quando correu o rumor da presença de James Franco numa das sessões não se traduziu numa multidão de selfies. Pessoalmente, quando me disseram isso e o apontaram nas pessoas que saíam da sala Manoel de Oliveira, pensei mas este não é o Jess Franco, é demasiado novo, e espera, o Jess Franco ainda é vivo?” Continuo a fazer uma ideia muito pálida de quem é James Franco. E, empinando o nariz, estou bem assim. A minha cinefilia é mais de estruturas narrativas e estéticas fílmicas.

Para grande surpresa minha, não dei com sessões esgotadas. Terão sido efeitos da sobreposição com a Comic Con? No meu caso, como  a minha experiência na convenção no Porto não foi especialmente apelativa (como alguém me disse este fim de semana, na Comic Con, pagas bilhete para gastar dinheiro, e se essa não é a melhor descrição do evento, não anda longe), escolher o MOTELX foi no brainer.

Senti que estava realmente num festival de cinema. Poucos hipsters, muitos fãs e uns polvilhos de celebridades, porque estamos em Portugal e dá-se valor a essas coisas. Ajudou ter visto uma seleção de filmes que, tirando um (spoilers: não é o musical com Zombies), eram interessantes,  consistentes e até arrepiantes, sensação rara para cinéfilos endurecidos.

Fraquinho, fraquito foi o spot MOTELX. O do ano passado roçava o perturbador, este ano a coisa foi mais convencional com Templários, livros envoltos e relâmpagos e esqueletos com toques de Ray Harryhausen. Visualmente bem feito, mas de uma temática banal.



Ghostland (Pascal Laugier, 2018)

Coisa estranha. Dei por mim a sentir arrepios na espinha. Este é um daqueles filmes surpreendentes, que nos troca as voltas. Começa como drama, a explorar as tensões entre duas irmãs, e segue pelo que aparenta ser um banal torture porn. Depois muda, passa pelo terror psicológico e história de fantasmas clássica, até nos atingir no estômago com um brutal regresso  à violência. A história desafia continuamente as expetativas do espetador, e a realização magistral agarra-nos à  cadeira. A premissa do argumento parece um banal episódio de policial procedimental. Duas irmãs, são raptadas  e torturadas na casa isolada para onde vão viver por dois psicopatas. Assistem à  morte da mãe e só lhes esperam horrores às mãos dos raptores. Uma das jovens, aspirante a escritora de terror e apaixonada pela obra de Lovecraft, mergulha num mundo de fantasia para não aceitar a realidade violenta. Terá de despertar, enfrentar os seus captores e junto com a irmã  sobreviver. O filme vive de uma desavergonhada estética vitoriana decadente, com uma casa envelhecida recheada de bric a brac e bonecas creepy. No fundo  foi  obra mais Grand guignol que vi nos últimos tempos.


Anna and the Apocalypse (Jon McPhail, 2017)

Uma comédia musical de zombies é o tipo de ideia que pode funcionar espetacularmente ou falhar redondamente. Este filme consegue falhar nas duas vertentes, tal a inépcia do realizador. O seu verdadeiro problema é ser inconsistente. Tenta ir à comédia, ao drama, ao musical e ao horror. Esforça-se imenso por isso, tem gags de comédia sangrenta deliciosos, mas não se sustém em linha contínua. Os momentos dramáticos são pouco convincentes e no que toca ao terror, a mesma coisa (o que, sendo comédia, faz sentido). No musical, diria que o melhor é a falta de sincronização entre os atores e a voz. Imaginem um videoclipe com cantores desfasados com a música, a abrir e fechar a boca como peixes fora de água. O realizador bem tenta usar referências irónicas à teen comedy no musical, mas a forma como filma não funciona. O argumento narra as desventuras de Anna, uma jovem a acabar o liceu e cheia de vontade de ir viajar pelo mundo, e dos seus amigos, família e tirânico diretor da escola durante um zombie outbreak. Tem premissas sólidas, ironiza e muito os filmes de adolescentes, mas não consegue chegar onde poderia. Dei por mim a passar  o tempo a combater a vontade de ir ver que horas eram. Safa-se uma cena, onde uma jovem adolescente a encarnar a iconografia de cantora sexy dos anos 50 canta uma canção muito marota numa festa de Natal na escola, completa com uma coreografia de ajudantes adolescentes de pai natal vestidos só com calçõezinhos em poses sugestivas com bengalas. Shaun of the Dead continua a ser a referência na comédia de terror zombie. Anna and the Apocalypse queria juntar-se ao clube, mas não consegue. Apesar das suas deficiências, tem momentos divertidos, e persiste na memória dos fãs do género como algo que não se leva a sério mas homenageia com ironia os pressupostos dos zombies.


The Ranger (Jenn Wexler, 2018)

Uma jovem punk e os seus amigos estão em fuga depois de uma rusga onde um polícia foi esfaqueado. O plano passa por se esconderem numa casa isolada nas montanhas, onde a jovem passou a sua infância com um tio morto em circunstâncias misteriosas (correndo o risco de spoilar, envolve a jovem, armas de fogo e memórias traumáticas suprimidas). Mas a montanha é protegida pelo guarda florestal from hell, um agente da lei que leva demasiado a sério as infrações ao código do parque florestal e as pune com extremo prejuízo. O filme demora a arrancar, passando muito tempo a explorar as tensões internas do grupo de amigos e as contradições do anarquismo punk. Quando chega o ponto certo, explode num varrimento sangrento de slasher/psychokiller. Mais thriller do que horror, é um filme eficaz filmado numa saturação suave que invoca os anos 80.


Gonjiam Haunted Asylum (Beom-sik Jeong, 2018)

Este foi o segundo filme desta edição do MOTELx que genuinamente me arrepiou. Obra sul-coreana, aplica a estratégia cinema vérité/found footage à clássica história de casa assombrada. É uma técnica que Blair Witch Project e suas imitações levaram à banalidade, e que neste filme se distingue por replicar a estética, ou falta de, do streaming para o YouTube. Todo o filme está concebido para nos colocar no papel de alguém que segue um canal, com múltiplos pontos de vista e uma sensação de improviso constante. Não o é, claro, senão o filme não seria tão eficaz, mas simula muito bem o estilo vlogger. A história é típica casa assombrada, com os personagens a visitar à noite um lendário asilo em ruínas assombrado pelos espíritos dos seus pacientes. O objetivo é filmar um evento para canais de vídeo online ganhando dinheiro com visualizações, e para isso alguns dos personagens falsificam efeitos de suposto sobrenatural. Mas o horror está lá, violento, visceral e inexplicável, e quando se manifesta fá-lo de formas completamente arrepiantes. Ver este filme, a obra mais creepy que vi nos últimos tempos, é ter garantidos saltos na cadeira e arrepios na espinha.


Ghost Stories (Jeremy Dyson, Andy Nyman, 2017)

Este é o terceiro filme que vi no MOTELx este ano que conjurou momentos de arrepio. Tem uma estética antiquada, muito literária. Há muito de MR James e Arthur Machen (com referências muito óbvias a The White People). O espírito do horror vitoriano é muito bem invocado numa história que vive de sombras onde se ocultam forças estranhas, capazes de levar os homens à loucura. Quem ler estas linhas poderá pensar que este é um filme de época. Bem pelo contrário. A história é contemporânea, sobre um investigador do paranormal que se especializa em desacreditar místicos e a mostrar que as histórias do oculto não passam de mistificações ou efabulações. Contactado pelo seu inspirador, investiga três casos arrepiantes que testam os limites do seu ceticismo, e acabam por o mergulhar em memórias aterrorizantes de adolescência. O final é um inesperado plot twist, que ata as pontas com uma lógica realista. Este tipo de artifício narrativo é em si mais um aceno à tradição literária do terror britânico.


Veronica (Paco Plaza, 2017)

Inspirado num caso real acontecido na Madrid dos anos 90, este é um daqueles filmes de pavio lento, que segue o seu caminho de forma metódica, avolumando a sensação de terror até ao final explosivo. Muito bem conseguido em termos de ritmo, sempre em suave crescendo sem dispersar a atenção do espetador. A história, apesar de pender muito para o sobrenatural clássico, não deixa para trás alguma ambiguidade. Verónia pode ser uma adolescente que atraiu espíritos malévolos após uma sessão mal concebida de espiritismo seguindo as instruções de uma enciclopédia em fascículos, durante um eclipse solar, ou uma jovem que entra em colapso mental ao sentir as pressões da puberdade. Há muito invocar da sensação de presença de espíritos imundos, uma estética que evoca muito bem os anos 90, um desempenho excelente dos atores mais jovens, que levam o filme aos ombros, e um constante remeter para a música dos Heroes del Silencio.


Aparelho Voador a Baixa Altitude (Solveig Nordlund, 2002)

Todos os anos o festival recupera um filme esquecido do cinema fantástico português (é pouco, mas existe). Confesso que é o meu momento favorito do MOTELX, por poder ver obras que só quem tem acesso aos arquivos da Cinemateca normalmente veria. Não são necessariamente bons filmes - a cinematografia de António de Macedo é a grande exceção, alguns estão muito datados, mas mostram que ao longo da história do cinema português houve muitos cineastas que se atreveram a contrariar a dicotomia entre cinema altamente erudito ou muito popular, que sempre caracterizou os nossos meios culturais.

E este é mesmo um filme inesperado. É mesmo uma ave rara no panorama cinematográfico português. É de ficção científica pura, apesar de não ter rayguns nem naves espaciais. Adapta uma obra JG Ballard, um dos maiores escritores de FC do século XX. Fá-lo transportando fielmente para o ecrã, com parcos meios, a estética literária do autor.  A FC aqui é o fantástico inner space dos autores da New Wave dos anos sessenta, com personagens solipsistas em paisagens decaídas e mundos de apocalipse lento. As ruínas inacabadas do complexo turístico de Tróia, à altura da filmagem ainda não revitalizadas e transformadas (ah, a ironia) no espaço profundamente ballardiano que são hoje (leiam Super-Cannes e percebem onde quero chegar), são o pano de fundo de uma história onde um mundo envelhecido mas que se recusa a desaparecer é obrigado a dar lugar ao seu sucessor. Num filme sem pretensões mas a ir muito longe, Solveig Nordlund canaliza na perfeição a estética própria de JG Ballard. De todas as adaptações cinematográficas da sua obra, este é, talvez, o filme que melhor transmite a visão estética de uma modernidade solitária, ostensivamente de resorts brutalistas com a água azul das piscinas a brihar sob o sol do deserto do real.


Brother’s Nest (Clayton Jacobson, 2018)

Diz muito sobre a monotonia um filme quando adormeci durante boa parte e mesmo assim não perdi o fio à meada da história. Não que este seja um mau filme. É uma história de um profundo humor negro, sobre dois irmãos que decidem matar o enteado para recuperar a herança da casa. Tudo correrá mal, e morre quase tudo, enteado, mãe e um dos irmãos . O filme vive do diálogo entre os dois irmãos, numa progressiva espiral de loucura homicida. O problema é que não passa muito disso. É daqueles filmes que se vê enquanto se faz outra coisa. Como dormitar um pouco para retemperar energias.


Errementari (Paul Urkijo Alijo, 2017)

Foi com este filme que terminei o meu MOTELX deste ano, e que final em grande! Começo pela ironia de ver um filme espanhol que os espanhóis só podem ver com legendas. Todos os diálogos estão em basco, essa língua que soa a invocação do demo. Errmentari vai buscar a sua estética ao folclore do país basco, numa história cativante sobre um ferreiro que, depois de vender a alma a um demónio, acaba por o aprisionar na sua forja. Este verdadeiro mean son of a bitch (isto tem basco deve soar melhor), tem na verdade um bom coração, que se revela com a interação com uma jovem orfã, pela qual se atreve a descer aos infernos para o salvar. Para grande azar dos demónios. História divertida, fortemente enraizada no folclore quer basco quer espanhol, e com uma fotografia fortíssima, de fazer suspender a respiração.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

MOTELx 2017


O festival MOTELx tornou-se um ritual de fim de verão, no meu caso de arranque de ano letivo. Nada como preparar o espírito para o frio cinzendo das invernias que se avizinham com doses concentradas de cinema de terror. E nada como monstros, assombrações e baldes de tripas e sangue para me preparar para os horrores arcanos da convivência diária com professores e alunos no sistema educativo. O festival continua abrangente e eclético, talvez um bocadinho demasiado nos holofotes da moda comercial, algo inevitável e necessário à sua sobrevivência. Temos no programa um pouco de tudo, desde obscuros filmes portugueses (este ano não vi nenhum, infelizmente) aos filmes com pretensão a blockbuster (e promoção intensiva a condizer). Continua com os seus programas paralelos, com atividades para lá da cinefilia, ciclo na relutante Cinemateca, animação no espaço do cinema S. Jorge. E os gelados, claro, este ano sem os adereços de terror da IScream, mas com a deliciosa mestria dos gelados artesanais, feitos com as metodologias italianas, da Giallo. Confesso que terminei os dias do MOTELx um pouco mais anafado. E não sou caso único.



À Meia Noite Levarei A Sua Alma (José Mojica Marins, 1967)

Ainda em modo warmup, o primeiro filme da leva MOTELx deste ano. Como parte da programação, a Cinemateca organizou um mini-ciclo de cinema de terror sul-americano. Com alguma relutância, suspeito, depois de ouvir o comentário pouco convincente do responsável da Cinemateca no início da sessão. Foi uma boa oportunidade para rever este clássico do cinema de terror, o primeiro do lendário ciclo Zé do Caixão de José Mojica Marins, cineasta que, de acordo com António Monteiro, organizador do festival, se confunde com as suas personagens. Aqui encarna-a com veia, mostrando o porquê de ser um seu alter ego. É um filme deliciosamente incongruente, que transporta a iconografia do horror gótico para um cenário de tropicalismo empobrecido. Memorável pelo carácter obsessivo, cenas over the top conseguidas com efeitos mínimos e rústicos.



Super Dark Times (Kevin Phillips, 2017)

O filme de abertura do Motelx deste ano posicionou-se como um clássico instantâneo, uma espécie de novo Donnie Darko. Leva-nos à clássica small town americana no início dos anos noventa, focado num grupo de adolescentes que, após a morte acidental de um dos seus elementos mergulha numa espiral de paranóia, com um dos personagens a tornar-se serial killer. O filme é suportado pelo excelente trabalho dos actores, que conseguem criar uma enorme empatia com o espectador, e a sua estética cinzentista e revivalista. De resto, falha, arrastando-se numa história facilmente compreensível e menos misteriosa do que o anunciado. A única comparação possível com Donnie Darko é a forma eficaz como toca na nostalgia de época, com um tremendo revivalismo dos primórdios da década de 90 do século XX.


The Masque Of The Red Death (Roger Corman, 1964)

Entre a cinematografia lendária de dois gigantes do cinema, Roger Corman e Vincent Price, a série de filmes góticos adaptando contos de Edgar Allan Poe destaca-se. Neste, os talentos combinados destes monstros do cinema aliam-se ao olhar estético de Nicholas Roeg para uma adaptação barroca de um dos contos seminais de Poe. Price delicia-se claramente  no encarnar de um personagem fútil e implacável, que se compraz na corrupção moral dos que o acompanham, não descansando enquanto não recorre a todos os meios para destruir a inocência. Todo o filme é uma elegia à futilidade, mostrando que o dinheiro e o esplendor podem criar a ilusão de uma superioridade humana, facilmente aniquilada por imperativos biológicos. Nenhum luxo, ciência ou pacto demoníaco resiste ao poder da pestilência. O filme brilha num fortíssimo esplendor cromático, com um trabalho implacável de enquadramentos que tira partido do formato cinemascope para tornar quase paisagísticas as cenas de um filme de close ups e ambientes fechados. A sessão contou com a presença de Roger Corman, com visionamento prejudicado pelas condições da sala, pouco arejada e com um som demasiado estridente. Uma constante nas sessões do festival que decorreram no Tivoli.




78/52 (Alexandre Philippe, 2017)

Um documentário dedicado à sequência mais memorável do cinema de terror: a icónica cena do chuveiro no filme Psycho. O trabalho inquietante de Hitchcock é dissecado ao pormenor clínico, onde os aspecto técnicos são abordados mas o que realmente conta é a análise das influências e impactos desta cena de um filme. Neste aspecto, alguns depoimentos parecem sofrer da análise excessiva, procurando ver na cena e no filme muito mais do que o que realmente lá está. Para além do brilhantismo técnico de Hitchcock, ficou a sobressair o seu sentido muito negro de humor.




Santa Sangre(Alejandro Jodorowsky, 1989)

De Jodorowsky não esperamos banalidades. Santa Sangre é, nas suas palavras, uma tentativa de compreensão do que se passa no interior da mente de um assassino, bem como da impossibilidade de inexistência de redenção. A mente fragilizada de Fénix, traumatizado pela morte violenta dos pais e perda do seu amor precoce, transforma-o num assassino em série que, projectando a imagem mental da sua mãe desmembrada no seu inconsciente, o leva a matar qualquer mulher que lhe desperte o desejo sexual. Todo o filme é um exercício de psicadelismo, misturando o saber iniciático com uma visão arrepiante das tradições mexicanas sobre a vida e a morte. Santa Sangre é um crescendo contínuo de delírio, um filme que sempre que pensamos não poder ir mais longe, nos choca e surpreende.


Cult of Chucky (Don Mancini, 2017)

 Não vale a pena esperar muito da mais recente iteração sequencial das aventuras deste personagem diabólico. Agrada aos fãs de Chucky, como se notou pelo contentamento visível na sala e debandada quase generalizada após o final numa sessão dupla. Tem algumas mortes divertidas e apropriadamente sangrentas, muitas tiradas de humor negro dos bonecos assassinos, e uma história previsível com um twist final não muito inesperado. Um filme de terror pipoca, que dá continuidade a uma saga cinematográfica já de si pouco interessante.


Meatball Machine Kodoku (Yoshihiro Nishimura, 2017)

Não é o melhor filme que vi nesta edição do Motelx (essa distinção fica para Masque of the Red Death, Santa Sangre e o surpreendente Housewife), mas é sem dúvida o mais memorável. É difícil transmitir o quão awesomely louco é este delírio visual. A sinopse, sobre um homem não muito bem sucedido que aos cinquenta anos encontra o amor e se vê mergulhado numa luta contra cyborgs mutantes, não lhe faz justiça. Todo o filme é um delírio entre o body horror, gore e cyberpunk, com deformações insanas do corpo humano e algo que só pode ser descrito como torrentes imparáveis de sangue. Deliciosamente absurdo e divertido, em registo de exercício de estilo alucinante. Um tipo de filme só possível vindo da estranha cultura japonesa.


Animals (Greg Zglinski, 2017)

Filme na competição para o prémio Motelx, esta co-produção suíça, polaca e austríaca mergulha-nos na vida de um casal em desagregação. Ela é uma escritora a tentar criar o seu primeiro livro para um público adulto, ele é um chef cozinheiro que trai a mulher em todas as ocasiões, apesar de não ter deixado de a amar. Numa viagem de férias para uma casa isolada onde a escritora poderá escrever o seu livro, um acidente automóvel deixa-a inconsciente. O filme é notável pelo conceito, nunca nos deixando perceber qual é a sua realidade. Os acontecimentos narrados de forma não linear deixam-nos sempre na dúvida. Estaremos a ver alucinações, assombrações, delírios ou os sonhos sincopados do estado de coma. O seu visual também nos cativa. No entanto, o ritmo demasiado lento, cheio de tempos mortos, torna este filme muito soporífero.


Housewife (Can Evremol, 2017)

Começa como slasher, segue em ritmo de thriller psicológico, e termina em horror apocalíptico lovecraftiano. Este filme foi uma excelente surpresa, embora não esteja isento de problemas. Uma dona de casa, casada com um investigador do paranormal, tem no seu passado um fortíssimo trauma, causado pela morte violenta da irmã e dos pais num acesso de loucura da mãe. Um trauma que condiciona a sua maneira de viver, que será abalada pelo regresso de uma amiga há muito desaparecida, que a iniciará no culto de um guru espiritual. Este revela-se mais do que um mero charlatão, utilizando-a para trazer ao mundo um bebé ímpio, prenúncio de uma nova geração de seres malditos. É impossível não sorrir com o final do filme, profundamente lovecraftiano, com os requisitos monstros tentaculares, após momentos de parto anti-natural fortemente reminiscentes de The Brood, filme de David Cronenberg. Apesar de apostar no gore e terror psicológico, tem alguns momentos menos ritmados e um estranho defeito. Trata-se de um filme turco, com atores turcos, que pretende demasiado ser americano, mas aqueles sotaques não disfarçam.


Spot Motelx 2017 (Jerónimo Rocha, 2017)

A passar mais despercebido, embora tenha iniciado todas as sessões do festival. Foi a experiência visual mais incómoda, talvez verdadeiramente arrepiante, que retirei deste festival de cinema de terror. Os spots do Motelx são curtas metragens de direito próprio, e normalmente surpreendem pela qualidade. Têm estéticas cuidadas, focadas nas iconografias do género, e socorrem-se de adereços e efeitos visuais que pensamos serem inauditos no panorama nacional. Mas são, no fundo, experiências visuais confortáveis, por muito sangrentas ou viscerais que sejam as imagens. A barreira do ficcional nunca foi transposta. Exceto no spot deste ano. Ao invés de seguir a estética esperada do horror, com tripas e criaturas, optou pelo registo found footage e meteu-se com uma tradição totalmente nacional, a dos Diabos de Vinhais. Aqui revistos como um grupo violento que tortura e mata um casal nas matas. É forte, violento, arrepiante. E incómodo, quer na estética quer no tema, por mexer com o nosso imaginário e ser explícito na violência. Este ano não foram zombies, dons Sebastião vindos das brumas, ou naves aterrorizadas por criaturas. Foram os demónios do imaginário tradicional português, encarnados no que poderia perfeitamente ser um grupo de psicopatas matarruanos a assolar as matas do isolado interior profundo português.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Visões: Motelx, 10ª Edição



O festival Motelx é a minha grande tradição de rentrée educativa. Nada melhor para celebrar as agruras e desafios de mais um ano lectivo do que mergulhar num transe induzido por filmes de terror. Saí da edição do ano passado com o firme propósito de see moar films, mas as datas do ticEduca apanharam-me e passei parte dos dias do festival a aprender e partilhar ideias sobre tecnologia educativa. O que deu origem a curiosos sincronismos, como estar de manhã a ouvir Sugata Mitra em conferência, e assistir à tarde a uma apresentação e filme de António de Macedo, e perceber que em áreas e experiências diferentes, ambos disseram o mesmo sobre o poder da felicidade individual como elemento basilar para a construção de uma melhor sociedade. Mitra expôs a ideia através de uma matriz de características a incentivar nos alunos, Macedo num diálogo do seu filme, onde um presidente de câmara comenta com um padre de aldeia que por vias ínvias (é um filme de Macedo...) vê o seu sonho de um natal cheio de brinquedos para as crianças pobres, que "mas olhe que isso não resolve o problema social". "Estão felizes, " responde, "é o primeiro passo".

Yep. Conexões entre áreas díspares sem ligação aparente ente si. É um vício, confesso.



Don't Breathe (Fede Alvarez, 2016)

Thriller procedimental muito bem estruturado e montado, apesar de bastante banal na sua premissa. É um misto de casa assombrada/de horrores com um anti-herói violento, que vai dar caça à um grupo de jovens que trespassa a santidade do seu lar, podendo revelar os segredos tenebrosos que as paredes ocultam. Há aqui umas variantes. Ninguém é inocente, as vítimas são pequenos ladrões, e o formidável e imparável adversário é cego. Imaginem um Mr. Magoo muito badass, e já perceberam o filme. Destaca-se pelo uso da paisagem suburbana de uma Detroit caída ao abandono para a sua estética do isolamento geográfico, estrutura implacável e ritmo mantido sempre elevado. A técnica cinematográfica deste filme, de excelente nível, está afinada para manter sempre o espectador intrigado com o inesperado.

Este filme abriu, e muito bem, o festival. Dispensava-se era a longa introdução (mais de uma hora, creio), dos organizadores. Sim, certo, o festival está a crescer e ainda bem, patrocinadores oblige e há que os mencionar, e claro que um simples declaro o festival aberto também não teria piada, mas era mesmo preciso passar tanto tempo a abrir o festival?


O Segredo das Pedras Vivas (António de Macedo, 2016)

Nos anos 90, António de Macedo realizou para a RTP uma série de temática natalícia, que mais de vinte anos depois, com esquecimento e bobines perdidas pelo meio, consegue realizar como o gostaria de ter feito na altura, como narrativa cinematográfica. Com este realizador, já se sabe que a abordagem seguirá caminhos de recorte misticista, na confluência da modernidade contemporânea da época filmada com tradições milenares e esoterismo. Com o seu humor e acutilância muito própria, leva-nos a um Alentejo interior onde as antigas tradições colidem com os interesses venais. Quando um arquitecto chega a uma aldeia para trabalhar na encomenda de uma casa por parte de um grande proprietário local, descobre-se num mundo ancestral, onde antigos ritos são mantidos vivos por mulheres sensíveis, a religião é uma instituição carinhosa, enriquecido pelos dramas, amores, desamores e idiossincrasias de cada um, a tensão entre lucro e tradição é muito grande. Omnipresentes, mas ameaçadas, as pedras, cromeleques e megalitos milenares espalhados pelas terras, talvez alinhados pelas linhas de força telúrica do planeta.

É o grande ponto alto do Motelx deste ano. Pelo regresso deste veterano realizador, já tão tardio e que já tanto tardava, pela homenagem à sua carreira e personalidade. Arrepiou, ver o público que enchia a Sala Manuel de Oliveira do cinema S. Jorge a aplaudir, de pé, este grande e tão esquecido mestre do cinema fantástico português.



The House on the Edge of the Park (Ruggero Deodato, 1980)

Evitei deliberadamente a sessão de Cannibal Holocaust, optando por este para preencher a lacuna na minha cultura fílmica que é não conhecer a obra de Ruggero Deodato. O exagero chocante de exploitation não me atrai. Esperava deste um filme incómodo, sangrento, perverso, a fazer jus à fama do autor. Passei a sessão com sérias dificuldades em manter-me acordado, imune à sucessão de imagens de erotismo violento desta história que parecia ser uma situação em que jovens ficam à mercê de personagens violentos mas no final se revela uma vingança perversa, com as vítimas a deixarem-se vitimizar deliberadamente para justificar um assassinato por vingança. O melhor do filme foi as dessincronização entre o som e a imagem, que nos legou momentos de comédia acidental. Com este filme coloquei um visto no nome de Deodato e pus de lado. Os prazeres viscerais do voyeurismo da exploitation não são de todo uma vertente que goste no cinema fantástico.


K-Shop (Dan Pringle, 2016)

Não tinha quaisquer expectativas sobre este filme, candidato ao prémio de longa metragem do festival. A apresentação do realizador, observando que íamos ver british people behaving badly, despertou a atenção. O filme vive dessa tensão, entre filme de terror tradicional que segue as façanhas de um serial killer e a acidez do comentário social sobre a lad culture e a tradição de bebedeiras sem limites, com todos os comportamentos violentos e degradantes que lhe estão associados e a cupidez de empresários sem escrúpulos que incentivam estas culturas. Ainda toca nas tensões étnicas, com descendentes de imigrantes como alvo da xenofobia de bêbedos violentos. Apesar de algumas linhas narrativas demasiado desenvolvidas face a uma poderosa história fulcral, é um filme forte e divertido. Sem querer fazer muitos spoilers, digamos que o destino que aguarda os bêbedos que vandalizam a loja do jovem ex-estudante de uma prestigiada universidade londrina, herdada do seu pai, refugiado de guerra, nunca mais vai deixar os espectadores deste filme olhar para um kebab da mesma maneira. Tastes like chicken, diziam os antropófagos. Ah, esse é o bónus do filme. Boas lições sobre como fazer kebab caseiro, com ingredientes frescos e naturais. 



Tiaga/A Princesinha das Rosas (Noémia Delgado, 1981)

Um dois em um,  recuperando a cinematografia de Noémia Delgado através de dois episódios televisivos que dramatizam contos fantásticos de autores portugueses. Em Tiaga, adaptado de um conto de Aquilino Ribeiro, acompanhamos uma mulher idosa que revive o viço da juventude, através das artes mágicas de um peregrino tomado pelo espírito do demo. A Princesinha das Rosas mergulha-nos  num decadentismo medievalista de fin de siecle, a partir de um conto de Fialho de Almeida. Conta a história de Naíde, filha dos amores de um pescador e de uma sereia, adoptada por um rei que a encontra, quando bebé, à deriva numa barcaça pelos rios.

Filmes de uma estética notável, belos nos seus enquadramentos e iconografias. A velha e o seu bode preto nas serranias áridas, as sereias caprichosas nas águas, o peregrino a ser possuído pelo demo, a noiva defunta que se eleva da sua campa num cemitério oculto sob o céu nocturno. São imagens poderosas, compostas com um forte sentimento estético. O hieratismo dos filmes, de uma teatralidade monumental nas suas declamações, a lentidão do seu ritmo, marcam o estilo de um certo cinema português, apreciado pelos intelectuais, mas não muito adaptável aos gostos mais generalistas. Visualmente espantosos, mesmo vistos em cópia degradada, são filmes pesados e maçudos.



The Devil's Candy (Sean Byrne, 2015)

Um filme apropriado para encerrar o festival, num registo de terror clássico. Tem uma curiosa indecisão entre filme de assassino em série e possessão demoníaca, apesar de se centrar numa casa amaldiçoada por uma possessão, e na família de um pintor que tem entre os seus clientes um galerista chamado de Belial. Difícil ser mais óbvio que isto. O filme tem um forte pendor para as sonoridades e iconografia do metal, usando muito o som como elemento de tensão. Vai em crescendo até ao final deliciosamente violento e apocalíptico. Não se tornará um clássico deste género de cinema, mas garantiu um final divertido do Motelx.



The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975)

Suspeito que se tornará tradição no festival. Depois da sessão memorável do ano passado, esta delícia de mau cinema regressou, desta vez numa sessão ao ar livre no largo de S. Carlos. Parte do warm up do festival, foi interessante ver o largo cheio de fãs, cosplayers vestidos a rigor (com especial predilecção por Magentas, já que para se encarnar como doutor Frank N Furter é preciso muita coragem), e bastante público atraído pela proposta de cinema ao ar livre numa morna noite de verão. Estes últimos de certeza que não estavam à espera deste tipo de filme.

A sessão sublinha o quanto este filme mostra que se o cinema, hoje, poder ser visto em múltiplos ecrãs e formatos, é na experiência social de ir ao cinema que está a essência desta arte. Este filme, assumidamente mau e over the top, não funciona se for visto em isolamento. É a interacção entre o público e a imagem projectada, canonizada em guiões seguidos à risca pelos fãs, que torna o seu visionamento uma experiência fantástica.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

MOTELx 2015: Eugenie



Eugenie (Jess Franco, 1969)

Para encerrar a minha visita ao MOTELx deste ano, um mergulho num filme de culto, expoente do sexploitation com toque sado-maso, saído da lente perversa de Jess Franco. Eugenie adapta livremente A Filosofia da Alcova do Marquês de Sade. Claramente feita para chocar e excitar, esta história em que uma jovem inocente é pervertida por um casal incestuoso ligado a um grupo de sádicos que leva à letra os ensinamentos do divino marquês, não se poupa a olhares lânguidos sobre jovens corpos nus e carícias entre geometrias corporais. Apesar do óbvio carácter de exploitation (é Jess Franco, esperavam o quê, drama romântico?) e de se aproximar muito da pornografia softcore, é um filme visualmente fascinante, feito de enquadramentos que explicitamente colocam o espectador no papel de voyeur e cenários onde a saturação da cor sublinha a decadência sensual do argumento. Oscila entre o creepy e o deslumbrante, com muitas cenas de nudez gratuita à mistura num todo que acaba por ser mais psicadélico do que erótico, ao som de uma música pop dos anos 60 que lhe dá um carácter absurdo.

Apenas fico sem compreender a escolha deste filme como homenagem ao actor Christopher Lee, falecido este ano. Percebo a opção por um filme de culto raro de Jess Franco dentro de um festival de cinema que entende o Horror como género abrangente, com incursões noutras cinematografias de culto. Este é o local e o momento certo para descobrir estas cinematografias. Mas homenagear um actor com um filme onde essencialmente representa o papel de pau falante declamando linhas de De Sade enquanto caminha, lentamente, durante os quinze ou vinte minutos totais que está em cena parece estranho. Então e os lendários clássicos Dracula da Hammer? Curiosamente, a Cinemateca está a organizar um ciclo de homenagem a Christopher Lee que inclui Dracula de Jess Franco. Questões de concorrência?

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

MOTELx 2015: Dust Devil



Dust Devil (Richard Stanley, 1992)

É também por isto que se vem ao festival de cinema de terror. Para descobrir ou redescobrir filmografias antigas, influentes mas enterradas debaixo do constante fluxo de novidades das avalanches contínuas da cultura popular. Este ano o festival focou a obra do realizador sul-africano Richard Stanley, nome um pouco obscuro mas que diz quem assistiu à sua masterclass que é uma figura brilhantemente quixotesca. Filme de 1992, é um bizarro cruzamento de road movie, policial e thriller sobrenatural, com toques de western. Seguimos o périplo assassino de um demónio que assumiu forma humana, para quem os assassínios ritualistas são a forma de adquirir poder suficiente para transcender os grilhões da carne e regressar ao mundo que fica para lá do espelho. Caça há décadas, talvez há séculos, as suas vítimas nas paisagens tisnadas da Namíbia. É aqui que reside a maior força do filme, na forma como transmite o calor sufocante do deserto com a saturação constante da cor, a fortíssima horizontalidade dos enquadramentos e a banda sonora claustrofóbica. Estados de sonho, delírios hipnagógicos, a monotonia das longas estradas do deserto que confundem a percepção sublinham a hostilidade do ambiente.Também é interessante a colisão entre mitos milenares africanos e a tradição gótica do demónio que perverte a ordem natural. É um filme provocador, deliberadamente filmado num território que para os sul-africanos recorda os estertores finais da era do apartheid, aqui focando a retirada do território ocupado da Namíbia. As tensões raciais estão em evidência durante todo o filme e, como observou o realizador na apresentação da sessão, não foi por acaso que escolheu como vilão um homem caucasiano, louro e de olhos azuis.

Sendo uma final cut, esta versão pecava por ser demasiado longa. O filme é poderoso e inquietante, com momentos de terror puro, mas arrasta-se em demasia em cenas que mereciam uma edição mais sintética.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

MOTELx Histórias de Terror



Afonso Cruz, et al (2015). MOTELx Histórias de Terror. Lisboa: Escritório Editora.

Este tipo de antologias, lançadas como parte integrante de eventos temáticos, é geralmente pouco homogénea na sua qualidade. Os autores mais conotados com os géneros são iguais a si próprios, os novos nomes surpreendem pelas ideias mesmo que a prosa esteja ainda imatura, e as figuras convidadas de outras áreas, quer como artistas ou escritores mais habituados a géneros mais mainstream, ficam-se por contribuições desastrosas. Esta antologia não é excepção a isto, mas felizmente anda longe dos níveis de mediocridade de pontos baixíssimos como a felizmente esquecida antologia Ficções Científicas e Fantásticas, um daqueles livros que exemplifica na perfeição os altos e baixos deste tipo de publicações.

No global esta é uma boa companhia para os intervalos das sessões do festival de cinema de terror que enche o S. Jorge de fãs. Tem contos interessantes, na sua maioria bem escritos, e mesmo os menos bem conseguidos conseguem ter algo de estranho e intrigante. Poderia ser uma iniciativa a manter nas próximas edições, juntando o prazer literário ao cinéfilo. Normalmente estas ideias ficam-se pelo acontecerem uma vez, mas talvez a força que o MOTELx continua a revelar consiga tornar este tipo de iniciativa mais recorrente.

Onde esta antologia se mostra consistentemente boa é na qualidade da ilustração, entregues a Alex Gozblau, João Fazenda, Esgar Acelerado, Manuel João Vieira, Mariana a Miserável, Mulher-Bala e Tiago Alexandre. Oscilando entre o simples mas incisivo e o surreal onírico, as ilustrações dão um bom sabor extra à antologia.

Contas Para Pagar: Afonso Cruz igual a si próprio, num conto de ironia macabra escrito com a sua habitual elegância literária. A história é sobre um escritor que desistiu das musas para procurar inspiração, tendo encontrado una fonte inesgotável de ideias literárias torturando metodicamente vítimas incautas. E mais não digo, até já disse demais.

A Parte Pelo Todo: Um conto de ritmo bem marcado que vai levando o leitor até ao desvendar do susto final, com um carteiro embevecido e uma mulher-monstro que talvez se tenha tornado bela encomendado partes de corpos pelo correio. Conto de Inês Fonseca Santos.

A Painelista: A contribuição de Adolfo Luxúria Canibal é uma sucessão de momentos tenebrosos, caracterizados com uma escrita vívida e cerrada, que no entanto como conto é previsível. Vale pelas partes e não pelo todo.

O Artista e as Pessoas de Olhos Negros: Menção honrosa do concurso literário MOTELx 2015, o conto do brasileiro Jeziel Buenon consegue alguns bons momentos de gore literário. A história fala-nos de um assassino que se vê confrontado por zombies que foram as suas vítimas.

Os Que Nunca Esquecemos: A este conto de Filipe Homem Fonseca falta-lhe alguma clareza estrutural. O ambiente tétrico surreal é depressa estabelecido e invoca imagens poderosas neste conto onde dois amantes são condenados a uma eternidade de torturas, tornadas suportáveis pelos breves momentos em que se tocam apesar do extremo sofrimento a que estão votados por causa do amor que ousaram professar.

Canção de Ninar: O conto de Victora F., vencedor do concurso literário MOTELx, é uma bem conseguida história ambígua sobre uma mãe que encara o seu bebé recém-nascido como uma criatura monstruosa, com um final que arrepiará os mais sensíveis.

Suicidem-me ou o Diário de Alva: A encerrar a antologia, um conto difuso de Patrícia Portela cuja criatura amaldiçoada começa por orbitar o género zombie mas se torna algo mais rarefeito e omnipresente.

domingo, 13 de setembro de 2015

Insta



Nestes dias ruma-se ao Cinema S. Jorge para os horrores do MOTELx.

MOTELx 2015: The Rocky Horror Picture Show



The Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975)

Mais do que um filme, a projecção é um happening cultural que celebra a cultura do fantástico. A comédia burlesca dominada pelo adorável transvestite from the planet Transsexual in the galaxy of Transylvania ironiza todos os estereótipos do cinema clássico de terror. Cientistas loucos, experiências macabras, servos deformados, jovens ingénuas, heróis de queixo quadrado, alienígenas em vestes bizarras, casas acasteladas entre o decadente e o assustador, ciência futurista em estado selvagem, pouco escapa à caricatura. O filme é um deslumbre kitsch, onde o exagero é levado para além de todos os limites e a sexualização burlesca dá o tom sublinhado pelas canções rock operáticas. É um bom filme que nos assalta os sentidos por ser deslumbrante e maravilhosamente mau, com o seu sentido do exagero burlesco assumido.



A organização do MOTELx esperou replicar nesta sessão a cultura participatória que mitificou este filme. Conseguiu-o, em certa medida. Não foi mais bem sucedida porque o público português é comedido e pouco habituado a sessões de cinema onde é esperado e permitido que se dance, comente de viva voz as cenas e diálogos, cante ao som das canções, bata palmas e atire objectos pelo ar. Mesmo assim a sala contava com muitos espectadores vestidos como os personagens, com um coro simpático que passou o filme a dizer piadas que assentavam como uma luva nos diálogos. O momento em que o Dr. Frank N Furter se revela foi uma apoteose de dança na plateia, que infelizmente não se repetiu, apesar dos esforços de alguns espectadores. Se bem que suspeito que o par que dançou e mimetizou Tim Curry na plateia seriam actrizes. Estava demasiado bem feito para algo supostamente espontâneo. Mas tornou a sessão mais interessante. Valeu a pena, quer pela referência cinematográfica, quer pela oportunidade de participar num pequeno delírio de papel higiénio pelos ares, cartas a voar ou borrifos de água sempre que chovia no ecrã. Havia, talvez, uma sensação muito forte de acertar nos detalhes de um ritual cujos pormenores não eram conhecidos por boa parte dos espectadores. E, hey, let's do the timewarp again. Afinal, a mental mind fuck can be nice. Belíssima experiência, que sublinha um aspecto fundamental de ver cinema: o seu lado social participatório, que nos dá experiências impossiveis de replicar nos sofás frente às televisões de alta definição nas salas dos apartamentos. O elemento que mantém a sala de cinema relevante na era em que alguns cliques de rato nos trazem qualquer filme para os ecrãs que temos em casa ou nas mãos. 

MOTELx 2015: A Caçada do Malhadeiro



A Caçada do Malhadeiro (Quirino Simões, 1969)

Uma das vertentes mais interessantes do MOTELx é a recuperação que fazem do cinema português de género, esquecido por uma memória cultural que privilegia ou o cinema erudito ou a nostalgia do cinema popular. Pelo caminho, com as bobines a apanhar poeira nos arquivos, ficam outras cinematografias desenquadradas do mainstream. O festival de cinema de terror insiste em trazê-los de novo ao públicos, não ao grande público mas ao que se interessa por conhecer estes intrigantes desvios à norma. Filmes que não são necessariamente excepcionais. Alguns dos que já vi nesta secção do festival são-no, caso de A Promessa de António de Macedo ou Crime da Aldeia Velha de Manuel Guimarães. Outros valem pela referência, por ficar a conhecer filmes portugueses que se aproveitaram dos temas mais risquè para tentar o sucesso.

João Monteiro, um dos responsáveis pelo festival, sublinhou que este filme de 1969 ia directo ao assunto, sem rodeios. É o que é, uma caçada em que pai e filho partem pelas serranias para vingarem a violação da filha por cinco soldados franceses em fuga para Espanha. O filme desenrola-se no final das guerras peninsulares, com os restos dos exércitos franceses de Massena derrotados nas Linhas de Torres e no Buçaco a bater em retirada. Para filme de acção, quase um western à portuguesa que se inspira na nossa história e literatura, funciona bem como documento histórico pela atenção dada a pormenores de guarda-roupa ou décor, que invocam o Portugal dos inícios do século XIX. A fotografia tem momentos onde os enquadramentos grandiosos glorificam as personagens. Houve uma intenção fortemente icónica neste filme, algo que geralmente é conseguido.

A sessão de exibição contou com a presença de um dos actores, Vítor Gomes, estrela desvanecida da cultura pop portuguesa dos anos 60 e 70. Ao falar com o público trouxe-nos, inadvertidamente, o retrato estereotípico de uma estrela esquecida que recupera os seus trejeitos, antiquados do ponto de vista dos espectadores contemporâneos, claramente deslumbrado por esta oportunidade fugaz de regressar às luzes da ribalta. Percebeu-se bem porque é que partia os corações dos nossos avós.

sábado, 12 de setembro de 2015

MOTELx 2015: What We Do In The Shadows


What We Do In The Shadows (Jermaine Clement, Taika Waititi, 2014)

Já conhecia este falso documentário neo-zelandês que acompanha o dia a dia de quatro vampiros desajustados na Wellington dos dias de hoje, uma bro comedy/buddy movie que injecta humor hilariante na estafada filmografia de vampiros. Revê-lo fez-me notar o quanto o filme não perde a sua força à segunda visualização. O tom de comédia é impecável, e mesmo quem já conhece toda a história não consegue conter o riso nos muitos momentos hilariantes do filme. Revê-lo também sublinha a fina ironia linguística dos diálogos, os sotaques antiquados, a atenção aos detalhes, a excelente conjugação de efeitos especiais na medida certa, e o quanto os cinco vampiros ironizam a iconografia do género. O divertido Viago representa o dandy vampírico da época romântica, e estaria muito à vontade num conto de Polidori. Vladislav representa os mitos à volta do medievalismo de Drácula surgidos após o sucesso do romance de Stoker. Pyotr é o verdadeiro e animalesco Nosferatu de Murnau e das lendas eslavas. Deacon assume o papel de predador social, com um certo toque de Varney. E Nick, o mais jovem, é uma óbvia caricatura dos vampiros urbanos ou dos patéticos adolescentes dos Twilights e clones similares. De acordo com os responsáveis do MOTELx, o filme irá estrear em breve nas salas de cinema. Será uma nova oportunidade de ver este filme que não perde a sua força.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

MOTELx 2015: Burying the Ex



Burying the Ex (Joe Dante, 2015)

Joe Dante não é estranho ao humor macabro. Estamos a falar do realizador que nos legou Gremlins ou Eerie, Indiana. Com este Burying the Ex experimenta os campos turvos da Zom-Rom-Com. Comédia romântica de terror com zombies, para os que tiverem dificuldades em decifrar a expressão. Na parte da comédia romântica o filme até se safa. Apesar de muito previsível, a história do pacato jovem cuja ex-namorada é agora uma possessiva zombie que lhe dificulta os novos amores com outra rapariga, contando com ajuda do seu meio-irmão algo depravado para enterrar de vez a ex funciona bem como estereotípica comédia romântica, com algumas tripas e carne putrefacta à mistura. O humor é bem encadeado e o sorriso é inevitável. Mas sendo um filme de terror com zombies, passa-se o tempo com a sensação que falta algo mais. Espera-se sempre mais, mais visceralidade, mais situações sangrentas, mais tripas e pedaços de carne. Algo que o filme não nos dá. A parte de terror fica muito aquém do expectável. Resta a vénia estética que Dante faz à cultura g33k de terror, com dois personagens apaixonados pelos adereços da cultura pop de terror que mantém viva a iconografia dos sustos no cinema a preto e branco. Vénia profunda que se traduz nalgumas referências obscuras (que tal uma companhia de mudanças George Romero?), muito adereço temático e o centrar da premissa do filme numa ideia similar ao clássico The Monkey's Paw. Este mais recente filme de Dante é meramente divertido, apostado no mercado para lucro rápido. Essencialmente um filme sem sal que não deixará memória.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

MOTELx 2015: Tag



Tag (Sion Sono, 2015)

Quem não se orienta a tempo de adquirir bilhetes para a sessão de abertura tem de se contentar com as sessões paralelas. E ainda bem, senão facilmente me escaparia este bizarro filme gore fetichista que consegue ser tão feminista quanto filme de exploitation. Livremente baseado num romance sobre um jogo mortal, leva-nos num périplo delirante onde mundos paralelos se fundem, cada qual mais bizarro e sangrento. Não é intencionalmente claro que forças malévolas atormentam Mitsuko, a jovem e inocente protagonista. Sublimações de pulsões de descoberta da sexualidade, com alguns momentos de muito óbvia sugestão amorosa entre adolescentes? Espíritos e forças malévolas? Jogadores que se divertem com que acreditam ser personagens cuja existência termine quando se desliga o dispositivo? Ou, como sugere no final, personagens de carne e osso criadas a partir do ADN de uma vítima como material de um jogo onde a fantasia e o real colidiram?

A confusão do espectador espelha a da personagem, constantemente a fugir de situações que não compreende até o seu sacrifício final pôr fim à sucessão de estranhos mundos. Algo que me parece típico do horror japonês, quer em cinema quer noutros meios. Obedece a uma lógica que não se compadece com as nossas expectativas de linearidade, tornando-o profundamente surreal. Ou isso, ou há qualquer pressuposto muito óbvio advindo da cultura japonesa que me é completamente invisível. Tag lega-nos cenas de gore memoráveis, desde o brilhante arranque com dois autocarros carregados de lolitas tagarelas subitamente cortados ao meio, deixando uma estrada coberta com corpos decepados, à inexplicável cena de um casamento onde o noivo salta de um caixão revelando a sua gigante cabeça de suíno. Quase me esquecia da tendência perversa do vento que teima em levantar as curtas saias para revelar as cuequinhas das adolescentes colegiais. Sintoma de um fétiche muito japonês.

Num aceno à minha profissão confesso um carinho especial pela cena em que as professoras de um liceu para raparigas impõem disciplina às discentes com caçadeiras e metralhadoras gatling. Quantas vezes gostaria de..., pensei.

A fotografia é muito bela, com a câmara quase sempre centrada em Mitsuko em composições de grande equilíbrio estético. E assinale-se que a protagonista corre muito. Numa escala WASD, digamos que a tecla W foi a mais massacrada.