terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Quarto Perdido do MOTELX


João Monteiro, Filipa Rosário (org.) (2022). O Quarto Perdido do MOTELX. Lisboa: CTLX.

Tendo em conta o já de si exíguo espectro do cinema português, que embora rico, espelha um país periférico onde a expressão cultural tradicionalmente se centra nas elites, únicas capazes de ter o tempo e os recursos para se dedicarem às artes, falar de um cinema fantástico nacional é algo que se resume em poucas linhas. Alie-se a isso a visão que temos do cinema como algo de entretenimento de massas, ou seja de filmes feitos para agradar à maioria da população, mas também do cinema como eminentemente intelectual, espelho estético das grandes preocupações artísticas. Na vertente cinema popular, por cá sempre se preferiu o gosto popularucho (exemplo disso são as comédias clássicas dos anos 40, que agora estão a ser alvo de remakes visando precisamente o mesmo tipo de públicos), que garantia retornos. Na variante intelectual, com todo o seu peso cultural, temos de contar com uma atitude clássica das nossas elites culturais, sempre desdenhosa com géneros ligados ao fantástico. É um traço cultural que hoje se começa a esbater, os novos criadores já cresceram como consumidores de cultura fantástica americana, europeia, e japonesa, e isso tem-se traduzido numa maior abertura cultural, apesar do mau olhar persistente quando se tenta falar de fantástico em certos meios (na melhor das hipóteses, isso é assumido como um mero prazer culposo por parte de algumas figuras intelectuais da nossa praça).

E, no entanto, houve cinema português dedicado aos temas do fantástico e outros géneros. Ao longo da já longa história do cinema português, houve filmes que se atreveram a falar de fantasmagorias, ficções futuristas, assombrações, e até entraram nos campos mais exploitation. Portugal também foi palco de várias coproduções europeias de filmes de série B, daqueles maus mas deliciosos filmes de horror com zombies medievais, freiras marotas ou outras explorações.

Apesar do progressivo peso do lado comercial do cinema fantástico e de terror que se tem viso assumir no MOTELX, quer do comercial mainstream quer do comercial de nichos, este festival sempre fez questão de olhar para o potencial terror no cinema português. Sem dúvida, graças ao trabalho dedicado de João Monteiro, um dos seus organizadores, e talvez a única pessoa a desenvolver trabalho académico focado nas cinematografias de terror, fantástico e exploitation no cinema português (se não for o único, é o mais visível). O seu trabalho de recuperação da memória fílmica de António de Macedo é notável. Inesquecível, a sessão com a presença do realizador que lhe foi dedicada na edição de 2016, com aquela ovação em pé dos espetados na sala principal do S. Jorge apinhada. Se bem me recordo, infelizmente, foi das últimas aparições públicas de Macedo, falecido meses depois.

Como espetador deste festival, confesso que a seção Quarto Perdido é das que mais aprecio. Sei que oferece sempre filmes obscuros da história do cinema português, tornados raros pelo clássico desprezo do cinema de género pelas elites intelectuais que são, simultaneamente, aqueles que gerem os sistemas de financiamento público do qual depende o cinema português.

A recuperação desta memória é importante, não só pelo redescobrir das obras. Hoje, os espectros culturais são mais alargados, e isto mostra a novas gerações que por cá, houve precursores, cineastas que experimentaram com estes temas, de forma isolada por todas as razões já elencadas, ou, quando de forma sistemática, a custar-lhes a carreira como realizadores. 

A lista de filmes portugueses ligados ao fantástico não é muito grande. Este livro recupera a sua memória, com ensaios dedicados aos principais filmes. Recupera a memória de filmes, dos seus realizadores, temáticas e inspirações. Podemos não ter por cá um longo historial de cinema fantástico, mas o que temos merece ser descoberto. E nisso até incluo estopadas como O Cerro dos Enforcados, belíssimo apesar do ritmo teatral lírico que era marca de época.