quarta-feira, 12 de setembro de 2018

MOTELX 2018


Havia um espírito diferente no ar durante este MOTELX. Notava-se uma ausência de elementos decorativos nos espaços do festival. Não houve morcegos pendurados no teto, ou enxames de balões vermelhos. Nada de sangue falso nas casas de banho. O único espaço mais decorativo foi montado pela TVCine, com props alusivas a séries  e filmes numa zona criada com o sentido estético de uma loja chinesa. Todo o ar de evento in e fashionista que se tem feito sentir no festival estava bastante discreto. De tal forma que quando correu o rumor da presença de James Franco numa das sessões não se traduziu numa multidão de selfies. Pessoalmente, quando me disseram isso e o apontaram nas pessoas que saíam da sala Manoel de Oliveira, pensei mas este não é o Jess Franco, é demasiado novo, e espera, o Jess Franco ainda é vivo?” Continuo a fazer uma ideia muito pálida de quem é James Franco. E, empinando o nariz, estou bem assim. A minha cinefilia é mais de estruturas narrativas e estéticas fílmicas.

Para grande surpresa minha, não dei com sessões esgotadas. Terão sido efeitos da sobreposição com a Comic Con? No meu caso, como  a minha experiência na convenção no Porto não foi especialmente apelativa (como alguém me disse este fim de semana, na Comic Con, pagas bilhete para gastar dinheiro, e se essa não é a melhor descrição do evento, não anda longe), escolher o MOTELX foi no brainer.

Senti que estava realmente num festival de cinema. Poucos hipsters, muitos fãs e uns polvilhos de celebridades, porque estamos em Portugal e dá-se valor a essas coisas. Ajudou ter visto uma seleção de filmes que, tirando um (spoilers: não é o musical com Zombies), eram interessantes,  consistentes e até arrepiantes, sensação rara para cinéfilos endurecidos.

Fraquinho, fraquito foi o spot MOTELX. O do ano passado roçava o perturbador, este ano a coisa foi mais convencional com Templários, livros envoltos e relâmpagos e esqueletos com toques de Ray Harryhausen. Visualmente bem feito, mas de uma temática banal.



Ghostland (Pascal Laugier, 2018)

Coisa estranha. Dei por mim a sentir arrepios na espinha. Este é um daqueles filmes surpreendentes, que nos troca as voltas. Começa como drama, a explorar as tensões entre duas irmãs, e segue pelo que aparenta ser um banal torture porn. Depois muda, passa pelo terror psicológico e história de fantasmas clássica, até nos atingir no estômago com um brutal regresso  à violência. A história desafia continuamente as expetativas do espetador, e a realização magistral agarra-nos à  cadeira. A premissa do argumento parece um banal episódio de policial procedimental. Duas irmãs, são raptadas  e torturadas na casa isolada para onde vão viver por dois psicopatas. Assistem à  morte da mãe e só lhes esperam horrores às mãos dos raptores. Uma das jovens, aspirante a escritora de terror e apaixonada pela obra de Lovecraft, mergulha num mundo de fantasia para não aceitar a realidade violenta. Terá de despertar, enfrentar os seus captores e junto com a irmã  sobreviver. O filme vive de uma desavergonhada estética vitoriana decadente, com uma casa envelhecida recheada de bric a brac e bonecas creepy. No fundo  foi  obra mais Grand guignol que vi nos últimos tempos.


Anna and the Apocalypse (Jon McPhail, 2017)

Uma comédia musical de zombies é o tipo de ideia que pode funcionar espetacularmente ou falhar redondamente. Este filme consegue falhar nas duas vertentes, tal a inépcia do realizador. O seu verdadeiro problema é ser inconsistente. Tenta ir à comédia, ao drama, ao musical e ao horror. Esforça-se imenso por isso, tem gags de comédia sangrenta deliciosos, mas não se sustém em linha contínua. Os momentos dramáticos são pouco convincentes e no que toca ao terror, a mesma coisa (o que, sendo comédia, faz sentido). No musical, diria que o melhor é a falta de sincronização entre os atores e a voz. Imaginem um videoclipe com cantores desfasados com a música, a abrir e fechar a boca como peixes fora de água. O realizador bem tenta usar referências irónicas à teen comedy no musical, mas a forma como filma não funciona. O argumento narra as desventuras de Anna, uma jovem a acabar o liceu e cheia de vontade de ir viajar pelo mundo, e dos seus amigos, família e tirânico diretor da escola durante um zombie outbreak. Tem premissas sólidas, ironiza e muito os filmes de adolescentes, mas não consegue chegar onde poderia. Dei por mim a passar  o tempo a combater a vontade de ir ver que horas eram. Safa-se uma cena, onde uma jovem adolescente a encarnar a iconografia de cantora sexy dos anos 50 canta uma canção muito marota numa festa de Natal na escola, completa com uma coreografia de ajudantes adolescentes de pai natal vestidos só com calçõezinhos em poses sugestivas com bengalas. Shaun of the Dead continua a ser a referência na comédia de terror zombie. Anna and the Apocalypse queria juntar-se ao clube, mas não consegue. Apesar das suas deficiências, tem momentos divertidos, e persiste na memória dos fãs do género como algo que não se leva a sério mas homenageia com ironia os pressupostos dos zombies.


The Ranger (Jenn Wexler, 2018)

Uma jovem punk e os seus amigos estão em fuga depois de uma rusga onde um polícia foi esfaqueado. O plano passa por se esconderem numa casa isolada nas montanhas, onde a jovem passou a sua infância com um tio morto em circunstâncias misteriosas (correndo o risco de spoilar, envolve a jovem, armas de fogo e memórias traumáticas suprimidas). Mas a montanha é protegida pelo guarda florestal from hell, um agente da lei que leva demasiado a sério as infrações ao código do parque florestal e as pune com extremo prejuízo. O filme demora a arrancar, passando muito tempo a explorar as tensões internas do grupo de amigos e as contradições do anarquismo punk. Quando chega o ponto certo, explode num varrimento sangrento de slasher/psychokiller. Mais thriller do que horror, é um filme eficaz filmado numa saturação suave que invoca os anos 80.


Gonjiam Haunted Asylum (Beom-sik Jeong, 2018)

Este foi o segundo filme desta edição do MOTELx que genuinamente me arrepiou. Obra sul-coreana, aplica a estratégia cinema vérité/found footage à clássica história de casa assombrada. É uma técnica que Blair Witch Project e suas imitações levaram à banalidade, e que neste filme se distingue por replicar a estética, ou falta de, do streaming para o YouTube. Todo o filme está concebido para nos colocar no papel de alguém que segue um canal, com múltiplos pontos de vista e uma sensação de improviso constante. Não o é, claro, senão o filme não seria tão eficaz, mas simula muito bem o estilo vlogger. A história é típica casa assombrada, com os personagens a visitar à noite um lendário asilo em ruínas assombrado pelos espíritos dos seus pacientes. O objetivo é filmar um evento para canais de vídeo online ganhando dinheiro com visualizações, e para isso alguns dos personagens falsificam efeitos de suposto sobrenatural. Mas o horror está lá, violento, visceral e inexplicável, e quando se manifesta fá-lo de formas completamente arrepiantes. Ver este filme, a obra mais creepy que vi nos últimos tempos, é ter garantidos saltos na cadeira e arrepios na espinha.


Ghost Stories (Jeremy Dyson, Andy Nyman, 2017)

Este é o terceiro filme que vi no MOTELx este ano que conjurou momentos de arrepio. Tem uma estética antiquada, muito literária. Há muito de MR James e Arthur Machen (com referências muito óbvias a The White People). O espírito do horror vitoriano é muito bem invocado numa história que vive de sombras onde se ocultam forças estranhas, capazes de levar os homens à loucura. Quem ler estas linhas poderá pensar que este é um filme de época. Bem pelo contrário. A história é contemporânea, sobre um investigador do paranormal que se especializa em desacreditar místicos e a mostrar que as histórias do oculto não passam de mistificações ou efabulações. Contactado pelo seu inspirador, investiga três casos arrepiantes que testam os limites do seu ceticismo, e acabam por o mergulhar em memórias aterrorizantes de adolescência. O final é um inesperado plot twist, que ata as pontas com uma lógica realista. Este tipo de artifício narrativo é em si mais um aceno à tradição literária do terror britânico.


Veronica (Paco Plaza, 2017)

Inspirado num caso real acontecido na Madrid dos anos 90, este é um daqueles filmes de pavio lento, que segue o seu caminho de forma metódica, avolumando a sensação de terror até ao final explosivo. Muito bem conseguido em termos de ritmo, sempre em suave crescendo sem dispersar a atenção do espetador. A história, apesar de pender muito para o sobrenatural clássico, não deixa para trás alguma ambiguidade. Verónia pode ser uma adolescente que atraiu espíritos malévolos após uma sessão mal concebida de espiritismo seguindo as instruções de uma enciclopédia em fascículos, durante um eclipse solar, ou uma jovem que entra em colapso mental ao sentir as pressões da puberdade. Há muito invocar da sensação de presença de espíritos imundos, uma estética que evoca muito bem os anos 90, um desempenho excelente dos atores mais jovens, que levam o filme aos ombros, e um constante remeter para a música dos Heroes del Silencio.


Aparelho Voador a Baixa Altitude (Solveig Nordlund, 2002)

Todos os anos o festival recupera um filme esquecido do cinema fantástico português (é pouco, mas existe). Confesso que é o meu momento favorito do MOTELX, por poder ver obras que só quem tem acesso aos arquivos da Cinemateca normalmente veria. Não são necessariamente bons filmes - a cinematografia de António de Macedo é a grande exceção, alguns estão muito datados, mas mostram que ao longo da história do cinema português houve muitos cineastas que se atreveram a contrariar a dicotomia entre cinema altamente erudito ou muito popular, que sempre caracterizou os nossos meios culturais.

E este é mesmo um filme inesperado. É mesmo uma ave rara no panorama cinematográfico português. É de ficção científica pura, apesar de não ter rayguns nem naves espaciais. Adapta uma obra JG Ballard, um dos maiores escritores de FC do século XX. Fá-lo transportando fielmente para o ecrã, com parcos meios, a estética literária do autor.  A FC aqui é o fantástico inner space dos autores da New Wave dos anos sessenta, com personagens solipsistas em paisagens decaídas e mundos de apocalipse lento. As ruínas inacabadas do complexo turístico de Tróia, à altura da filmagem ainda não revitalizadas e transformadas (ah, a ironia) no espaço profundamente ballardiano que são hoje (leiam Super-Cannes e percebem onde quero chegar), são o pano de fundo de uma história onde um mundo envelhecido mas que se recusa a desaparecer é obrigado a dar lugar ao seu sucessor. Num filme sem pretensões mas a ir muito longe, Solveig Nordlund canaliza na perfeição a estética própria de JG Ballard. De todas as adaptações cinematográficas da sua obra, este é, talvez, o filme que melhor transmite a visão estética de uma modernidade solitária, ostensivamente de resorts brutalistas com a água azul das piscinas a brihar sob o sol do deserto do real.


Brother’s Nest (Clayton Jacobson, 2018)

Diz muito sobre a monotonia um filme quando adormeci durante boa parte e mesmo assim não perdi o fio à meada da história. Não que este seja um mau filme. É uma história de um profundo humor negro, sobre dois irmãos que decidem matar o enteado para recuperar a herança da casa. Tudo correrá mal, e morre quase tudo, enteado, mãe e um dos irmãos . O filme vive do diálogo entre os dois irmãos, numa progressiva espiral de loucura homicida. O problema é que não passa muito disso. É daqueles filmes que se vê enquanto se faz outra coisa. Como dormitar um pouco para retemperar energias.


Errementari (Paul Urkijo Alijo, 2017)

Foi com este filme que terminei o meu MOTELX deste ano, e que final em grande! Começo pela ironia de ver um filme espanhol que os espanhóis só podem ver com legendas. Todos os diálogos estão em basco, essa língua que soa a invocação do demo. Errmentari vai buscar a sua estética ao folclore do país basco, numa história cativante sobre um ferreiro que, depois de vender a alma a um demónio, acaba por o aprisionar na sua forja. Este verdadeiro mean son of a bitch (isto tem basco deve soar melhor), tem na verdade um bom coração, que se revela com a interação com uma jovem orfã, pela qual se atreve a descer aos infernos para o salvar. Para grande azar dos demónios. História divertida, fortemente enraizada no folclore quer basco quer espanhol, e com uma fotografia fortíssima, de fazer suspender a respiração.