quinta-feira, 15 de junho de 2023

O Soldado Sabino


Nuno Garcia (2023). O Soldado Sabino. Aveiro: Visgarolho

Há livros que nos apanham de surpresa. Quando peguei neste, durante o Festival Contacto, mal sabia  o que me ia esperar. Seduziu-me o ser uma história que envolvia o CEP na I Guerra, e, dado o contexto editorial, de contornos fantásticos. Que o é, mas de forma inesperada. 

A participação portuguesa na I guerra é uma história de que se fala pouco, não abundam por aí livros ou filmes que se centrem neste período em que portugueses estiveram entrincheirados nos campos de morte da Flandres, ou a combater nas zonas limítrofes onde as colónias portuguesas e alemãs se tocavam (nisso, o filme Mosquito de João Nuno Pinto é dos raros, mas brilhantes, exemplos de obra que toca nesse ponto da nossa história). Nunca percebi muito bem porquê, talvez por uma certa aversão social a conotações com militarismos, ou porque o envio de soldados mal preparados e que ficaram sem qualquer apoio perante a máquina de guerra alemã não tenha sido um dos bons momentos da nossa história.

Já O Soldado Sabino faz um muito bom uso da história do CEP como cenário para as aventuras do seu personagem homónimo. Sabino é um homem que vive sob uma maldição, e cujo destino se entrelaça com o da I República. Presente no dia do assassinato do rei, onde o seu pai é vítima colateral dos disparos. Presente, também, na revolta que implantou a república. Presente como soldado das forças republicanas que travaram os monárquicos no norte. Presente, por desventuras que se as contasse estaria a desvendar demasiado do livro, no norte de Moçambique aquando das primeiras incursões alemãs durante a I Guerra. E, claro, presente entre a lama e as pelicas de carneiro (ide ler sobre a história do CEP para perceber esta) do sector português do Front. 

O que o soldado andava a fazer por estes sítios, bem, para descobrir isso nada melhor do que ir ler o livro, que vale bem a pena. Mas, tentando não revelar demasiado, para além de se manter vivo, desdobra-se em pesquisas para debelar a maldição de que crê sofrer, que só parece ter cura com degustações de carne humana. Leram bem, em resumo muito resumido, este livro coloca um assassino em série nas trincheiras.

Se a história é deliciosamente macabra, o olhar do autor sobre a representação histórica é cuidado e claramente alicerçado em forte investigação. Mergulhamos mesmo no dia a dia dos soldados do CEP  na Flandres, nos seus medos e divertimentos, tal com entramos nas barricadas republicanas de dia 4 de outubro, ou nas terras distantes de um Moçambique assolado por askaris. A reconstituição histórica é cuidada, formando um sólido cenário narrativo. Mas, do meu ponto de vista, por excelentes que sejam estes pontos, há um elemento ainda mais sedutor neste romance: um sentido de humor negro terrivelmente corrosivo. A sociopatia do personagem principal dá azo às mais hilariantes observações negras, num sublimar dos maus espíritos da alma humana. Quem aprecia humor negro irá ficar irremediavelmente atraído pelas constantes observações de um Sabino que, acima de tudo, é um ladino.