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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Andanças com Heródoto


Ryszard Kapuściński (2020). Andanças com Heródoto. Lisboa: Livros do Brasil.

Terminada a leitura, fico com um sabor de profundo humanismo no meu espírito. O livro é um diálogo mental, entre dois viajantes. Temos Kapuściński e as suas experiências de viagem, em si um olhar para um outro mundo, para o nosso passado recente já desaparecido. Crescendo na Polónia devastada na II Guerra, tornando-se jornalista no ambiente opressivo da ditadura comunista, descobre em si uma inusitada vontade de ir conhecer outros países e vê-se, um pouco por acaso, enviado pelas revistas onde trabalha para ir cobrir acontecimentos noutros países. 

Dado o clima da Guerra Fria, a sua carreira de correspondente não o leva aos grandes centros globais, mas sim aos países amigos da cortina de ferro. Dá por si na Índia, no Egipto, em África, na China. Primeiro, como jornalista duplamente inexperiente. Viver num país onde a propaganda se sobrepõe á realidade e a informação é fortemente censurada, nada o prepara para o contacto com outras culturas, das quais tudo desconhece. Kapuściński é resiliente e curioso, dá sempre a volta às mais mirabolantes barreiras com que se depara. Essas histórias formam parte do livro, e acabam por funcionar como retrato da segunda metade do século XX. Visitou uma Índia e Egipto emergentes, nos países africanos recém-independentes, e sentiu na China a dissidência e o afastamento entre estados totalitários aparentemente aliados, mas rivais. São tempos e modos que hoje recordamos na história, característicos da época mais forte da Guerra Fria.

E, no meio destas andanças, um complexo diálogo com um homem que viveu há milénios. Heródoto, pai da História, viajante consumado, que nos deixou o primeiro texto conhecido que fala de povos, de usos e costumes, das façanhas dos reis e da história das nações do mundo que conhecia - o imenso centro do mediterrâneo, com ramificação até à longínqua Índia. As histórias de Heródoto cruzam-se com as experiências de Kapuściński, graças ao livro que o acompanhou desde a sua primeira viagem ao estrangeiro, e que nunca mais largou. O faro de jornalista depressa descobre no homem da antiguidade uma espécie de alma gémea, curioso com as geografias, as pessoas e os seus costumes, mas atento aos pormenores e capaz de distanciamento, de afirmar que o que conta e descreve é a sua percepção, mas também são as visões e percepções daqueles que lhe relataram histórias e acontecimentos. Uma visão relativista, que afirma há mais de dois mil anos que a verdade histórica é condicionada pela percepção daqueles que contam. 

O livro entretece dois tempos, o passado recente de Kapuściński e o distante de Heródoto. Tanto visitamos a China maoista no dealbar da revolução cultural como a Pérsia que se prepara para invadir a Europa. Saltitamos entre os novos estados africanos e a Atenas clássica. Sempre a refletir na humanidade essencial, no humanismo das gentes, quer as pessoas anónimas do dia a dia, quer aqueles que a história imortalizou. Um diálogo entre épocas, entre tempos, mas a mostrar um fio contínuo ao longo da história.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Ifigénia em Aulide


Eurípides (1974). Ifigénia em Aulide. Coimbra: Instituto de Alta Cultura.

Uma tragédia que se foca num dos episódios mais negros da Ilíada, o sacrifício da filha de Agamemnon para aplacar os deuses e garantir o triunfo grego na guerra troiana. Um episódio que costuma ser apresentado sob o prisma da ambição desmedida de um rei que não hesita em sacrificar a filha mais querida para conseguir o que quer, mas que nesta tragédia de Eurípides ganha outra dimensão. Aqui, Agamemnon é um pai atormentado, que tenta evitar o sacrifício da filha, e é Ifigénia, a vítima sacrificial, que se oferece à morte, assumindo que a guerra contra Tróia é muito mais do que o vingar do rapto de Helena, e sim uma afirmação da necessidade de independência grega face às ameaças vindas a oriente. E assim deixa-se sacrificar, para pesar do pai, despertando o ódio de Clitmenestra, sua mãe (que Ésquilo explorará de forma magistral na Oresteia), morrendo em nome da liberdade do povo grego.

terça-feira, 30 de julho de 2024

O Beijo; Julieta das Minhocas


José Vilhena (1966). O Beijo.

Mais um mergulho na mordacidade de Vilhena, infatigável cronista dos maus costumes e da hipocrisia dos que os praticam enquanto pregam a virtude. Desta vez o tema é o beijo, leve metáfora para atos mais profundos, analisado num tratado filosófico-humorístico no estilo clássico deste autor de culto.


José Vilhena (1970). Julieta das Minhocas.

Não se pode acusar o humor de Vilhena de ser subtil. Bem pelo contrário, o seu ridículo escabroso permite-o safar-se com uma crítica social ácida. Mas podemos acusá-lo de fazer uma das mais inesperadas homenagens a Shakespeare. Imaginem o enredo de Romeu e Julieta, transposto para um bairro de lata dos arrabaldes da Lisboa dos anos 60. Onde as aristocracias desavindas são as famílias dos taberneiros (e merceeiros, e agiotas) do bairro, os indomitáveis e de hilária aliteração Monteiros e Carapetos. Onde o jovem Romeu, aqui Romão, é um seguidor das modas pop da época, mas também um bom rapaz, tão bom rapaz que não corresponde à ardência da sua Julieta, que como todas as mulheres de Vilhena, não oculta a sua sexualidade. E o resto, é um desmontar parolo-erudito (isto não é uma qualificação insultuosa) da tragédia clássica, cheio de rixas e bebedeiras, de pais que vêem as filhas como um bem para ascender socialmente, que irá acabar mal para os amantes (spoiler: ela sobrevive e emigra para França, onde os seus atributos físicos lhe garantem sustento, ele, morre por ingestão de lagosta estragada numa marisqueira de Benfica), mas até termina bem para o povo de baixa condição do bairro. Pelo menos, até este ser aterrado para se construir apartamentos, que se destinam a albergar todos menos os que habitavam a zona. Cáustico, divertido, erudito e popular, Vilhena faz aqui mais uma profunda crítica mordaz aos seus tempos.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Sandokan: O Pirata da Malásia


Emilio Salgari (2011). Sandokan: O Pirata da Malásia. Lisboa: Babel.

Sandokan é um nome mítico da minha infância, embora já tenha nascido demasiado tarde para ser um espetador da série clássica que encantou a geração que me precedeu. Mas mais do que uma série televisiva clássica, foi uma série de livros de aventura saídos do imaginário de Emilio Salgari. 

As aventuras do Tigre da Malásia e seus irredutíveis piratas de Mompracem é um típico produto de literatura empolgante de outras eras, onde os exotismos da Ásia distante e o lado selvagem das ilhas indonésias cativavam o imaginário. As histórias de aventura, de piratas que eram nobres nos seus combates contra forças da ordem e lei que na verdade eram corruptas, o fascínio desse caldeirão de povos, civilizações, imperialismos e promessa de aventura que era o extremo oriente no século XIX. 

Nesta aventura, Sandokan irá enfrentar um dos seus piores inimigos, o rajá inglês do Sarawak, caçador e exterminador confesso dos piratas malaios. Enfrenta-o, não por vingança ou ódio, mas para ajudar um casal apaixonado. A história tem todos os ingredientes: fuga aos Thugs indianos, ataques navais e abordagens em alto mar, conspirações locais, aparentes derrotas dos heróis e um triunfo final que recompensará os heroísmos. Um excelente exemplo da ficção de aventuras clássica, escrita para estimular as sensibilidades dos jovens do passado.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Tragédias do Ciclo Troiano


Sófocles (1973). Tragédias do Ciclo Troiano. Lisboa: Livraria Sá da Costa.

As histórias que dão continuidade ao poema épico da Ilíada, esse rico substrato que os fragmentos que até hoje nos chegaram levam a intuir um enorme universo de histórias, poemas e peças de teatro que exploram os vários detalhes e ramificações da história original, ela em si também um coalescer de diferentes relatos e tradições da poesia oral da Grécia Antiga. Aquilo a que hoje chamaríamos um "universo ficcional".

Da minha leitura destas tragédias, saliento um foco muito rígido de Sófocles na noção do dever de honra acima de tudo, por trágicas que sejam as consequências para os personagens dos esforços para manter ou restaurar a honra. Os infortúnos em que os seus personagens são colocados advém dessa vontade.

A trilogia de peças inicia-se com Ájax, o contar de uma história da guerra de Tróia. Preterido na posse da armadura de Aquiles pela argúcia de Ulisses, um enfurecido e fora de si Ájax chacina um rebanho de ovelhas. Na sua mente iludida, crê piamente que está a vingar-se do ultraje matando aqueus e torturando Ulisses, o seu líder e inimigo confesso, apesar de aliados na epopeia troiana. Confessa, inclusive, à deusa Atena, este seu sucesso. Mas o dealbar do dia mostra-lhe a verdade. Sentindo a sua honra perdida, entrega-se ao desespero, e decide redimir-se pelo suicídio, caindo sobre a sua própria espada apesar das súplicas e argumentos da sua escrava e mãe do seu filho, de companheiros e do próprio Ulisses, que apesar das disputas não deseja tal mal ao seu inimigo. Ájax prefere morrer a viver com o peso da vergonha da sua ilusão.

Electra leva-nos à Tebas pós-ilíada, com a vingança de Orestes sobre os assassinos do seu pai, Agamemnon. Electra é a grande mulher trágica, consumida pela ideia de vingança pela morte do pai às mãos da sua esposa, ultrajada pelo sacríficio da filha Ifigénia (não há bondade na maldição da casa dos Atreus, todos os personagens seguem a via do sangue). A oportunidade de vingança surge com o regresso do agora adulto irmão Orestes, que Electra tinha conseguido por a salvo da ira do amante da mãe, levando-o para um exílio. No regresso, Orestes socorre-se de um subterfúgio para não ser imediatamente reconhecido, que levará a irmã a um desespero  profundo que só se mitiga com a descoberta da verdade. O destino segue o seu caminho, e Orestes vingará a morte do pai assassinado a mãe, lavando com o sangue da mulher que o deu à luz a honra da família Átrida. Ao contrário de Ésquilo, que na sublime trilogia Oresteia nos mostra como a obrigação do lavar da honra conduz a mais tragédias e remorsos, em Sófocles este matricídio é mostrado como o necessário ponto final que libertará Electra do opróbrio. Não haverá aqui Erínias que atormentem o vingador.

Em Filoctetes, o jovem guerreiro Neoptélemo, filho de Aquiles, tem de cumprir uma missão espinhosa: cumprindo as ordens de Ulisses, montar um ardil que obrigue Filoctetes a regressar aos combates na Tróade. Este é um homem amaldiçoado, mordido por uma cobra como castigo divino, cuja ferida nunca sara, deitando um cheiro nauseabundo que ninguém suporta. Foi abandonado pela frota grega numa ilha deserta, onde sobrevive isolado numa caverna, o que não o torna nada predisposto a regressar à guerra. Tudo o que quer é uma oportunidade de regressar a casa, e parte daí o ardil de Ulisses. Este sabe, por via dos oráculos, que as flechas mágicas de Hécules que Filoctetes detém são uma das chaves para a vitória sobre os troianos, daí tornar-se necessário encontrar uma forma de o levar para o cerco de Tróia. Enganar Filoctetes com um suposto resgate para casa, que na verdade é um rapto para o obrigar a ir para a batalha, é o plano, mas Neoptélemo não se sente confortável com a mentira, acabando por desobedecer a Ulisses e a contar a verdade a um Filoctetes que, percebendo o ardil, mergulha no desespero. O compromisso de Neoptélemo com a honra acabará por ser recompensado, quando o próprio Hércules se manifesta, e o insta a acompanhar Ulisses ao campo dos gregos, mostrando-lhe que essa ação irá expiar a maldição divina que pesa sobre ele.

A humanidade dos heróis gregos é aqui mantida numa posição de absolutos, de compromisso com a honra que ultrapassa laços filias ou de obediência aos reis, mesmo que isso lhes custe o que têm de mais precioso.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Oresteia - Agamémnon, Coéforas, Euménides


Ésquilo (2008). Oresteia - Agamémnon, Coéforas, Euménides. Lisboa: Edições 70.

Estes textos milenares continuam a tocar-nos, tantos séculos passados após terem sido escritos e representados nos anfiteatros gregos. Por um lado, o confronto de absolutos, que nesta trilogia dita o destino funesto da casa de Atreu. Agamemnon, vencedor das guerras e algoz dos troianos, regressa a casa para ser assassinado pela esposa. Mostrando o quão profunda pode ser a dor que leva à vingança, Clitmenestra disfarça até ao momento fatal o ódio que vota ao marido, por este não ter hesitado em sacrificar a sua filha mais nova para garantir a vitória na guerra. E, no meio de tudo, a infeliz Cassandra, profetisa amaldiçoada com o dom das previsões em que ninguém acredita, e que se deixa levar pelo destino. Mas a mulher também acabará morta, desta vez com um destino ainda mais impensável. É Orestes, o seu filho, que seguindo o imperativo moral de vingar a morte do pai, espeta a sua espada no seio que lhe deu o leite. Um imperativo sublinhado pelo oráculo de Delfos, manifestando a vontade do deus Apolo. A trilogia trágica termina com um julgamento. Apesar de cometido a seguir a vontade de um deus, o crime de Orestes é hediondo, e desperta a ira das Euménides, antigas divindades que atormentam os criminosos até ao inferno. Mas, se o crime de sangue de Orestes é hediondo e digno de perseguição, a culpa não será atenuável por ser um homem que segue os desígnios de um deus? E assim termina a tragia, com um julgamento onde a sábia Atena ouve os argumentos de Apolo, Orestes e das Euménides, e dá o seu veredicto de acordo com a vontade expressa pelo júri no Aerópago. Uma decisão algo salomónica, em que Orestes não sendo perdoado, é liberto da maldição porque a intervenção divina foi o elemento decisivo para o seu crime, e as vingativas divindades são concencidas a tornarem-se, também, protetoras da cidade e de quem faz o bem, embora não percam o seu papel de implacáveis perseguidoras dos piores crimes. 

As consequências das decisões violentas, o papel dos deuses questionado, a ideia que a vontade um júri humano deve prevalecer sobre a vontade de potestades. Questionar, assumir, vincar o humanismo, seguir o destino mas questionando os poderes das divindades. Era assim há 2000 anos, e talvez apenas naquele local do mundo. Ainda hoje, em muitas partidas da Terra, questionar a vontade expressa de seres míticos é algo punível entre censura e morte.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Da fabrica que falece a cidade de Lisboa


Francisco de Holanda  (2021). Da fabrica que falece a cidade de Lisboa. Lisboa: Público.

Um mergulho nas visões de um dos nossos grandes homens renascentistas, originalmente editado em 1571. Neste livro, lido em versão fac-similada disponível numa coleção do jornal Público, mergulhamos numa visão de uma Lisboa quinhentista utópica. Com o olhar treinado pelas suas viagens a Itália, Francisco de Holanda propõe uma série de edificações, entre fortificações, fontanários, palácios e igrejas, que a seu ver tornariam a cidade de Lisboa merecidamente grandiosa. Pelo caminho, conta-nos a história, algo lendária, da cidade, e documenta alguns vestígios romanos. O livro é recheado dos seus maravilhosos esboços, que concretizam a sua visão para uma cidade que nunca aconteceu. O volume também colige um dos seus textos sobre a importância técnica, social, política e artística do desenho, procurando consciencializar os leitores.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Antígona


Sófocles (2012). Antígona. Lisboa: Fundação Gulbenkian.

Estes textos são realmente intemporais. Milénios passados sobre a sua escrita e representação, com os tempos e as sociedades a mudar e a modificar-se, as emoções originais continuam vivas. Podemos não adorar os deuses ou respeitar os normativos sociais da época, mas como não nos comovermos com o destino trágico de Antígona, uma mulher que se atreve a desafiar os poderosos, ao colocar o sentimento de dever e amor familiar acima da obediência? E, no fundo, de profundo humanismo, quaisquer que tenham sido os crimes de uma pessoa em vida, não merece que o seu cadáver seja abandonado aos cães. Antígona pagará com a vida o querer respeitar o corpo do seu irmão caído em desgraça, e sua morte coloca um fim na enorme maldição edipiana, esse exemplo de como infelizes acasos conduzem à tragédia e opróbio. 

Também lamentamos a personagem de Creonte. Numa leitura superficial, é o vilão da história, o regente inflexível que procura a justiça exercendo injustiças. Mas talvez não seja isto, talvez seja o exemplo de um líder cheio de incertezas, que coloca no dogmatismo das posições absolutas a forma de ser respeitado, mas também de garantir que todos serão tratados com justiça. E compreenderá que a sua inflexibilidade, o colocar a norma acima dos pedidos e necessidades daqueles que rege, tem consequências fatais, e irá também destruir a sua própria família. 

Este texto milenar não se esgota em simples interpretações de blog, mantém-se no pensamento. E recorda-se sempre do coro em fundo, uma voz de consciência que guia, questiona e atormenta aqueles cujas vidas formam o enredo e a lógica destas tragédias.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Starting from Scratch


Andrea Marcolongo (2022).  Starting from Scratch: The Life-Changing Lessons of Aeneas. Nova Iorque: Europa Compass.

O que me fascina nos clássicos, para além da sua influência basilar na nossa matriz cultural, é a forma como nunca se esgotam. Novas gerações trazem diferentes olhares sobre palavras escritas há milénios, redescobrindo-as, reforçando com os conhecimentos da investigação histórica, ou enriquecendo com novas visões (por vezes, empobrecendo, quando as interpretações seguem matrizes ideológicas).

Neste longo ensaio, visitamos um poema que se tornou um dos grandes épicos da antiguidade clássica. Partindo do substrato grego de Homero, o poeta romano Vergílio liga a história mitificada da Roma imperal com as epopeias da Ilíada, reclamando para os romanos a continuidade da mítica era de ouro grega. Fá-lo através do périplo de Eneias, um troiano sobrevivente à hecatombe da destruição da sua cidade, que, com um grupo de sobreviventes, segue num périplo mediterrânico até arribar às costas itálicas e tornar-se o fundador dos reinos que, seguindo o mito de Rómulo e Remo, deram origem a Roma. 

Eneias é um heói relutante, que segue a missão de fundar as bases de um novo império, mas que no seu íntimo, o que mais deseja é um regresso ao passado, aos tempos em que vivia com a mulher e filhos na Tróia de funesto destino. Tendo perdido o que mais almeja, segue um destino de refugiado, de missão quase divina de plantar a semente da civilização grega na raiz dos bárbaros latinos. De tal forma este destino é inescapável, que quando confrontado com a oferta de amor e poder em Cartago, sob a forma da paixão de Dido, não cede e segue o seu destino, tornando esta rainha apaixonada numa das grandes figuras femininas trágicas da antiguidade. 

O ensaio de Marcolongo não se fica pela análise à narrativa. Enquadra o texto no contexto histórico romano, como poema épico com objetivos políticos, embora seja redutor considerar a Eneida como panfleto político para apoio do imperador Augusto. Fala-nos das geografias do poema (e é aqui que percebemos a profunda ironia vergiliana de através da Eneida, considerar que a luz grega iluminou os selvagens latinos e permitiu-lhes o grandioso império), das suas técnicas de escrita. Fala também das visões sobre o poema, e o autor, ao longo da história. Aqui as coisas tornam-se ainda mais interessantes. 

Cada leitor acrescenta a sua interpretação, e algumas são muito curiosas. Nos tempos do fascismo, o regime de Mussolini apropriou-se da Eneida como grande mito fundador e legitimador do fascismo italiano. Um aproveitamento errado, que teve como óbvia reação uma certa relutância com o poema, e o poeta. Diria que por cá, a promoção nacionalista do Estado Novo que, entre outros, apropriou os Lusíadas, teve efeitos similares. Mas entre os vai-véns do gosto, das marés de admiração e rejeição, nada bate os tempos da idade média. Algumas interpretações liberais de alguns versos viram na obra uma antecipação da vinda de Cristo, e a admiração cristã pelo poeta levou-o a ser considerado um santo, embora nunca tenha chegado a ser canonizado. Confesso, altares às relíquias de Vergílio foi algo que me surpreendeu nesta leitura, que nos mostra a importância da literatura clássica, e como esta nos influencia de formas que nem sempre são as mais esperadas.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Lendas Japonesas


José Ruy (2023). Lendas Japonesas. Lisboa: Polvo.

As vicissitudes do ciclo natural da vida ditam que este é o último livro que o mestre José Ruy nos deixou. É apropriado que seja o seu último livro, porque muitos dos trabalhos que integram nasceram no início da sua carreira, ou foram criados em fases mais maduras. Como decano da BD portuguesa, Ruy teve um longo percurso por revistas e editoras, marcando com o seu traço clássico gerações de leitores. Tinha uma predileção especial pela história, ficanco conotado com adaptações para BD de episódios da história de Portugal. Estas Lendas Japonesas permitem ver um outro lado do autor, fascinado por exotismo e capaz de introduzir na sua estética pessoal elementos gráficos de outras iconografias.

Neste livro, Ruy presta uma profunda homenagem a Venceslau de Morais, escritor que se perdeu, e muito bem perdido, pelas terras orientais do sol nascente. Transmutou o seu fascínio pela cultura japonesa em livros clássicos, indo além do mero deslumbre orientalista para nos trazer olhares de profundo respeito pelo modo de vida nipónico. As lendas que fascinaram um ainda jovem José Ruy partem desse acervo literário.

Este é um livro que demorou décadas a ver a luz. No prefácio, descobrimos como há mais de meio século que o autor trabalhou nas suas histórias, numa saga de peripécias editoriais que por várias vezes quase levou este projeto a ser impresso, mas sempre sendo mal sucedido. Resta uma intervenção fortuita do editor da Polvo, numa conversa online, para nos trazer esta preciosidade. Dada a estabilidade e maturidade do traço de José Ruy, não vemos aqui uma evolução do seu estilo. Até porque as histórias mais antigas foram reformuladas. Nota-se, no entanto, um enorme esforço do autor para cruzar duas tradições estéticas, o realismo europeu e o estilismo japonês. Isso nota-se muito nos enquadramentos, onde Ruy transumta para o seu traço a estética das ilustrações japonesas.  

Tudo passa nesta vida, e podemos alegrar-nos que no final da sua vida, José Ruy tenha ainda deixado este último legado, que de certa forma é uma súmula da sua carreira, mas também de épocas, um posfácio aos tempos antigos da BD  portuguesa, e um curioso casamento de clássicos portugueses: vindo das palavras de um escritor clássico do século XIX para um autor clássico da BD do século XX. Ficamos nós, leitores, a ganhar, pelo deleite que é mergulhar nestas encantadoras adaptações de lendas japonesas. O livro tem o seu quê de arcaísmo, uma aragem de outros tempos, e isso torna-o ainda mais delicioso.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Epic Poems


Hesíodo (2022). Epic Poems. Atenas: Kaktos.

Três poemas clássicos. Teogonia é uma genealogia do enorme panteão grego. Os Trabalhos e os Dias é um texto misto, cruza saber popular, crença religiosa e a experiência do poeta. Escudo de Hércules é uma pequena ode épica ao herói dos mitos gregos. Entre os mitos e a tradição dos povos, estes poemas oscilam entre o épico e o humano. O tom conselheiro de Trabalhos e Dias é particularmente tocante, sentimos uma sabedoria milenar que mesmo hoje, soa sensata.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O Burro de Ouro


Apuleio (1978). O Burro de Ouro. Lisboa: Editorial Estampa.

É preciso ter cuidado com as jovens bruxas da Tessália. Podem ser fogosas debaixo dos lençóis, mas se quisermos experimentar os seus encantamentos, rendidos como estamos aos seus encantos, algo pode correr mal. Como se comprova pela história deste Lúcio, viajante grego que se vai metendo nalguns sarilhos libinosos nas suas viagens, e no seu desejo de novas experiências, pede a uma aprendiz de feiticeira que o transforme num pássaro, tal com a sua ama consegue fazer. A jovem feiticeira não é tão destra nas artes mágicas quanto a sua ama, e o pobre Lúcio descobre-se feito num burro. 

Não é o pior dos destinos, basta que o homem transformado em animal coma uma rosa para regressar à condição humana. O problema, é que tudo lhe corre mal. É roubado por ladrões, usado como jumento de carga, trocado entre amos, alguns brutamontes, outros mais agradáveis. Acaba, até, no leito de uma matrona especialmente lúbrica (esta parte do romance seria impublicável, hoje...). Depois de muitas desventuras, será graças à intervenção da deusa Ísis que regressará à condição humana. A partir daí, as suas viagens de descoberta irão assumir um caráter mais espiritual, com a sua iniciação nos mistérios da deusa, e, posteriormente, nos de Osíris. 

Romance de impenitente impertinência, entre o obsceno e o libertino, é também uma história que contém histórias. Quer como Lúcio, quer como burro, o personagem cujas desventuras seguimos cruza-se com outros viandantes, que contam histórias. Há pequenos romances e tragédias dentro deste grande romance clássico, que estão entre o moralista e o humorista, lidando quase sempre com traições conjugais, e inclui ainda um detalhado contar do mito de Cupido e Psiché. Apesar de o ter lido numa tradução algo maçuda do século XIX, é fácil de perceber a sedução irreverente desta história sobre a busca constante de novos conhecimentos, experiências e limites, de ir mais longe mesmo que se vivam consequências funestas dessa vontade. E, confesso, não me é difícil imaginar um antigo romano a rir-se às gargalhadas de algumas das passagens mais escabrosas deste romance.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

O Mundo de Ulisses


Moses Finley (1988). O Mundo de Ulisses. Lisboa: Presença.

Descobrir o mundo dos antigos gregos, comparando as histórias das obras de Homero com o que se sabe da realidade histórica. Esta é uma viagem à antiguidade clássica, à sua sociedade, costumes e modos de viver, onde  os feitos míticos dos heróis homéricos são o ponto de partida para se conhecer como, de facto, viviam os antigos gregos. O livro funciona por comparação, mostrando aquilo que os poemas épicos mitificaram, e o que com isso podemos aprender sobre as realidades da política e sociedade da civilização grega. Sabemos que nem as guerras duravam décadas, a maioria eram escaramuças entre rivais em busca de recursos; que os heróis dificilmente mobilizavam as multidões das epopeias, dado que as populações eram reduzidas; que os reis era mais comparáveis a chefes de clã do realmente reis na acepção que hoje lhe damos. Estes, e outros pormenores, são analisados com elegância num livro que nos recorda o valor da literatura para analisar a história.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Obras Portuguesas


André de Resende (2009). Obras Portuguesas. Lisboa: Sá da Costa.

Três escritos do humanista português, que são um espelho da sua época. A História da Antiguidade da Cidade de Évora é notavel pelo olhar metódico para os traços do passado, coligindo leituras, registos históricos e indícios arquitetónicos para abordar o passado da cidade de Évora. Do meu ponto de vista, lendo-o praticamente meio milénio depois de ter sido escrito, fiquei fascinado com o sentido narrativo e histórico do texto. Já os restantes textos coligidos neste livro, li-os com o interesse da descoberta, mas não me deixaram impressionado (e observar isto, não é de todo uma diminuição do seu valor). Quer a história da vida do infante D. Duarte, quer a do santo frei Pedro, pareceram-me ao mesmo tempo relatos factuais e elegias elogiosas ao poder, quer real quer religioso. São um interessante vislumbre do trabalho deste humanista português, bem como das mentalidades e modos de viver da sua época.

terça-feira, 28 de março de 2023

A Germânia


Tácito (1941). A Germânia. Porto: Livraria Educação Nacional

A visão do mais clássico dos historiadores romanos sobre os povos que habitavam para lá das fronteiras romanas, nas florestas e rios dos territórios que hoje são a Alemanha, Polónia, países bálticos e escandinávia. Povos esses que, séculos mais tarde, viriam a desmembrar e ocupar o outrora poderoso império romano. Para Tácito, estas tribos que não viviam em cidades e não procuravam o dinheiro eram, claramente, bárbaras, longe da mais refinada cultura romana. No entanto, ao longo do texto é perceptível uma admiração pela moral e carácter destes povos bárbaros, quer pela sua coragem militar, quer pelos seus valores morais, que Tácito entende como não corrompidos pelos luxos e vícios da civilização. 

A acreditar em Tácito, a palavra germânico não indetifica um povo, que era composto por múltiplos povos e tribos, mas vinha da palavra vitória, designando-os como vitoriosos e ocupantes das florestas germânicas. Uma referência clássica que ressoa um pouco na história alemã do século XX. As suas descrições são liminares, e vão-se tornando mais difusas à medida que penetra nos espaços mais distantes das fronteiras do império. Até chegar ao ponto onde termina, concluindo que chegou a povos e terras dos quais o que se sabe é lendário. Mas de histórias e lendas não trata este antecessor dos historiadores, foca-se no que sabe e é registado. Do texto, também se retira a ideia de um vasto e desconhecido mundo que ficava para além das fronteiras do império, um mundo mais selvagem e obscuro.

Esta edição do texto clássico foi publicada em 1941.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Apocalipse do Apóstolo João


Martim Avillez (ilustração) (1972). Apocalipse do Apóstolo João. Lisboa: Afrodite

Estou a sentir-me sortudo. Finalmente veio parar à minha biblioteca um daqueles livros que almejava, e por um preço muito mais baixo do que o esperado. E em excelentes condições. Falo de um dos mais intrigantes livros editados pela editora Afrodite. Não será daqueles que se distinguem pela sua importância literária ou política, o que torna este livro especial é a sua estética. 

Sobre o texto, pouco há a dizer. O livro do Apocalipse é o mais surreal dos textos bíblicos, um corolário de misticismo esotérico para finalizar o livro fundamental da mitologia cristã. Recordo a primeira vez que o li. Baldei-me a uma aula de catequese, e passei uma belíssima hora no jardim ao lado da igreja de S. João de Deus a ler este texto bíblico. Pois, de facto tive uma educação religiosa, mas quando percebi que não sentia aquilo que os crentes chamam de fé, depressa segui o caminho do ateísmo, embora tenha aguentado rituais que para mim eram desprovidos de qualquer sentido para não melindrar familiares próximos. Não dou esse tempo como totalmente desperdiçado, fiquei a conhecer os mitos, compreendi o vazio de rituais, mas fiquei com alguns dos valores humanistas universais que também fazem parte do catolicismo. Mas estou a divergir.

À medida que se descobre mais sobre textos bíblicos, especialmente os que ficaram fora do cânone que estabeleceu que mitos são os reais, percebe-se que o livro do apocalipse não é assim tão bizarro, por muito que nos perguntemos exatamente o que é que o profeta andaria a tomar na ilha de Patmos (ou qual seria a natureza da sua patologia mental). O texto é esotérico, místico, carregado de simbolismos, deliberadamente inacessível. Para os fãs de banda desenhada, a Seita editou por cá a belíssima visão de Alfredo Castelli sobre este texto. O argumentista italiano é, como todos os que lerem Martin Mystère sabem, profundamente classicista, e a sua interpretação deste texto milenar prima pela erudição. Com o sempre genial traço de Corrado Roi a ilustrar, é um livro notável. 

@archizer0 Um olhar pelo maravilhoso trabalho de Martim Avillez para este livro de 1972, editado pela Afrodite. #booktok #books #booktokpt ♬ Water Dances: I) Stroking - Michael Nyman

O que distingue este Apocalipse e o torna objecto de culto entre os bibliófilos é a ilustração. Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, encarregou Martim Avillez das ilustrações, com um resultado soberbo. Suspeito que, para 1972, este grafismo tenha sido uma pedrada no charco cultural português. O estilo de desenho é em simultâneo sóbrio e detalhado, nalguns pontos a tocar no abstracionismo, noutros a entrar no psicadélico. As imagens são marcantes, não evocam o passado bíblico, antes, elevam o fantasismo do texto. Um estilo gráfico experimental, com forte raiz na banda desenhada. Não consegui descobrir o suficiente sobre Martim Avillez para perceber as suas influências gráficas, o meu olhar leva-me a pensar em Druillet ou Esteban Maroto, escrevo isto arriscando ver ligações que não existem. É o que retiro do livro, o prazer estético de apreciar as assombrosas ilustrações. 

Curiosamente, a primeira vez que deparei com o trabalho de Martim Avillez foi no final dos anos 90, quando nalgumas livrarias de Lisboa apareceu a revista Lusitânia. Ao contrário do que o nome faz parecer, não era uma publicação portuguesa, a revista era americana e dedicada aos aspetos vanguardistas da interseção das teorias artísticas contemporâneas. Um dos pontos altos de cada edição era uma banda desenhada de Avillez, sempre sobre ideias de arte contemporânea. Avillez também era um dos editores da revista. 

Sobre a Afrodite, Ribeiro de Mello, as suas edições e impactos culturais, o melhor que há a fazer é consultar o trabalho do designer e historiador editorial Pedro Piedade Marques. Foi no seu blog Montag que descobri este Apocalipse, e o seu livro Editor Contra a referência para a história de um singular editor maldito. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Heidi


Johana Spyri (1939). Heidi. Porto Alegre: Livraria do Globo. 

Às voltas pela feira da ladra, dei com este achado que me pareceu irresistível. Uma edição brasileira de 1939, profusamente ilustrada, deste clássico da literatura infantil. Irresistível porque, apesar de não serem ilustrações extraordinárias, são representativas de um estilo clássico de ilustração infantil que aprecio. E, pensei, também é uma boa oportunidade de descobrir o original de uma obra clássica. Mercê da popularidade das suas adaptações, Heidi é uma daquelas histórias que todos conhecem, mas suspeito que poucos conheçam a sua origem literária.

Dei por mim a deixar-me encantar por esta história simples. Essencialmente, porque a autora faz-nos criar laços emocionais com as personagens, depressa empatizamos quer com Heidi, quer com o seu avô ou o amigo Pedro. O mesmo acontece mais à frente no romance, quando outras personagens entram em cena. De forma simples, logo nos primeiros encontros, simpatizamos (ou antipatizamos)  com todas as personagens.

Neste livro começam as aventuras de Heidi, que curiosamente foram expandidas por outros autores que não Spyri. Conhecemos a pequena órfã suíça, o seu soturno avô de passado misterioso, o entusiasta pastor que será o seu amigo, e a omnipresente paisagem idealizada das montanhas suíças. Depressa percebemos como a inocência cândida e o entusiasmo pelo mundo mostrada por Heidi irá seduzir e transformar aqueles que a rodeiam. Algo que continua na segunda parte da história, quando a orfã é levada por uma tia para servir de companhia a outra criança, filha de um pai rico, distante pelos negócios mas extremoso, que ao deixar entrar Heidi na sua casa irá, também, sentir uma transformação na sua filha, apesar da relutância da sua governanta. 

Por detrás da inocência, Heidi é também uma história de pobreza, os seus principais personagens vivem com poucos meios daquilo que a natureza lhes dá, e o destino que poderia esperar a jovem é o de ser serviçal em casa de alemães abastados. Mesmo através da lente de literatura infantil, sente-se o contraste entre pessoas que vivem numa pobreza que assumem como humildade, e os que se podem rodear de luxos, inclusive o luxo de agir com bonomia perante as tropelias e deslumbrado de uma órfã. 

A linguagem encantadora desta história mantém a sua longevidade, quase século e meio sobre a sua publicação original. A inocência da jovem apaixonada pelas montanhas mantém-se tão encantadora hoje, como em 1880.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

O Escorpião de Ouro


Sax Rohmer (1933). O Escorpião de Ouro. Porto Alegre: Livraria do Globo.

Sax Rohmer era especialista nos romances sobre o perigo amarelo, onde obscuras organizações secretas vindas da China conspiram para dominar o mundo. Sempre coordenadas por sombrios génios do crime, misteriosos e implacáveis super-criminosos orientais capazes de manipular o sub-mundo londrino para destruir a Inglaterra e controlar o planeta. Legou-nos Fu-Manchu, talvez o seu mais icónico vilão.

Fu-Manchu não entra nesta aventura, mas o perigo amarelo continua o mesmo. Um pacato médico inglês vê-se envolvido numa conspiração mundial, que levou à morte destacados cientistas e estrategos militares. Os indícios dos assassinatos apontam para a influência da misteriosa ordem do escorpião dourado, encabeçada por um temível mandarim que se oculta sob  uma máscara verde. O pacato médico descobre-se num turbilhão de luta contra o crime, ajudando um circunspecto inspetor da Scotland Yard e um irreverente detetive francês a desvendar o mistério e a travar a conspiração. Terá de enfrentar o temível chinês, e acabará por encontrar o amor numa jovem de ascendência oriental, agente forçada da terrível organização.

Rohmer tinha o seu nicho, que explorava bem, com romances frenéticos que hoje nos parecem muito datados. Em parte, porque a nossa sensibilidade evoluiu, e imagens invocadoras do terrível perigo civilizacional trazido pelos homens amarelos são obviamente racistas. O romance em si é puro policial pulp, cheio de peripécias que no final se resolvem pelo melhor. Datado, mas merece ser lido como referência de literatura fantástica de época.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Tiestes


Séneca (1996). Tiestes. Lisboa: Verbo Editora.

Uma visão milenar, vinda da alta cultura da antiga Roma, sobre um dos mais violentos mitos gregos (o que é escolha difícil, ideias fofinhas não são a característica principal das narrativas da antiguidade clássica). Regressado ao reino do seu irmão Atreu, com o qual estava desavindo, Tiestes sente no irmão uma abertura para restabelecer relações cordiais. Mas, na verdade, este prepara uma vingança atroz, assassinando os filhos de Tiestes, e dando-os de comer ao pai num banquete em que este não desconfia dos ingredientes. Malévolo para lá de todos os limites, no final do repasto, quando Tiestes chama pelos seus filhos, Atreu diz-lhe que estarão para sempre ao seu lado, e revela o macabro banquete. Numa tragédia, sabemos que os personagens estão condenados à partida, não há redenções ou finais felizes. Há os lamentos do coro, que nos recorda as lições de moral que podemos retirar da história.

terça-feira, 17 de maio de 2022

A Retirada dos Dez Mil


Xenofonte, Aquilino Ribeiro (2014). A Retirada dos Dez Mil. Lisboa: Bertrand. 

Confesso que fiquei surpreendido por ver esta obra numa coleção dedicada a Aquilino Ribeiro. Na verdade, o escritor apaixonou-se enquanto estudante por este clássico da antiguidade, tendo-o traduzido para português. Isto explica a sua inclusão no corpo da sua obra. 

Aquilino é uma voz clássica, e isso sente-se na sua abordagem à história milenar. Sente-se o gosto pela fidelidade do tradutor, tentando que as suas palavras traduzem a paixão que o texto original lhe despertou. Que, diga-se, é um dos grandes épicos do passado. A odisseia dos mercenários gregos que estiveram a um passo de conquistar a Pérsia, ao serviço de um ambicioso irmão do rei persa que morre no seu momento de triunfo, passa de caminhada vitoriosa a uma longa fuga. Uma história que é mais do que um relato de combates, é um périplo por um dos extremos do então mundo conhecido. Os sobreviventes, sob constante assalto, acossados quer pelos soldados do império persa quer pelos aguerridos povos autóctones com quem se cruzam, seguem pela orla do que hoje é a Turquia e partes da ásia menor, passando por locais tão distantes como a Babilónia, as ruínas de Níneve, as tribos curdas, ou as costas do mar negro.

Mais do que relato de lutas, é também uma história de diplomacias, traições, intrigas que dividem os sobreviventes, lutas internas, alianças com ambiciosos senhores locais. Tudo o que permite aos gregos recuperar riquezas e seguir caminho em direção ao lar é-lhes legítimo, numa fuga feita, também, de saques e violência exercida sobre os que encontram pelo caminho.

Há um certo ar de elogio a um homem específico, Xenofonte, um dos líderes militares, futuro estadista ateniense, e também o contador desta história. Apesar de não se referir a si na terceira pessoa, passa sempre a imagem de alguém que está acima das disputas, que coloca a honra e os seus homens acima de tudo, que inclusive se sacrifica para defender os seus homens. Não é subtil, o elogio à sua personalidade, que apela sempre aos mais altos valores gregos, mesmo que estes impliquem espetar nativos nas lanças dos hoplitas.

Hoje atrevemo-nos a ler estes relatos com um olhar mais crítico. Ao lado épico equilibra-se relatos que, para terceiros, soam demasiado a invasores a querer defender os seus crimes. Aquilino foca-se mais no lado da aventura, do périplo de sobrevivência, como é natural para a sua época.