terça-feira, 30 de julho de 2024

O Beijo; Julieta das Minhocas


José Vilhena (1966). O Beijo.

Mais um mergulho na mordacidade de Vilhena, infatigável cronista dos maus costumes e da hipocrisia dos que os praticam enquanto pregam a virtude. Desta vez o tema é o beijo, leve metáfora para atos mais profundos, analisado num tratado filosófico-humorístico no estilo clássico deste autor de culto.


José Vilhena (1970). Julieta das Minhocas.

Não se pode acusar o humor de Vilhena de ser subtil. Bem pelo contrário, o seu ridículo escabroso permite-o safar-se com uma crítica social ácida. Mas podemos acusá-lo de fazer uma das mais inesperadas homenagens a Shakespeare. Imaginem o enredo de Romeu e Julieta, transposto para um bairro de lata dos arrabaldes da Lisboa dos anos 60. Onde as aristocracias desavindas são as famílias dos taberneiros (e merceeiros, e agiotas) do bairro, os indomitáveis e de hilária aliteração Monteiros e Carapetos. Onde o jovem Romeu, aqui Romão, é um seguidor das modas pop da época, mas também um bom rapaz, tão bom rapaz que não corresponde à ardência da sua Julieta, que como todas as mulheres de Vilhena, não oculta a sua sexualidade. E o resto, é um desmontar parolo-erudito (isto não é uma qualificação insultuosa) da tragédia clássica, cheio de rixas e bebedeiras, de pais que vêem as filhas como um bem para ascender socialmente, que irá acabar mal para os amantes (spoiler: ela sobrevive e emigra para França, onde os seus atributos físicos lhe garantem sustento, ele, morre por ingestão de lagosta estragada numa marisqueira de Benfica), mas até termina bem para o povo de baixa condição do bairro. Pelo menos, até este ser aterrado para se construir apartamentos, que se destinam a albergar todos menos os que habitavam a zona. Cáustico, divertido, erudito e popular, Vilhena faz aqui mais uma profunda crítica mordaz aos seus tempos.