terça-feira, 25 de outubro de 2022

Apocalipse do Apóstolo João


Martim Avillez (ilustração) (1972). Apocalipse do Apóstolo João. Lisboa: Afrodite

Estou a sentir-me sortudo. Finalmente veio parar à minha biblioteca um daqueles livros que almejava, e por um preço muito mais baixo do que o esperado. E em excelentes condições. Falo de um dos mais intrigantes livros editados pela editora Afrodite. Não será daqueles que se distinguem pela sua importância literária ou política, o que torna este livro especial é a sua estética. 

Sobre o texto, pouco há a dizer. O livro do Apocalipse é o mais surreal dos textos bíblicos, um corolário de misticismo esotérico para finalizar o livro fundamental da mitologia cristã. Recordo a primeira vez que o li. Baldei-me a uma aula de catequese, e passei uma belíssima hora no jardim ao lado da igreja de S. João de Deus a ler este texto bíblico. Pois, de facto tive uma educação religiosa, mas quando percebi que não sentia aquilo que os crentes chamam de fé, depressa segui o caminho do ateísmo, embora tenha aguentado rituais que para mim eram desprovidos de qualquer sentido para não melindrar familiares próximos. Não dou esse tempo como totalmente desperdiçado, fiquei a conhecer os mitos, compreendi o vazio de rituais, mas fiquei com alguns dos valores humanistas universais que também fazem parte do catolicismo. Mas estou a divergir.

À medida que se descobre mais sobre textos bíblicos, especialmente os que ficaram fora do cânone que estabeleceu que mitos são os reais, percebe-se que o livro do apocalipse não é assim tão bizarro, por muito que nos perguntemos exatamente o que é que o profeta andaria a tomar na ilha de Patmos (ou qual seria a natureza da sua patologia mental). O texto é esotérico, místico, carregado de simbolismos, deliberadamente inacessível. Para os fãs de banda desenhada, a Seita editou por cá a belíssima visão de Alfredo Castelli sobre este texto. O argumentista italiano é, como todos os que lerem Martin Mystère sabem, profundamente classicista, e a sua interpretação deste texto milenar prima pela erudição. Com o sempre genial traço de Corrado Roi a ilustrar, é um livro notável. 

@archizer0 Um olhar pelo maravilhoso trabalho de Martim Avillez para este livro de 1972, editado pela Afrodite. #booktok #books #booktokpt ♬ Water Dances: I) Stroking - Michael Nyman

O que distingue este Apocalipse e o torna objecto de culto entre os bibliófilos é a ilustração. Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, encarregou Martim Avillez das ilustrações, com um resultado soberbo. Suspeito que, para 1972, este grafismo tenha sido uma pedrada no charco cultural português. O estilo de desenho é em simultâneo sóbrio e detalhado, nalguns pontos a tocar no abstracionismo, noutros a entrar no psicadélico. As imagens são marcantes, não evocam o passado bíblico, antes, elevam o fantasismo do texto. Um estilo gráfico experimental, com forte raiz na banda desenhada. Não consegui descobrir o suficiente sobre Martim Avillez para perceber as suas influências gráficas, o meu olhar leva-me a pensar em Druillet ou Esteban Maroto, escrevo isto arriscando ver ligações que não existem. É o que retiro do livro, o prazer estético de apreciar as assombrosas ilustrações. 

Curiosamente, a primeira vez que deparei com o trabalho de Martim Avillez foi no final dos anos 90, quando nalgumas livrarias de Lisboa apareceu a revista Lusitânia. Ao contrário do que o nome faz parecer, não era uma publicação portuguesa, a revista era americana e dedicada aos aspetos vanguardistas da interseção das teorias artísticas contemporâneas. Um dos pontos altos de cada edição era uma banda desenhada de Avillez, sempre sobre ideias de arte contemporânea. Avillez também era um dos editores da revista. 

Sobre a Afrodite, Ribeiro de Mello, as suas edições e impactos culturais, o melhor que há a fazer é consultar o trabalho do designer e historiador editorial Pedro Piedade Marques. Foi no seu blog Montag que descobri este Apocalipse, e o seu livro Editor Contra a referência para a história de um singular editor maldito.