sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Becoming knowledge

And yet nothing was required beyond the fact that Nola drove along by her own compulsion, her body covered in images:
Speeding cars, maps, Satnav projections,
Bursts of traffic info, accident blackspot reports,
The road itself, filmed from the air and projected on her skin, becoming knowledge.
Body knowledge, skin knowledge.

Se McLuhan estivesse vivo hoje e fosse escritor de FC, seria isto que escrevia. Apaixonado pela prosa visionária de Jeff Noon nesta crónica do mergulho dos indivíduos nos oceanos mediáticos com as suas correntes saturadas de dados. A sugestão saiu da lista de livros por ler de Warren Ellis. Que, pelos vistos, obriga a análise aprofundada. Se um dos títulos foi esta genial surpresa, que outras prosas surpreendentes se escondem nas preferências procrastinadoras de Ellis.

Warrior

Durante a obrigatória viagem estival pela estrada fora, boa para desempoeirar os pistões do motor do carro e as sinapses cerebrais, deixei passar algumas noites de silêncio no meio das serras a ler uma versão digitalizada das vinte e seis edições da revista de banda desenhada britânica Warrior. Editada por Dez Skinn entre 1982 e 1985, a revista tornou-se um marco de culto na história dos comics britânicos rivalizando em estatuto com a venerável 2000 AD. Constantemente citada pelo seu carácter inovador e de qualidade, despertou-me a curiosidade para descobrir o porquê desta aura de culto.

Revista mensal, a Warrior seguia o modelo de publicação do comic inglês de revistas com diversos personagens com histórias serializadas ao longo de várias edições. Com esta periodicidade não teria certamente o mesmo ritmo e pressão que caracteriza a congénere 2000 AD (congénere de género, não de editoras), considerada uma escola do estilo narrativo sintético na banda desenhada. O ambicioso editor planeava com a revista criar um universo de personagens coerente embora dando liberdade aos criadores para perseguirem as suas visões. Entre os autores e desenhadores que contribuíram para a revista temos nomes como Alan Moore, Steve Parkhouse, Grant Morrison, John Bolton, Brian Bolland ou David Lloyd, essencialmente uma lista dos melhores criadores britânicos do género. Boa parte destes foram elementos da chamada british invasion que gerou alguns dos melhores comics americanos, convidados a trabalhar para a DC porque o editor Len Wein era fã do trabalho na Warrior.

Resta saber se a revista passa no teste do tempo. Os comics são uma vertente muito comercial da banda desenhada, vivendo muito dos gostos populares dos seus tempos contemporâneos, e não são muitos os casos em que resistam à evolução dos gostos. Por muito que se admire as idiosincrasias da golden age, uma leitura hoje desses comics revela uma enorme puerilidade que já faz pouco sentido. Excepção feita aos títulos saídos da EC Comics, mas isso são outras histórias. Lendo a maior parte das aventuras das personagens da gama Warrior, nota-se que ficaram datadas, meras referências históricas que hoje se lêem como curiosidade. A revista misturava ficção científica com terror e aventura medievalista, e a sua personagem icónica era Axel Pressbutton, um cyborg psicótico patudo com aversão a vegetais que vivia aventuras como assassino espacial ao lado de uma sensual companheira a combater os sequazes de Zirk, um personagem que talvez possa ser melhor descrito como um porco oval lascivo e sem face. Brian Bolland conseguiu criar algumas histórias sugestivas para as hormonas adolescentes com este surreal personagem. O tom das séries de ficção científica segue de modo datado nas vertentes de aventuras em panoramas space opera ou futuros apocalípticos. Lê-se e pensa-se logo "tão anos 80".

As aventuras de carácter medieval primam pelo desinteresse. Talvez à época não o fossem, mas ler hoje coisas como The Legend of Prester John não agarra a mente. No domínio do horror, destaca-se o curioso Father Shandor, monge místico que combate pérfidos demónios que acabam por se revelar espelhos da alma humana numa luta sem quartel com a implacável e sensual Jaramsheela, sendo os seus arqui-inimigos os espelhos da alma do personagem. A narrativa é ambígua e termina com a aniquilação do herói, mas o que me levou a reter o personagem foi o impressionante traço de John Bolton, que dá vida ao submundo de terror com uma intricada estética barroca.

Alan Moore foi o responsável pelas séries mais marcantes e influentes da Warrior. A que passa mais despercebida é The Bojeffries Saga, que introduz uma família cosmicamente disfuncional que inclui um vampiro de linguagem incompreensível, um lobisomem com gostinho pelos cachorros da vizinhança e um avô-criatura tentacular lovecraftiana que sofre de demência. Outro título distinguiu-se pela linguagem metaficcional aplicada ao género de comic de super-heróis, com a recriação do personagem Marvelman às mãos de Moore. Marvelman era um clone britânico de super-heróis como Captain Marvel e vivia das aventuras infantis de uma família composta por um adulto, um adolescente e um pré-adolescente que ganhavam poderes ao pronunciar a palavra kimota. Há por aqui tonalidades sexualizantes que merecem análise mais aprofundada. Alan Moore desconstrói a infantilidade dos personagens com um arco de histórias que envolve segredos governamentais, super-homens criados em laboratório e elaboradas ilusões mentais criadas para controlar as criaturas. Marvelman sobreviveu à Warrior e após alguns litígios foi alterado para Miracleman num conjunto de comics onde Alan Moore e Neil Gaiman colocam os personagens a devastar e escravizar a humanidade e que, novamente por litígios, estão inacessíveis a novas edições impressas.

Se estas séries são à sua maneira marcantes a mais influente delas, também criada por Alan Moore, foi V for Vendetta. A influente e icónica história de vingança e libertação num futuro distópico totalitário nasceu nas páginas da Warrior, embora a cura vida da revista tenha obrigado à sua continuação noutras editoras.

Reunindo um conjunto de criadores influentes e com séries icónicas, apesar das marcas do tempo Warrior é um marco histórico de qualidade dos comics.

luz_nocturna_bent



quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Channel Sk1n

Evelyn was dressed as a New Model Robot Romantic type. It was a fashion, the ersatz automated look, something she had read about in a Lifestyle magazine. She had started the evening in expert character, but by now, with this many drinks running her veins, her robotic traits were slipping. (p. 129)

Globewise: eyes are dazzled bright
as fingers click and tap
in motion to the
data dance.
(p. 150)

‘It’s a viral infection taking over human flesh. But a virus not of any known organic nature. One made from the ether, itself.’ (p. 160)

‘We have flooded ourselves with the media in all its many forms. Our minds are now open to signals. We have become aerials.’ (p. 161)

She was trying to control the waves of transformation, failing, klxckz, falling, failing, zxttixkt, turning her flesh into a total body-surface chaos pad. Overload of pictures, flash cuts, faces, legs, pistols, car chases, weather reports, crashing seas, bombs exploding, young lovers kissing, hands on flesh, maps, planet Earth from space rotating with the moon in tandem, that kiss again, zkxixkc, all of her bodily screen streaming different signals and downloads, a sonic visual mess, complexity, her skin burning now, sweat covered. Nola was lost in each moment as it flowed along the listings of her flesh, tissue melting with noise and colour and dampness, veins flooded with image, clikxzk, her mind soft like stars, haze filled: static pulse shadow, ache of muscle, mains hum, ignition, fizz, zclick, zzhhmmmxt, xklikc, zlick, ckiclk, cxzcikcz. (p. 144)

Jeff Noon (2012). Channel Sk1n.

The Milkman Murders

Joe Casey, Steve Parkhouse (2005). The Milkman Murders. Milwaukie: Dark Horse Comics.

A doce fantasia da fada do lar televisiva e a realidade distópica de uma dona de casa com uma família disfuncional colidem neste comic ilustrado por Steve Parkhouse, co-conspirador de Alan Moore em Bojeffries Saga que curiosamente também é sobre uma família que leva a disfuncionalidade a níveis cósmicos. Chocada pela derrocada dos sonhos domésticos numa família em que o pai prima pela violência verbal e física, o filho diverte-se a caçar e esfolar os animais domésticos da vizinhança e a filha adolescente vai levando para a cama os professores das escolas de onde vai sendo expulsa, abalada pela violação às garras de um homem do leite, e alucinada pela imagem de perfeição doméstica que se forma no tubo de raios catódicos, esta dona de casa desesperada decide pôr ordem na família. Com pistolas de elevado calibre e facas de cozinha bem afiadas.

cais_bent



quarta-feira, 29 de agosto de 2012

The Mystic Arts of Erasing All Signs of Death

Charlie Huston (2009). The Mystic Arts of Erasing All Signs of Death. Nova Iorque: Ballantine Books.

Sem ser particularmente pertinente pelas perspectivas perante a sociedade e pouco profundo, The Mystic Arts of Erasing All Signs of Death distingue-se pela rapidez de leitura de uma história que se move com a rapidez convoluta de uma montanha russa. Ficção noir leve e acelerada, o livro coloca-nos na vida de um ex-professor traumatizado que desperdiça os seus dias a irritar o único amigo que ainda o atura. Problemas monetários e a caridade de um empresário reconhecido pelo que este tinha feito pela sua filha levam-no a aceitar um emprego incomum: trabalhar numa empresa especializada em limpar locais de morte e crime violento. Os tipos que depois dos tiroteios, depois das perícias policiais, têm de deixar tudo a brilhar consignando os tecidos empapados de sangue e os restos de tecido cerebral ou outros detritos corporais para os caixotes de lixo perigoso.

Este é o mote para uma história de redenção pessoal que envolve mulheres semi-fatais, crimes inauditos, reminiscências de aniquilação cultural na indústria do cinema, guerras comerciais violentas entre rivais no negócio da limpeza de locais de crime e vagas de descrições dos efeitos destrutivos de vários elementos sob o corpo humano capazes de fazer piruetas nos estômagos mais sensíveis. Tudo contado pela voz de um narrador que é incapaz de não dizer a coisa errada no momento inconveniente. Apesar deste noir urbano contemporâneo ser leve e divertido com uma escrita mais empolgante que muitos filmes de acção, recomendaria Sleepless como a melhor obra para conhecer o trabalho de Charlie Huston, assumido escritor de pulp noir.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

letargia_estival



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Shutter Island

Dennis Lehane, Christian de Metter (2009). Shutter Island. Los Angeles: Tokyopop

Um agente especial com vontade de vingança e o seu desconhecido companheiro chegam a um asilo de lunáticos numa ilha isolada para investigar o desaparecimento de uma paciente. O isolamento agrava-se graças a uma tempestade que corta todas as comunicações. Quanto mais se embrenham nos mistérios do hospital psiquiátrico mais difusa e misteriosa se torna toda a situação. Novas revelações vão surgindo, como suspeitas de que são realizadas experiências ilegais com psicotrópicos em humanos ou um misterioso paciente extra, perigoso criminoso que esteve envolvido na morte da mulher do agente especial. No surpreendente final, é-nos revelado que todas as premissas do livro não passaram de uma ilusão. O agente especial é o paciente extra, e todo o cenário de mistérios, desaparecimentos e conspirações apenas uma elaborada e elegante estratégia terapêutica para levar o misterioso paciente a reconhecer a sua loucura e espreitar através dos véus de ilusões auto-induzidas. Mas fica-nos sempre a suspeita: o que é a verdade? Será o agente especial um louco perigoso que vive num mundo artificial gerado pelas suas ilusões? Ou terá sido drogado com substâncias causadoras de alucinações pelos cientistas apostados em ocultar as suas experiências ilegais?

Sob a pele de um policial noir bem construído Lehane dá-nos uma narrativa fortemente questionadora do que é o real mediado pelas percepções individuais. Temos o consenso da existência de uma realidade, como demonstrou o bispo de Berkeley a pontapear pedras pelas ruas. Mas também vemos a realidade que nos rodeia através do filtro da nossa percepção sensorial - os dados crus saídos dos sentidos que nos permitem aperceber o real e o seu processamento pelo cérebro. Se algo falhar, a nossa imagem pessoal do que é real diverge do consenso geral. Reduzindo este argumento ao absurdo podemos conceber a impossibilidade da existência de um real, concebendo o vasto mundo como uma elaborada ilusão construída ou enviada para a nossa mente. Mas o real existe. Se tiverem dúvidas dêem pontapés às pedras, recordando que a forma como o vemos depende da sua existência e das formas como o percepcionamos e compreendemos no interior do nosso ser.

O traço de Christian de Metter não se sobrepõe ao livro, sublinhando o carácter noir através de uma paleta de cores restrita e sombria.

Waves of information

The tangle of aerials and satellite dishes on the building’s roof reached for the moon that hung full but half hidden in clouds. Invisible waves of information moved through the air. Now and again, vehicles passed quietly along the avenue below, briefly disturbing this spectral glade of the capital. (p. 36)

Jeff Noon (2012). Channel Sk1n.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

letargia_estival


Praia da Samarra

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Mitos Urbanos e Boatos

Susana André (2010). Mitos Urbanos e Boatos. Lisboa: A Esfera Dos Livros.

Apanhei este livro por curiosidade pura. Escrito por uma jornalista de investigação, é um misto de registo de lendas urbanas com boatos, colige algumas falsas narrativas marcantes na consciência popular. E é esse o problema do livro. Anuncia-se como um estudo sobre mitos mas fica-se pelo registo semi-enciclopédico de uma série de casos reais de boatos, clássicas lendar urbanas e rumores infundados. Alguns são desmistificados, outros reflectem realidades contemporâneas que atraíram as atenções fugazes do público mas com o tempo se desvaneceram.

Dos temas abordados houve um que me surpreendeu pelo seu poder de agarrar imaginações, propagando-se sob formas várias, mantendo-se vivo numa era onde há uma clara distinção entre facto comprovável e ficção. É assinalável a resiliência das lendas urbanas, essas histórias assustadoras que acontecem sempre a um amigo de um amigo, fábulas contemporâneas que instilam comportamentos através da palavra.

Curioso compêndio, assente em inúmeros casos ilustrativos, fica-se pela catalogação. Intelectualmente o mais interessante desta obra é a sua bibliografia. Ao lê-lo fiquei com a sensação de que se tratava de uma tese de dissertação diluída para consumo público.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Apontamentos de Viagem V




Tenho um fraquinho de raízes familiares pela cidade de Viseu. Coimbra requer uma descoberta mais profunda e confesso. Não passava por Conímbriga desde que era pequenino. E já se começa a passar um longo tempo desde essa altura.

Sonata de Outono

Ramón Del Valle-Inclán (1987). Sonata de Outono. Lisboa: Vega.

O nome Valle-Inclán surgiu-me simpática vila de A Pobra do Caramiñal pelos lábios de uma simpática funcionária do posto de turismo local que insistia que o museu que lhe é dedicado era visita obrigatória. Optei por esquadrinhar as ruelas e o porto desta vila galega antes de me embrenhar na Serra de Arousa. Mas a estranha sonoridade do nome Valle-Inclán nunca me abandonou, e fiquei curioso sobre este escritor galego de biografia mitificada e atribulada.

Sonata de Outono é uma história de amor que fenece, passada entre o cuidadoso conquistador Marquês de Brandomin e uma das suas paixões, mulher que agoniza de doença incerta num solar senhorial galego. Narrativas românticas sobre amantes que se perdem nas tenebrosas garras da morte não são o que mais me toca. O que me fica deste livro é o revisitar através das palavras centenárias deste escritor a encantadora paisagem agreste da Galiza, cuja frescura verdejante e peso granítico se sente neste livro. Uma forma de revisitar terras e paisagens pelas quais fiquei com um fraquinho sentimental.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Apontamentos de Viagem IV




O Luso e Buçaco não me encantaram. O primeiro parecia-me uma Sintra mal amanhada e o segundo um claro exemplo que como veneramos uma ideia artificial da natureza. A mata cuidada, com as suas veredas e recantos, desperta-nos mais carinho e bem estar do que as matas selvagens das redondezas. Como tudo que envolve o homem, a natureza é um constructo. Já o decrépito Lorvão chocou-me pelo isolamento, pela decadência de objectos artísticos que se degradam de dia para dia e pela singular visita ao mosteiro onde, entre outros pormenores, o guia traçou sem querer uma linha de continuidade entre o Caronte grego, as barcas funerárias egípcias e as procissões da Senhora da Boa Morte ao mostrar um andor em forma de barca.

Constância

Acordar ao som de um assobio estranho. Por entre as brumas do sono e da memória, recordo-me do assobio único do amolador que, quando era criança, ainda se ouvia muitas vezes pelas ruas de Lisboa até ser extinto pela modernidade da sociedade de consumo que tornou obsoleta a necessidade de amolar facas. Em seguida, outro ruído inconfundível, o toque sincopado do sistema de aviso de colisão de um veículo em marcha atrás. O futuro transforma ruídos identificativos em arqueologia sonora e banaliza outros que futuramente estarão também condenados à obsolescência.

Sou de uma geração intermédia que ainda coexistiu com velhos hábitos, nem que os recorde de fugazes visitas às aldeias dos avós quando se era pequeno. A geração que me precedeu nasceu com carroças, caminhos de terra, rádio e isolamentos localizados e agora coexiste com auto-estradas, aeroportos, urbanismo alastrante e a internet. Mudança é factor de constância.

A Invenção de Morel

Adolfo Bioy-Casares (2003). A Invenção de Morel. Lisboa: Antígona.

Este livro delicado consegue aliar aventura, fantástico e ficção científica numa narrativa de surrealismo poético. Um náufrago por vontade própria arriba a uma ilha misteriosa no oceano pacífico, onde se vê rodeado de pessoas que passam por ele como se um fantasma se tratasse. Apaixona-se por uma das mulheres que vive na ilha, um amor impossível pela distância não no espaço mas no tempo. As pessoas, as suas vidas e utensílios que rodeiam o náufrago são elaboradas projecções, uma forma de fotografia multidimensional criada pelo Dr. Morel que dá nome ao livro. Com o objectivo de garantir alguma imortalidade, a ilusão projectada pelas máquinas é completa mas destrói a pessoa representada. Os personagens do livro estão condenados a repetir eternamente, ou até a energia falhar e deixar as máquinas inoperacionais, todos os acontecimentos de uma semana que foi sem o saberem a última das suas vidas.

O efeito é contagioso. Fugitivo à justiça e isolado na ilha, o náufrago acaba por ser capturado pelos enigmáticos dispositivos do Dr. Morel. Morre, mas ficará imortalizado nas projecções e o seu romance impossível repetir-se-á eternamente. Nesta fábula sobre paixão, fantasia misteriosa em paragens exóticas e relação do homem com a tecnologia, os espectadores da caverna de Platão estão condenados a tornar-se sombras que desempenham repetitivamente os seus papeis sem que de tal se apercebam.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

E nós pimba

A imagem sonora da chegada à Torre, o popular topo da Serra da Estrela. Música pimba que saía em elevado volume de um quiosque de venda de gelados. Ia começar a rir-me deste costume tão típico do nosso portugalito, mas recordei-me de outro local. No meu primeiro fim de tarde na Galiza contemplava o azul luminoso do mar biscaínho e as cores vibrantes dos barcos de pesca no porto de O Grove. E ouvia-se à distância cantar que viva españa a bordo dos navios de cruzeiro que levavam turistas à descoberta das ilhas atlânticas das Rías Baixas. Ouvir e ver os passageiros alinhados a dançar em comboios dissuadiu-me de experimentar um desses cruzeiros, que infelizmente é a única forma de chegar às ilhas.

O turismo de massas tem destas coisas patéticas em qualquer lado. Fará parte dos seus encantos, para quem gosta.

Apontamentos de Viagem III




Da Serra do Açor trago comigo o casario do Piodão, os recantos da Mata da Margaraça e os reflexos do verde sobre as águas do rio Alva.

Edison's Conquest of Mars

Garrett Putman Serviss (1898). Edison's Conquest of Mars.

Vale a pena ler este livro para ter uma ideia do que foram as edisonades, um sub-género literário inspirado na fama do inventor Edison que o colocava como personagem de mirabolantes aventuras em que as suas invenções eram determinantes para o final feliz. Talvez uma comparação actual possa ser feita com obras que colocam personagens históricos reais em aventuras ficcionais de género fantástico. O termo edisonade foi criado por John Clute e Peter Nicholls precisamente para designar este género de literatura de aventuras.

O livro chegou-me à atenção graças a um artigo do io9 que referia que seria um percursor dos principais elementos narrativos da FC contemporânea. E, realmente, esta sequela ao clássico Guerra dos Mundos de H. G. Wells conta com elementos surpreendentes que incluem batalhas entre frotas de naves aero-espaciais, guerras interplanetárias, armas de raios, fatos espaciais e até um aceno ao que hoje apelidamos de ancient astronauts com uma sub-narrativa em que os horrendos marcianos se estabelecem no antigo Egipto e raptam uma tribo semítica para a escravatura nos mares marcianos. Estas histórias de visitantes alienígenas civilizacionais tiveram recentemente um regresso à ribalta, cortesia do desastroso filme Prometheus.

A prosa não é de todo ilegível para uma obra escrita a metro no estilo de série do século XIX. Se descontarmos as tiradas épico-nacionalistas e os discursos inflados dos personagens, ficamos com um livro de aventuras inverosímeis. Datado, claro, porque tendo mais de cem anos passado sobre a sua escrita já sabemos que Marte não tem canais por onde murmura a água, já não soa bem representar diferentes etnias através de estereótipos ridicularizantes, anti-gravidade eléctrica é algo de impossível ou os fios telefónicos não são apropriados como meio de comunicação no espaço. Visto desta distância temporal, um pormenor curioso: os marcianos descritos por Serviss assemelham-se a uma má caricatura de Winston Churchill. Podem satisfazer a curiosidade sobre a obra e apreciar as suas ilustrações - algumas simplesmente fabulosas, com representações de verdadeiros dirigíveis espaciais em combate, no Projecto Gutenberg.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Apontamentos de Viagem II




Da Serra da Estrela recordo os recantos perdidos, a imensidão e profundeza das penedias, e a frescura das águas do Zêzere.

História Trágico-Marítima

António Sérgio (2008). História Trágico-Marítima. Lisboa: Sá da Costa.

Este não é o livro clássico que detalha desventuras navais da era da expansão portuguesa. Adaptação de António Sérgio, selecciona cinco histórias de naufrágios de naus na carreira da Índia. Mais do que histórias de tragédia marítima, salta à vista o lado impiedoso dos homens que se faziam ao mar. Após a tormenta do naufrágio seguiam-se maiores tormentas, onde a acreditar nos relatos coligidos os sobreviventes não hesitavam em abandonar companheiros de infortúnio em alto mar ou em baixios desolados, deixando-os para a morte à força de armas. As desventuras sucedem-se: acidentes, tempestades, navegadores incompetentes, fome, sede, doenças, nativos pouco amigáveis ou piratas em alto mar. Cada uma das histórias contidas neste tomo daria um excelente filme catástrofe, a sublinhar a impiedade humana naqueles piores momentos em que da união tudo depende.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Apontamentos de Viagem I

Na estrada, entre Guarda - Celorico - Trancoso - Marialva - Côa - Pocinho - Torre de Moncorvo - Almeida:
De Marialva levo comigo a memória das ruínas da aldeia entre-muralhas e a conversa com a curadora do museu, que referiu a grande vontade que tinha de ver o filme A Maldição de Marialva de António de Macedo. E eu com ele fresquinho da Cinemateca. Aliás, a razão pela qual parei em Marialva foi mesmo essa: visitar o local que deu nome ao filme.

Do Pocinho a memória do sol sobre o xisto e a vertigem de ver o rio da muralha da barragem.

Do rio Côa recordo o silêncio absoluto do isolamento interior.

Da aproximação a Almeida recordo as texturas e cores das penedias e vegetação batidas pelo sol.

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Do Sangue e do Fogo

Um indomável tirano, chamado realidade, não se amerceia das vossas temerárias, ainda que esperançosas, fantasias. (p. 34)

não gosto que chamem "línguas mortas" a essas... enfim! As línguas não morrem: evoluem, transformam-se... e as suas fases mais antigas podem ajudarn-nos a decifrar aquilo em que nos tornámos hoje! Por exemplo, a antiga palavra latina humus significa a terra, o chão, a própria crosta do planeta... Mas foi dela que surgiu a palavra homem, e aqui a imaginação poética entra em jogo: o ser humano surgiu da terra a terra viva, mas adormecida como a Bela do Bosque Mágico, à espera do beijo, ou do sopro, do Senhor do Tempo que a despertará... Mas o próprio homem-humus tem de saber ganhar asas para não ficar agarrado ao chão, para não se humilhar e petrificar - é a outra face da moeda: humildade e humilhar também vêm de humus... (p. 181)

António de Macedo (2011). O Sangue e o Fogo. S. Pedro do Estoril: Saída de Emergência.