domingo, 23 de agosto de 2015
City
Clifford D. Simak (2015). City. Nova Iorque: Open Road.
Um livro intrigante, inquietante ao inverter as premissas humanistas da FC clássica. Em City, Simak entrega o planeta aos cães, num sentido muito literal. As espécies caninas vão-se tornar na forma dominante de vida inteligente numa Terra abandonada pelos humanos, partidos em busca de paraísos reais ou virtuais. As histórias, originalmente publicadas em diversas revistas de ficção científica, vão nos mostrar a evolução do planeta ao longo de milénios. O que é para nós um relato, é-nos apresentado como uma lenda, contada pelos fiéis companheiros de uma humanidade da qual apenas guardam vagas recordações. A Open Road reedita este clássico da Ficção Científica em formato digital, respeitando a sua estrutura e adicionando um interessante prefácio que nos ajuda a compreender melhor a obra.
O que intriga neste livro, colecção de contos dispersos com um fio condutor bem vincado, é a forma como Simak antecipa algumas das nossas correntes contemporâneas de ficção científica e pensamento tecnológico. Simak mostra-nos as consequências de um almejado futuro pós-escassez, onde a pobreza é eliminada graças à tecnologia. Fiel ao optimismo tecnocrático vigente nos anos 50, condena a humanidade a um ócio eterno, que a irá estagnar. Visão contrastante com a nossa, que aceita que a pós-escassez, a acontecer, será dominada por uma restrita elite, deixando o resto da humanidade na pobreza.
As transcendências singularitárias são também antevistas nestes contos. Quer com o destino da humanidade, transformada em criaturas pós-humanas, quer com o destino das restantes espécies animais, que com alguma ajuda humana irão evoluir até desenvolverem inteligência e civilizações próprias. Será que David Brin se inspirou nestes contos para a sua série Uplift?
Os impactos imprevistos do progresso tecnológico nas sociedades são também evidenciados nestes contos, com um curioso aceno às virtualidades digitais. Décadas antes de se falar em realidade virtual, Simak fala-nos de uma parte da humanidade que se refugia num sono eterno, habitando mundos electronicamente induzidos.
City: Uma variante progressista de visões de futuro pós-escassez, com a automação, energia abundante e novas técnicas de cultivo a tornar obsoletos os modelos económicos e sociais vigentes. Num futuro destes, as cidades estão a ser abandonadas por populações que já não precisam delas. A pressão social agora é regressar ao campo. Com as quintas tornadas obsoletas por formas de cultura hidropónica e técnicas baratas de construção de casas, qualquer um pode ter uma grande propriedade nos vastos confins rurais. Restam nas cidades os arreigados aos antigos sistemas, incapazes de compreender a profundidade das mudanças, e os que foram levados pela enxurrada da inovação, cujos modos de vida se tornaram obsoletos neste admirável mundo novo. Mas não temam. Simak escrevia no auge do positivismo tecno-científico, onde estas alterações eram vistas como benignas, e onde o conceito de ajuda ao ajustamento funcionaria como mitigante para os impactos negativos de um progresso globalmente visto como positivo. Curioso contraste com as nossas assustadoras visões contemporâneas sobre o progresso da automação e o impacto negativo que terá nas relações laborais. Tem ainda um pormenor curioso, específico da guerra fria: um dos objectivos deste impulso de regresso ao campo foi, em tempos, o de dispersar populações e recursos para minimizar o impacto de possíveis guerras nucleares. Daí parte uma inexorável marcha que mudará a face do planta. Curiosa reflexão de Simak sobre a forma como as consequências previstas dos planos futuristas raramente são aquelas que modelam os futuros.
Huddling Place: Há um nome de família, os Webster, que surge no primeiro conto, com um personagem que resgata a cidade da destruição para a transformar num museu natural. Essa família irá tornar-se o fio condutor das várias histórias que formam este livro. Nesta segunda, um cirurgião de renome vê-se impedido de salvar a vida de um amigo, filósofo marciano, ao descobrir que sofre de agorafobia. Há duas correntes neste conto. Por um lado, o sentimento de segurança quebrável por deslocações como grilhão que começa a prender uma humanidade acomodada na pós-escassez. Os efeitos morais perniciosos da libertação da pobreza e escassez são um tema que estará em evidência ao longo dos contos. Simak parece fazer notar que se as utopias paradisíacas são belos sonhos, sem vicissitudes ou desafios o espírito humano definha. Noutro, directamente relacionado com a sequência narrativa, a morte do filósofo vai negar à humanidade uma descoberta fundamental para a psique.
Census: Um governo mundial a esboroar-se perante uma humanidade cada vez mais rarefeita envia um recenseador até às terras selvagens. A sua missão é a de documentar grupos de humanos cujas mutações lhes conferem inteligência avançada e longevidade. De caminho tropeça na mansão familiar dos Webster, com os seus robots atenciosos e os cães capazes de falar, algo tornado possível graças a experiências médicas que conferiram o dom da palavra aos fiéis companheiros do homem. Já os mutantes revelam-se donos de um intelecto verdadeiramente superior, e o recenseador entrega-lhes o trabalho incompleto do filósofo marciano.
Desertion: Nem toda a humanidade se rende à inércia. Alguns atrevem-se a explorar o sistema solar, desbravando os planetas. Em Júpiter, um cientista e o seu fiel cão decidem-se a enfrentar o desconhecido. Perante o falhanço do regresso de exploradores enviados para o planeta, o cientista e o seu cão são metamorfoseados em criaturas de jupiterianas para tentar concretizar a missão de exploração. Que mistérios se ocultam na atmosfera de Júpiter? Tomando a forma das criaturas gasosas que o habitam, descobrem que a pressão insuportável e a atmosfera de metano são locais idílicos para as suas novas formas, praticamente imortais e capazes de se compreender através de telepatia.
Paradise: Alguém se sacrificou para regressar à humanidade, trazendo-lhes notícias do paraíso. Num curioso artifício, o conto anterior leva-nos a entender que seria o cientista, deixando para trás o seu fiel cão. Neste percebemos que foi o cão que regressou, tomando forma humana graças à tecnologia que permite transformar homens noutras criaturas. As notícias que para atingir um paraíso eterno bastaria à humanidade vir até Júpiter e tomar a forma das suas formas de vida gasosa não é bem recebida. A promessa da felicidade poderá dar a machadada final numa humanidade cada vez mais amorfa. Mas enquanto se debatem com o dilema de divulgar ou não esta notícia, algo estranho acontece. Os mutantes que fizeram a sua aparição em Census revelam o segredo filosófico que se julgava perdido com o falecimento do pensador marciano, e ao fazê-lo despertam uma capacidade psíquica latente na humanidade, tornado todos capazes de ler e compreender pensamentos.
Hobbies: Em cada conto Simak faz-nos avançar uma geração. Como elementos de continuidade temos a família Webster e a sua casa, à qual regressamos num conto que nos mostra uma humanidade cada vez mais rarefeita. A larga maioria optou pela fuga para a pós-humanidade nos céus de Júpiter. Os que restam vão vivendo uma espécie de vida vazia, centrados em Genebra como último centro humano, quase um museu vivo onde os habitantes, libertos de qualquer necessidade, se entregam a um incessável e superficial ócio. E começam a escolher outro destino, optando por uma espécie de criogenização com sonhos digitais, fuga completa à fisicalidade terrestre. Neste périplo sobre um tipo de futurismo proto-singularitário, trazendo à mente esta filosofia futurista antes de ter sido criada, somos conduzidos por mais um Webster, descontente com que sente ser a decadência e ocaso de uma humanidade mais preocupada com a gratificação sensorial momentânea do que com a sua evolução. Mas talvez a fuga da humanidade tenha algo de positivo, permitindo a outra espécie desenvolver-se e atingir o seu potencial. Os cães, cuidadosamente cuidados pelos robots centenários da casa Webster, dotados de fala e capazes de intervir no mundo graças a robots especializados criados especificamente para eles, começam a afirmar-se como civilização, prometendo uma nova forma de vida inteligente sobre a Terra. Não sendo mecanicistas como os humanos, apostam na empatia e nas capacidades perceptivas, sendo capazes de intuir outras dimensões potencialmente habitadas que coexistem com a nossa. Enquanto a humanidade se condena ao ocaso, exilando-se para paraísos eternos, serão os seus fiéis companheiros a herdar o planeta.
Aesop: A referência a Esopo no título justifica-se num conto que faz regressar o planeta ao tempo em que os animais falavam. Passados alguns milhares de anos após os eventos do último conto, restam alguns raros humanos num estado semi-selvagem, vivendo em harmonia numa sociedade onde os cães souberam transmitir a sabedoria e evolução aos restantes animais. Imaginem uma inversão moral da Ilha do Dr. Moreau de Wells e ficam com uma noção desta arcádia onde todos os animais se compreendem e o matar foi abolido. Esta nova forma de viver é guardada com bonomia por um robot já milenar, eterno servente dos Websters, nome de que família passou a designar os humanos restantes. Com o planeta entregue a um bucolismo arcádico, a humanidade transmigrada para formas de vida gasosa em Júpiter ou adormecida sob Genebra, são os robots selvagens que mantém acesa a chama do progresso, construindo naves que os levarão às estrelas.
The Simple Way: Tal como os seus ancestrais humanos, chega agora a hora dos cães e restantes animais sentientes partirem para outros espaços. Fazem-no não através da tecnologia, mas da capacidade psíquica de aceder a dimensões paralelas, pelas quais se espalharão até a Terra, o seu berço ancestral, se tornar um mito. Mas o planeta não ficará desprovido de vida inteligente. As formigas começaram a dar sinais de desenvolvimento de uma civilização, cooptando robots para construir edifícios que ameaçam ocupar todo o planeta.
Epilog: Resta ao simpático robot que acompanhou esta evolução milenar de espécies planetárias, o único que recorda os tempos áureos da humanidade, partir. Partir e abandonar de vez um planeta-berço, agora vazio, mas que espalhou incontáveis formas de vida.
Notes To...: Cada conto é acompanhado de uma pseudo-nota bibliográfica. Este é um dos pontos mais interessantes do livro, que dá maior coerência a um conjunto de histórias ligadas entre si. Suaviza as problemáticas de construir um livro através de contos. O ritmo disperso da publicação original força-os a repetir as principais linhas narrativas para manter o contexto, algo que se torna cansativo quando coligidos. Já as notas adensam, para além das páginas dos contos, o ambiente narrativo. São observadas através do ponto de vista dos cães, descrevendo num tom irónico de análise literária a sua perplexidade perante o que consideram mitos que talvez tenham fundo real.