Bernardo Santareno (1975). O Crime de Aldeia Velha. Lisboa: Círculo de Leitores.
Inspirado num crime que ocorreu no Portugal profundo das primeiras décadas do século XX, Bernardo Santareno lega-nos um texto fortíssimo, que explora de forma magistral as tensões sociais e pessoais no quadro de um país sentido com cultural, economica e socialmente atrasado. A história é bem conhecida, especialmente para os fãs de cinema de terror, graças ao filme homónimo que Manuel Guimarães realizou nos anos 60, uma adpatação fiel do texto de Santareno.
Mergulhamos numa aldeia do interior, isolada, pobre, conservadora nos seus costumes. Uma aldeia onde uma jovem rapariga sofre a maldição de ser bonita, atraindo a atenção dos homens, e mal vista na terra, apontada como descendente de bruxas. Joana é uma personagem complexa, um excecional retrato de alguém que mentalmente não está bem, rejeitando de forma instintiva os avanços amorosos dos aldeões, gerindo as sempre intensas más linguas. Há traços de trauma, não ficou claro da minha leitura se este personagem sofreu abusos, o que ajudaria a explicar a atitude de por um lado, mostrar alguma solicitação, mas sempre rejeitar quaisquer atenções. Não é difícil cair nas bocas de um mundo pobre de ideias, arreigado de superstições, como tendo o diabo no corpo.
A competição pelas atenções da jovem leva a uma rixa entre dois jovens aldeãos, que termina na morte de ambos. As mulheres da aldeia tomam isto como sinal de possessão, falam de estranhos acontecimentos, dizem à boca cheia que a jovem está possuída pelo demónio. E esta, transtornada e com os seus traumas pessoais, acredita piamente que a sua incapacidade em ser normal é símbolo de ter um espírito malévolo dentro de si. O conflito interior, as tensões sociais e sexuais são palpáveis neste texto. Temos a sociedade supersticiosa, no fundo, ignorante e pobre, encarnada nas personagens das mulheres velhas que empurram Joana para a loucura. A tensão sexual vem do conflito entre os costumes conservadores, onde a mulher serve para casar, tem de ser submissa, mas é também objeto de desejo entre os homens que se gabam nas tascas de conquistas amorosas que na verdade não aconteceram.
O desfecho é inevitável. Acicatadas por uma velhota que conhece os antigos ritos e costumes contra o sobrenatural, com a população a reclamar sangue e uma jovem incapaz de distinguir o real do imaginário, executam um antigo ritual de purificação pelo fogo. A lógica é medieva, o fogo purificará a alma da condenada, que graças à força da fé irá sobreviver ao ritual. Como é de esperar, tal não acontece, e a jovem morrerá queimada. Aqui, Santareno é magistral. Perante as evidências, as culpadas ganham consciência do seu ato, e optam por uma negação consciente. Sabem que cometeram um crime, uma injustiça, mas fecham-se num segredo social, assumindo uma morte por fraqueza cardíaca. Todos sabemos ser mentira, e sentimos a cumplicidade da turba de aldeões neste segredo que passará a ser sussurrado, para que a vida continue.
Há lampejos de alguma modernidade nesta terra esquecida. Nos dias em que a ação decorre, um dos seus filhos regressa à aldeia como prior. O jovem padre quer ajudar os seus, oferece-se para servir a sua terra, e é claramente a força esclarecida da terra. Um conhecimento e abertura social dentro dos limites da igreja como instituição tradicional, mas já a deixar entrar alguma modernidade no isolamento dos aldeãos. Mas o jovem padre falhará nesta sua primeira missão. O poder das superstições obscurantistas, das tradições faladas entre os aldeões, é mais forte do que os seus apelos à bonomia cristã e aos óbvios sinais de saúde mental. Por mais que tente, falhará na sua missão de proteger a jovem aldeã.
E nisto, será também testado nos limites do seu sacerdócio. Homem jovem, não é indiferente aos encantos da rapariga. Mergulha num intenso conflito interior entre sentimentos de paixão que encara como pecaminosos, enquanto tenta lidar com a pressão de uma população supersticiosa que demoniza a jovem. No final, que novamente refiro como magistral, a sua impotência pessoal e institucional é colocada a nu pela forma como cede, assustado, perante a pressão da turba. Horrorizado pelos acontecimentos, frustrado pela sua incapacidade em travar o crime, revoltado contra o barbarismo dos seus conterrâneos, quer fugir, afastar-se. Mas a sua mãe, uma das envolvidas no ritual mortíferio, manda-o ir descansar, dizendo-lhe que no dia seguinte é dia de missa matinal.
A peça termina aqui, mas nós não duvidamos que no dia seguinte este padre dê a missa aos aldeões, e que o continuará a fazer por muitos e longos anos, vivendo com peso deste crime, o segredo violento que a aldeia sempre negará, mas pesará no espírito dos seus habitantes.
Na vida real, a história acabou com a condenação de alguns dos homicidas. Na ficção, Santareno aflora a violência oculta sob a aparência de paz bucólica campestre.