quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Andam Faunos Pelos Bosques


Aquilino Ribeiro (1962). Andam Faunos Pelos Bosques. Lisboa: Bertrand Editora.

A fina ironia desta hilariante comédia de costumes é impressionante. Nas Beiras profundas dos inícios do século XX, as aldeias parecem estar a ser acometidas de estranho mal. Tudo começa quando uma jovem rapariga confessa ter sido abusada por estranha criatura, lesta, peluda e luxuriosa. Poderia ser uma efabulação que oculta uma violenta violação, mas o mal começa a espalhar-se pelas aldeias serranas. Diz-se que há bicho mau nas serras, que se aproveita dos púberes encantos das jovens pastoras e camponesas.

Mas a reação não é de medo. Para surpresa das comunidades, regidas pelos pacientes curas de aldeia, as jovens parecem procurar os encantos dos braços do tal bicho mau. De tal forma que se provocam tumultos e há revolta nas terras. A criatura é esquiva mas célere em provar os encantos das raparigas bonitas, para desespero das menos prendadas pela natureza, que bem se metem serra acima na esperança de serem tomadas pela lúbrica criatura que assombra os matagais.

Restam os guardiães da moral e bons costumes para repor a ordem: os tranquilos padres das aldeias, que vêem o tranquilo remanso das suas calmas vidas virado de pernas para o ar. Lá se vão os longos almoços bem regados após a missa dominical, os cuidados desvelados das mulheres da aldeia que vivem com eles, a quem lhes dão filhos que depois apadrinham como sobrinhos. Resta-lhes desenvolver esforços para repor a santidade do povo, dar caça à criatura, perceber se há demo à solta na serrania ou se é a expressão de uma outra mitologia, o silvestre fauno, que anda a desviar as meninas dos bons caminhos da virtude.

A história conta-se sob o ponto de vista dos padres, divididos entre a impotência para travar o que vêem com um mal que se espalha pelo povo, e as rotinas a que a sua vida de cura de aldeias os habituou. É aqui que reside a mais fina ironia do romance, uma tremenda crítica social e de costumes que disseca, com lâmina afiada, a vida no interior rural português do século XX, uma vida pobre, feita de atraso social e econónico, onda a palavra de padres fieis ao preceito "faz o que digo e não faças o que faço) é a lei. 

Apesar da aparente intrusão do fantástico, sob a forma do mito milenar que vem desviar a pureza das meninas bonitas, o romance foca-se no abalo às relações de poder trazidas pelo inconformismo das populações. Fica claro que não há demos nem faunos à solta pelas serras, que isso é uma desculpa para as raparigas poderem provar o sabor da natureza livre. E essa liberdade é o que realmente atemoriza os contemplativos curas, cuja dicotomia de vida é desnudada com bisturi certeiro, a sua cupidez, gula e lubricidade, que exercem livremente sobre as mulheres das aldeias que tutelam, enquanto pregam o credo da pureza divina. 

Ler este romance é um festim para o cérebro. A ironia, a comédia elegante, o profundo realismo do retrato das geografias e populações. As imagens da serra, das aldeias, formam-se na nossa mente com uma brilhante nitidez durante a leitura. Ajuda a isso a prosa elegante e complexa de Aquilino, useiro e vezeiro no uso de palavras e expressões fora do comum. Um sensual festim literário, onde o prazer da palavra impera.