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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

2034


Elliot Ackerman, James Stavridis (2024). 2054. Nova Iorque: Penguin Press.

Se 2034, o livro anterior da dupla Ackerman/Stavridis, foi uma excelente especulação muito bem informada sobre o que seria uma guerra entre os Estados Unidos e a China num futuro próximo, este 2054 não lhe chega perto em interesse. Há laivos de continuação da história de 2034, com personagens que se sucedem de um livro para o outro, mas o livro é uma especulação mal-amanhada que não se decide entre singularidade e caos político, e no final, não chega a lado nenhum.

As desventuras deste livro são despoletadas quando um presidente americano populista que almeja um terceiro mandato, ameaçando derrocar ainda mais uma decadente democracia americana, é assassinado com um ataque inesperado - uma manipulação genética remota que provoca um cancro de morte instantânea. Bela premissa de arranque, e o caminho promete. Por um lado temos a busca ativa pelo desenvolvimento de tecnologias singularitárias, de emergência de superinteligências de fusão biológica e computacional (Ray Kurzweil é um nome recorrentemente citado em 2054), por outro uma democracia em desagregação, dilacerada pelos efeitos de uma guerra que venceu, mas a elevado custo, e tremendas tensões políticas exacerbadas pela desinformação e extremismo político (a caricatura do corrente panorama político do país é nítida e óbvia).

O problema é que o livro opta por explorar estas ideias em modo thriller, com personagens globetrotter a saltitar de cidade em cidade em busca de respostas, ou manipulados por organizações na sombra, desde os serviços secretos chineses que têm interesse em manipular um provável futuro presidente americano ao governo japonês, que tem um plano para travar o emergir da singularidade. Aqui o livro perde-se, fica-se por uma leitura banal. Esperava-se mais, e melhor, da confluência de talentos de um escritor comercial com a experiência de um antigo almirante.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Infinity Gate


M.R. Carey (2023). Infinity Gate. Londres: Orbit.

Uma das razões pelas quais detesto trilogias é que se o primeiro livro é bom, teremos de aguardar bastante tempo para ficar a conhecer a continuação da história. E este, parece-me ser um desses casos. Infinity Gate é uma daquelas leituras que nos agarra, damos por nós a passar a página de forma compulsiva, mesmo que estejamos numa fase menos interessante da narrativa.

A história inicia-se num mundo em colapso ambiental, onde todos os limites foram ultrapassados e se sucedem os colapsos políticos, económicos e sociais. Num instituto de pesquisa em Lagos (Nigéria, não Algarve, desculpem, não resisti à piada), que tem o condão de ter sido bem financiado e por isso está bem provido, resiste uma cientista, isolada face à cidade em colapso e ao abandono dos colegas. Sabe que está no limiar de uma descoberta, potencialmente relacionada com energia limpa. E consegue ser bem sucedida, se bem que os resultados são anómalos. Recruta a única ajuda que lhe é possível num centro abandonado, uma inteligência artificial quase consciente, para perceber a amplitude da sua descoberta: não energia limpa e abundante, mas um meio de viajar entre universos paralelos. Enquanto a Terra onde a cientista vive está em colapso irremediável, abrem-se as portas de outras Terras, de uma infinitude de universos paralelos.

A descoberta desta possibilidade não passa despercebida. Não na Terra condenada, mas noutras Terras, parte das infinitas permutações, integradas  numa entidade política que se intitula Pandomínio (anda perto de pandemónio, e a sua decadência nisso é parte da história). Uma espécie de organização burocrática multiversal, que controla os acessos entre planetas paralelos, para garantir um tráfego contínuo e sem sobressaltos. Uma organização assente numa quase-IA que gere o sistema, e contando com um poderoso braço armado para se defender de quaiser intromissões.

Os universos do Pandomínio não são benévelos. A sua prosperidade baseia-se na extração de recursos das Terras paralelas. Afinal, para quê preocuparmo-nos com sustentabilidade se no universo ao lado há uma cópia de todos os recursos terrestres, e na maioria dos casos em Terras paralelas inabitadas? A lógica demente das economias de extração, de esgotamento de recursos, é algo pervasivo neste romance,  ao nível macro e micro. Todo o panorama geral parte dessa ideia (que é, também, a ironia da cientista, ao perceber que o acesso a novos recursos chegou tardiamente para salvar a sua Terra). O início do romance parece levar-nos pelos caminhos do Cli-Fi, antes de avançar pelos universos paralelos. Nas histórias individuais dos diferentes personagens, também assistimos à implacabilidade da exploração, de quasi-escravaturas, de regimes que tratam os indivíduos como elementos descartáveis.

Enquanto a cientista terrestre começa a explorar os mundos paralelos, escolhendo como base uma Terra muito similar à sua de origem, o Pandomínio enfrenta a sua maior ameaça - o choque frontal com uma inteligência de máquinas, que coloninzou outros universos paralelos. A aniquilação mútua é inevitável. Duas hegemonias que prosperam extraindo recursos chocam, mesmo num panorama em que as alternativas são infinitas. Duas civilizações incapazes de dialogar, as máquinas inteligentes não conseguem conceber o conceito de vida biológica inteligente, e os burocratas do pandomínio apenas sabem reagir ao desconhecido com aplicação de força militar. Estes universos estão em risco, ambos os lados estão a desenvolver armas capazes de levar o outro lado à extinção. Claro, extinção num cenário de infinitas Terras alternativas parece pouco mais do que um grão num imenso areal, mas para quem vive nos mundos sob ameaça, essa perspetiva não anima. Se nós estamos sob uma espada de dâmocles, não é consolador saber que no universo ao lado essa espada não pende. 

A chave para a resolução de todos os conflitos é-nos logo apresentada nas primeiras páginas do romance. Há um narrador omnisciente que nos recorda que os eventos da narrativa estão no seu passado, que ele é a solução que permitiu um futuro de coexistência e não aniquilação. Intuímos que envolve Inteligência Artificial, mas os detalhes disso ficarão para outro livro.

As pedras na imensa engrenagem multiversal iniciam-se com a cientista de uma Terra isolada que descobre o meio de viajar entre Terras paralelas, e a sua companheira artificial, que se mantém na Terra de origem, mas livre de constrangimentos ao seu desenvolvimento. Irão envolver o amante da cientista, um jovem de uma outra terra paralela, cuja infância foi passada às mãos de esclavagistas, e que se tornará um soldado ao serviço das forças militares do Pandomínio. Isto por causa dos descuidos de um burocrata que até faz bem o seu trabalho, mas caiu na mira de um superior vingativo devido a um descuido. Encarregue de monitorizar e eliminar a anomalia que representa o surgir de passagens entre universos não reguladas pelo sistema central, pega num comando de dois soldados que, de gatilho leve, provocam a morte física à cientista, mas não rastreiam o seu ponto de origem. A soldado mais experiente desse comando decide não assassinar o jovem que se encontrava com a cientista, alistando-o como soldado. Já a cientisa morre, mas consegue, moribunda, regressar ao seu laboratório e fazer uma cópia digital da sua consciência. Em dois universos paralelos, a cópia digital da cientista e a inteligência artificial irão unir esforços para compreender as forças que modelam o multiverso, e tentar travar o aparente destino funesto. E, para isso, contam com duas criaturas muito improváveis. Uma adolescente de uma Terra onde os lagomorfos se tornaram a vida inteligente (pensem coelhos humanóides), sobrevivente de um atentado, que incorpora dentro de si tecnologias que a tornam proscrita no seu mundo de origem, tomado por um fervor anti-máquinas após a guerra entre as duas hegemonias. Ao seu lado, o resultado de uma experiência da mega-inteligência mecanicista que está a enfrentar o Pandomínio - um simulacro de vida inteligente, criada para se infiltrar nos mundos habitados e recolher dados incorporando múltiplas extensões da inteligência das máquinas, mas este simulacro desevolve algo de radicalmente novo, um sentido de individualidade.

Infinity Gate é um livro pensado para apelar a dois tipos de fãs de ficção científica. Os que gostam de ficção de ideias deleitam-se com a lógica das Terras paralelas, as suas diferentes variantes, a mecânica das principais hegemonias, as possibilidades dos vários tipos de inteligência artificial, as metáforas pouco veladas sobre o colapso ambiental trazido pelas alterações climáticas e os efeitos de economias de extração. Os que preferem histórias de aventura e ação não saem defraudados, boa parte do livro (por vezes demais, penso eu que prefiro as ideias) é ação pura, por vezes empolgante, por vezes amarga. O livro pega no tipo de estrutura narrativa que geralmente associamos à Space Opera, as vastas paisagens, os conflitos entre blocos gargantuescos, as desventuras de personagens que apesar de serem o foco da história, são minúsculas face ao vasto panorama, e aplica-o ao conceito de universos paralelos. O resultado é interessante, e resta esperar pelos próximos livros para ver que caminhos irá percorrer.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Pavana


Keith Roberts (1991). Pavana. Lisboa: Clássica Editora.

Partimos de um grande e se. Roberts imagina um futuro alternativo onde a rainha Isabel I é assassinada, o que abre caminho para os católicos, apoiados por uma armada espanhola,  dominarem o trono inglês. E, com essa alteração, o domínio de Roma impõe-se, a Europa, e por extensão o mundo das colónias, torna-se um reduto de catolicismo puro e obediência dogmática aos papas. Aceleramos para o século XX, e a Inglaterra (tal como o resto da Europa), é essencialmente um país feudal, com um rei nominal mas dominado por grandes famílias, todos obedientes à inabalável autoridade papal. 

As tecnologias são severamente restritas, o progresso científico do iluminismo não aconteceu, mas apesar de tudo a ciência avança, rigidamente controlada por uma Igreja que utiliza bulas papais e ameaças de heresia para restringir o progresso. O mundo das pessoas comuns é pouco diferente do medievo, isolados em comunidades pequenas, com pouco contacto com um mundo exterior reservado às classes mais elevadas, sem educação ou cuidados médicos essenciais. As doutrinas da igreja tudo dominam. E, no entanto, as sementes da revolta começam a crescer.

Pavana leva-nos para este mundo através de histórias aparentemente desconexas. Um jovem condutor de locomotivas (num mundo de Pavana, as locomotivas a vapor seguem por estrada normal, porque a Igreja restringe o uso de motores de combustão interna) herda a empresa do seu pai, mas sofre um desgosto de amor. Um rapaz de curiosidade aguçada atrai a atenção de um elemento da guilda dos sinaleiros, uma corporação independente (e mais capaz de usar a tecnologia do que mostra) que assegura as comunicações por semáforo em todos os territórios obedientes ao papa. O rapaz tornar-se-á aprendiz de sinaleiro, mas no final da sua aprendizagem, colocado num posto remoto, sofrerá uma tragédia mortal que o coloca em contacto com vestígios dos antigos deuses pré-cristãos. Um frade talentoso, dedicado à gravura no seu mosteiro, é convocado para documentar sessões de interrogatório da Inquisição com a sua capacidade para o desenho realista. O que vê deixa-o tão transtornado, que ao regressar ao mosteiro acaba por se tornar monge vagueante, acometido por visões, e catalista de um movimento de revolta anti-Roma, que é severamente esmagado.

A filha de um nobre do sul de Inglaterra cruza em si a linhagem nobiliárquica do pai, mas também o sangue popular da mãe, herdeira da empresa de transportes por locomotiva que, entretanto, cresceu para se tornar a maior de Inglaterra. Perante a morte do pai, a jovem abala o mundo feudal assumindo o título nobiliárquico, e fazendo frente às exigências romanas, recusando-se a pagar impostos excessivos e assumindo que deve obediência ao rei do seu país, e não à autoridade papal. A revolta tem consequências, acabando debelada, mas o abalo ao poder papal é inevitável. Décadas depois, o filho desta mulher regressa das Américas independentes para visitar as ruínas do antigo castelo da família, agora num reino unido independente, e modernizado. A queda do poderio papal foi consumada, e o mundo fervilha de progresso. Mas, como irá descobrir numa carta que lhe foi legada pelo pai, o fiel senescal da condessa revoltosa, talvez o obscurantismo imposto pela igreja tenha tido uma razão de ser. Talvez os papas tenham tido conhecimento de um futuro alternativo, o das guerras mundiais, do Holocausto e da ameaça da aniquilação nuclear (ou seja, o nosso). Talvez a repressão ao conhecimento e aos modos de vida tivessem sido mais do que meros exercícios de poder, talvez visassem atrasar conscientemente o progresso humano, para assegurar que uma humanidade mais madura pudesse, finalmente, colher os frutos da tecnologia. Talvez a Igreja tivesse assumido esse papel, porque tinha conhecimento de que noutros passados, com outros deuses, o ciclo de inovação e progresso tinha condenado as antigas humanidades à extinção, outros tempos cuja memória persistiu nos mitos e ritos das religiões que antecederam a cristandade.

Um belíssimo exercício de ficção especulativa, Pavana segue um tipo de narrativa algo querido aos ingleses, imaginando o que aconteceria se a predominância do poder tivesse ficado com a igreja romana e não com os países europeus (recordo o romance The Alteration de Kingsley Amis como outro ponto alto deste tipo de ficções). Exploramos um mundo que cruza arcaísmos e pré-modernidade através de personagens que apesar de sólidas e emocionais, são também símbolos da necessidade de transformação do mundo ficcional. 

Como nota final, devo dizer que já muitas vezes ouvi o grande João Barreiros falar-nos dos tempos áureos em que dirigiu uma coleção  de ficção científica para uma editora portuguesa. Uma história que acaba mal (bem, as melhores histórias do Barreiros nunca terminam bem), com poucas vendas e a falência da editora, se não estou em erro. Nunca imaginei que uma destas edições me viesse parar às mãos, encontrada por acaso num alfarrabista.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

We Shall Sing a Song Into the Deep


Andrew Stuart (2021). We Shall Sing a Song Into the Deep. Nova Iorque: TOR.

Este curto livro foi uma das melhores surpresas que li este ano, até agora. A descrição no BoingBoing, que me intrigou, assenta-lhe como uma luva: imaginem um cruzamento entre A Canticle for Leibowitz e Hunt for the Red October, e têm a premissa, o misto claustrofóbico de paranoia submarina e religiosidade lunática que alimenta este livro. Que, apesar de curto em páginas, está na medida certa, consegue conjurar um sólido mundo ficcional, invocar personagens complexas, agarrar o leitor com uma narrativa pós-apocalíptica ritmada e inesperada. 

Imaginem um submarino nuclear que sobreviveu a uma guerra atómica, navegando submerso sob os oceanos. Imaginem que a tripulação adotou o estilo de vida de um mosteiro. Os marinheiros comportam-se como monges, a tripulação inclui meninos castrados cujas vozes em coro ressoam nas profundezas com hinos religiosos, os vistos como impuros, pecadores, ou castrados cuja voz se torna masculina são relegados para o lugar dos esquecidos, onde lhes espera a morte a médio prazo como tratadores de um reator nuclear. Uma tripulação que se vai renovando com raides à superfície, raptando crianças que, enclausuradas no mundo estanque do submarino, sofrem uma verdadeira lavagem cerebral para se tornarem crentes na missão do submarino. Este ainda dispõe de uma ogiva nuclear, e a missão do seu capitão, inculcada em todos com o rigor religioso de uma ordem fanática, é aguardar pelo momento certo para o disparar, e com isso dar origem ao Juízo Final.

Esta tremenda premissa adensa-se quando, no desenrolar da história, percebemos que o autor não nos coloca num futuro, mas sim no passado, nos anos 80, vinte anos após uma guerra nuclear. Guerra essa que foi despoletada pela conspiração ensandecida da tripulação original deste mesmo submarino, encabeçada por um capelão que disparou os mísseis nucleares em direção à Rússia, como forma de provocar um apocalipse. Todos atingem o seu alvo, menos um, que avariou. E o resto sucede-se como dominós em queda, um ataque devastador é respondido por outro ataque, até à destruição dos americanos, russos e europeus. Resta o resto do mundo, que vinte anos depois do cataclisma, se encontra também em guerra, contra uma China hegemónica que quer conquistar as terras não contaminadas pela radiação. Entretanto, este submarino e os seus zelotas ocultam-se sobre os oceanos, pilhando para repor tripulantes e manter a tecnologia decrépita, procurando reparar e lançar o seu último míssil atómico, para finalizar a missão de destruição global que a sua crença religiosa lançou.

O progressivo desvendar deste estranho mundo é-nos dado pelo olhar de uma adolescente, a única rapariga a bordo do submarino. Salva pelo capitão pela sua voz angelical, oculta a sua feminilidade no meio dos marinheiros-monge. E, há medida que vai descobrindo o estranho mundo do submarino, vai começando a questionar as ideias em que lhe dizem que tem de acreditar. A chegada de um elemento externo, uma técnica raptada num raide à superfície que é a única capaz de reparar o tal míssil avariado, vai catalisar as dúvidas da jovem, e despoletar um final muito inesperado.

Leitura rápida, com uma das mais interessantes premissas de ficção científica que li recentemente. Não nos brinda com finais felizes, e é daqueles livros que persiste na memória pelas associações que invoca, a riqueza do mundo ficcional que sugere permite isso.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Burn-In


P.W. Singer, August Cole (2020). Burn-In. Nova Iorque: Houghton Mifflin Harcourt.

Os livros de especulação futurista de curto prazo em que P.W. Singer se envolve são construídos com propósitos didáticos, uma forma de falar dos impactos das tecnologias de forma não académica, especulando e mostrando prováveis consequências futuras de tendências que hoje se começam a formar. Ghost Fleet centrava-se em cenários de guerra futura, especificamente nas capacidades trazidas pelo digital, que podem tornar possível a derrota de uma potência militar mais forte por inimigos mais fracos através da inutilização e comprometimento dos meios informáticos de que dependem os armamentos avançados. Nunca a derrota total, porque estes livros são escritos por americanos e, como bons patriotas que são, a américa ameaçada acaba sempre por dar a volta por cima nestas histórias. 

Burn In olha para as tendências em robótica, automação e inteligência artificial. Imagina um futuro próximo muito plausível (se se confirmarem as tendências dos analistas), onde robots e algoritmos fazem parte do dia a dia, são elementos nos diversos níveis da economia, tudo sustentado por uma interligação pervasiva em redes de alta capacidade. Um futuro que deixa muitos para trás, com a economia a automatizar-se, os empregos para humanos estão ameaçados. É aqui que reside o cerne o livro, a tensão entre automação e empregabilidade, entre a tecnologia e o social. 

O livro foca-se numa conspiração, levada a cabo aparentemente por ludditas e descontentes, que geram uma série de atentados terroristas não da maneira tradicional, fazendo-se explodir em locais públicos, mas comprometendo sistemas infraestruturais. Desligando sistemas de controlo de caudais em rios, ou intencionalente enganando sistemas de controle ferroviário para provocar acidentes com comboios automáticos que transportam químicos perigosos. Singer olha para a ciber-guerra, mas também para os nacionalismos de extrema direita, os instrumentos que nascidos do descontentamento social com uma modernidade que deixa muitos para trás, e cuja violência pode ser instrumentalizada por políticos com sede de poder (ou, no caso do livro, estes próprios instrumentalizados por bilionários tecnológicos que querem mudar o mundo para aceitar as mudanças trazidas pela tecnologia que desenvolvem, empurrando-o na direção oposta).

Estas últimas frases quase parecem uma descrição da política atual, não parecem? Notem que o livro é de especulação de curto prazo. Cai dentro da ficção científica como categorização, mas o seu propósito é diferente, a narrativa serve pressupostos meramente didáticos. P.W. Singer é o analista que constrói a sequência de ideias, August Cole o escritor encarregue de, digamos, encher o chouriço literário. 

Acompanhamos uma agente do FBI a quem é distribuída uma tarefa pouco invejável: testar no terreno um protótipo de robot autónomo avançado, bípede e capaz de se movimentar com fluidez nos espaços reais. A sua tarefa é a de analisar as capacidades dos robots, bem como de treinar o seu algoritmo nas interações com humanos. Isto, enquanto gere a sua vida pessoal cada vez mais tensa  na relação com o marido que, apesar de doutorado, se encontra desempregado por ter sido substituído por inteligências artificiais e ganha a vida imerso em realidade virtual. Mas o que parece uma história de polícia relutante a treinar o seu futuro substituto robótico depressa evolui para uma aventura conspirativa, onde a parceria humano-robot se vai revelar decisiva para travar as ameaças. 

Como história, Burn-In é pouco mais do que policial procedimental, cheio dos seus estereótipos, cruzando com ficção especulativa sobre robótica. Onde é interessante, e rico, é na especulação informada sobre futuras capacidades e impactos sociais das tecnologias que hoje estamos a começar a ver sair dos centros de investigação e a chegar à economia e sociedade.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

2034: A Novel of the Next World War


Elliot Ackerman, James G. Stavridis (2020). 2034: A Novel of the Next World War. Penguin Press.

O género guerra futura é toda uma vertente da ficção científica, mas não só, também alimenta outras vertentes, como ficção politica e ideológica. Este 2034 insere-se claramente no segundo campo. Parte de uma especulação muito tida em think tanks e instituições académicas, o como seria uma guerra entre as duas potências globais do século XXI: os vetustos e algo decadentes E.U.A., e a ambiciosa China. O livro é escrito a duas mãos, com um dos autores sendo um almirante americano na reforma, o que à partida indica que por detrás das premissas da obra estão reflexões que refletem a experiência prévia do militar. 

Spoiler: quem ganha a guerra no final é... bem, a India. Perdoem o spoiler (ou não, é-me indiferente), mas tinha de o fazer para mostrar que este livro segue caminhos inesperados. A história do possível conflito mede-se por passos mal calculados, que ameaçam colocar o mundo à beira de um holocausto nuclear. Começa no habitual jogo do gato e do rato nos mares da China, com as forças chinesas a procurar expandir constantemente a sua zona de domínio, onde uma pequena força americana, ao intervir no que aparentemente é um acidente com uma traineira, se depara com operações militares, e nos céus do Irão, onde um teste a um módulo stealth instalado num F-35 corre muito mal. Na verdade, os incidentes aparentemente separados fazem parte de um elaborado plano chinês para despertar um incidente internacional que, esperam, se fique pelo brandir de espadas seguido de recuos no terreno, para evitar uma guerra com tiro real. Não é isso que irá acontecer, quando a comandante americana no terreno resiste às intimações chinesas, o que leva ao afundamento da sua pequena frota.

Apesar dos militares chineses evidenciarem uma capacidade de ciber-guerra insuspeita, capaz de paralisar os mais sofisticados sistemas de armas americanos, Washington decide escalar a situação, enviando dois porta-aviões  para a zona, em clara ação punitiva. Os resultados são desastrosos, a combinação de poder militar clássico de um grupo de porta-aviões chinês com ciberarmas e ataques dirigidos por inteligência artificial consegue o impossível, o aniquilar da frota americana. O tema da sobre dependência militar americana da tecnologia digital é bastante explorada neste tipo de livros, geralmente sob o ângulo da vulnerabilidade dos sistemas perante ciberataques - Ghost Fleet, de P.W. Singer, por exemplo, baseia-se totalmente nessa ideia. 

Segue-se uma escalada de violência. Uma intervenção russa corta os cabos submarinos que sustentam a internet americana, o que é interpretado como mais uma agressão chinesa, e leva o governo americano a retaliar com  um ataque nuclear tático sobre uma base naval chinesa, destruindo uma cidade. A resposta chinesa passa pela invasão de Taiwan e arrasa duas cidades americanas com armas atómicas, e a resposta americana faz pairar a ameaça da destruição sobre três cidades chinesas. Esta estratégia de troca de armas táticas ameaça ir às armas nucleares estratégicas, numa espiral de retaliação mútua que parece imparável, porque pará-la, implica aceitar a derrota na guerra, algo que os governos chinês, que percebeu que se meteu numa alhada mas não consegue sair dela, e americano, onde elementos adeptos da violência estão em lugares de poder, recusam. 

O travão é colocando por uma intervenção indiana, que ataca simultaneamente chineses e americanos de forma cirúrgica, destruindo a indetetável e poderosa frota chinesa que representa a sua mais potente arma, e os aviões que carregam as armas nucleares do ataque retaliatório americano que ameaça destruir três cidades chinesas. A intervenção indiana, que também se faz no domínio da diplomacia de alto nível, coloca um travão na guerra. Os caças indianos não conseguem destruir uma das aeronaves, cujo piloto desconhece as ordens para suspender o ataque, e a cidade ce Xangai será a última vítima de uma guerra onde dois gigantes se enfrentaram, mas nenhum vence. Em paralelo, há conflitos oportunistas, com a Rússia a invadir a Polónia para assegurar um corredor terrestre para Kaliningrado, e a falhar uma operação militar para ocupar ilhas iranianas no Estreito de Ormuz, e com isso controlar o fluxo global de comércio. O livro termina com uma nova potência a ocupar o espaço político ocupado pela América e pela China, com a India a exigir a transferência das Nações Unidas para Bombaim como contrapartida para ajuda financeira a uns Estados Unidos arruinados pela guerra,

Devo confessar que este foi daqueles livros que mal consegui parar de ler. Não pela qualidade literária, é o tipo de escrita da literatura comercial, ou por qualquer empatia com os personagens, escritos com a profundidade do mais fino papel. O que cativa neste livro e, diria, neste tipo de livros, é o perceber como se movem as peças do jogo mental especulativo, comparando-as com o corrente estado das coisas. Intriga, também, pela percepção americana de si própria como fraca, vulnerável e no ocaso do seu poder global, bem como pela visão de um conflito global como algo que nunca terá vencedores claros, apenas derrotados, com um enorme desperdício de vidas, meios militares, e um abalo tremendo na economia global. Houve dois pormenores no livro que estranhei. Logo no início, sabendo que os chineses são capazes de cegar e controlar as armas americanas, não faz muito sentido enviar uma task force sem rever as ciberdefesas; e no tabuleiro global, não há qualquer menção ao papel da União Europeia, o que se estranha  ainda mais quando os autores colocam as ambições russas no tabuleiro do seu jogo especulativo. O foco do livro está num "e se" centrado num hipotético conflito na região Ásia-Pacífico, mas com repercussões globais, o que torna bizarra esta omissão. 

É de recordar que a ficção especulativa militar e geoestratégica de curto prazo sempre fez parte da ficção científica, sendo apropriada por outros géneros. Uma forma de analisar o momento contemporâneo é projetar um conflito entre potências num futuro próximo, e os tempos da guerra fria foram profícuos nisso, com obras literárias e fílmicas que anteviam uma possível guerra nuclear global. Diga-se que as suas visões dantescas, felizmente nunca concretizadas, desempenharam um papel na formação da opinião pública ocidental. Hoje, estas ficções olham para as tensões entre os poderes contemporâneos, e especulações sobre uma guerra sino-americana são o grande tema a explorar.