terça-feira, 30 de setembro de 2014

RPG


Quase nem ia dado por isto, enterrado nas páginas de crítica literária/cinematográfica/comics e gaming da SFX. A crítica não é lisonjeira. Suspeito que a desastrosa pronúncia do inglês do muito canastrão Pedro Granger não tenha ajudado o crítico. Digamos que léssh gô é uma epítome das calinadas linguísticas. E não era caso único. Pelo menos o crítico destaca pela positiva as cenas futuristas daquele que é um dos raros filmes portugueses de ficção científica, mas que não se torna automaticamente bom por ter esse carácter exclusivo. Por outro lado os críticos que desancaram o RPG também detestaram o intrigante Life After Beth mas adoraram a mais recente teen dystopia encarnada no Maze Runner. Prove-se com um grão de sal.

The Martian


Andy Weir (2014). The Martian. Nova Iorque: Crown.

O Robinson Crusoe tinha a vida fácil. Só tinha que se preocupar com as incursões aleatórias de canibais das ilhas vizinhas que iam à sua fazer festins de churrasco dos cativos, ou com as crises existências do Sexta-Feira. De resto, quer houvesse intempéries ou canículas, havia sempre restos do navio afundado, recursos naturais à disposição e ar fresco para respirar. Já para o astronauta encalhado em Marte deste curioso romance a vida é muito mais difícil, e apenas o seu engenho em aproveitar e contornar a falibilidade da alta tecnologia o separa da morte no planeta vermelho.

Se a fábula de Daniel Defoe espelha a visão iluminista do homem como senhor da natureza, graças à força dos braços e do pensamento, Andy Weir revê, talvez inconscientemente, este ideário à luz do optimismo tecnológico. No romance um astronauta tenta sobreviver em Marte após um acidente que o deixa encalhado no planeta. Cheio de recursos científicos mas especialmente mentais, consegue reaproveitar os recursos tecnológicos deixados na base que iria suportá-lo e aos colegas durante seis meses. Reapropria, cola, solda, desmonta e monta, num esforço para estender o apoio à vida e os mantimentos durante o período de tempo que irá decorrer até à próxima missão ao planeta. Engenhoso, encontra formas de comunicar com a Terra, mostrando que sobreviveu a um acidente que parecia ter sido fatal e mantendo a comunicação mesmo quando os meios falham.

A ideia de manipular recursos tecnológicos para sobreviver no ambiente marciano, sendo o que vai dando o percurso narrativo ao romance, não é a mais pertinente. Sobressai o ânimo psicológico de um astronauta que tendo todas as razões para desesperar se mantém sempre animado e cheio de recursos para enfrentar as adversidades da vida num planeta de ambiente hostil. Adapta o habitat, consegue misturar amostras de solo terrestre com solo marciano e fertiliza-o com as suas fezes para plantar batatas e assim aumentar a comida disponivel, utiliza pedras dispostas em código morse para que os satélites que monitorizam o planeta registem a sua presença, recupera a velha sonda pathfinder para poder comunicar via rádio com a Nasa através de um terminal, entre muitas outras situações que desafiam o seu engenho ao limite. No processo, não só consegue sobreviver no ambiente marciano como se desloca no planeta para chegar ao ponto de aterragem da próxima missão, embarcar na nave que aguarda os próximos astronautas, e fazer um rendez-vous na órbita marciana com os companheiros de missão que aceitam o desafio de regressar a Marte para vir buscar o astronauta encalhado.

Não é por acaso que o perfil psicológico é um dos elementos mais importantes do treino de astronautas, e Weir sublinha isso muito bem. A resiliência e engenho do seu personagem espelham bem o espírito dos astronautas, e está em consonância com as pesquisas que se fazem sobre missões de longa duração aos planetas. Aliás, este rigor científico e tecnológico é o grande ponto forte deste livro. Não há aqui tecnologias avançadíssimas de voos imaginários de space opera, com aventureiros corajosos a desbravar as selvas marcianas. Weir conhece claramente os estudos que se têm feito sobre missões a Marte com a tecnologia contemporêna, e espelha isso no livro. O modelo de exploração, com naves automatizadas a depositar na superfície recursos, equipamentos e veículos de escape que sintetizam o combustível a partir da atmosfera marciana, seguido de missões tripuladas que se abrigam em habitats insufláveis  com suporte de vida que recicla ar, dióxido de carbono, água e resíduos orgânicos mantendo um mínimo de conforto é não só plausível como possível, como têm apontado estudos da NASA, ESA e Mars Society. A tecnologia que Weir descreve é a de hoje, estando o brilhantismo na forma como o escritor a conjuga numa história ao mesmo tempo plausível e empolgante. E note-se que o autor não se coíbe de meter o seu astronauta nos mais variados sarilhos, levando ao limite a tecnologia e o engenho de que depende para sobreviver.

Plausível, com uma soberba pesquisa de base, empolgante e divertido, este romance é o melhor exemplo de Hard SF que li recentemente. Uma pedrada no charco de uma ficção científica hoje mais virada para o fantasista ou presa à repetição de modelos estereotipados. Não que venha daí mal ao mundo, uma vez que as fantasias de FC são uma delícia e os velhos modelos não deixam de nos divertir, mas este romance recupera de forma brilhante a tradição de especulação científica verosímil e informada, projectando um futuro próximo tecnicamente possível, embora socialmente, com as pressões austeritárias e o crescente desinteresse na exploração espacial, seja mais sonho do que realizável. Há muitos livros de hard sf que projectam numa contemporaniedade proxima ou futuros longínquos dimensões possíveis de desenvolvimento que espelham as problemáticas actuais, mas Weir faz algo mais fundamental. Pega nas tecnologias e possibilidades de hoje e constrói uma narrativa plausível, talvez com imperfeições literárias mas que se ultrapassam por ser uma boa história, bem contada, e assente num conhecimento enclopédico sobre as tecnologias que hoje poderiam levar-nos a pisar o solo do planeta vermelho.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Comics


Letter 44 #10: Charles Soule anda a contar-nos uma divertida e bem construída história sobre um primeiro encontro entre alienígenas e terrestres. Tudo parece apontar para uma invasão iminente, e um presidente americano reage envolvendo a américa em todas as guerras em que pode para endurecer as suas tropas enquanto ordena o desenvolvimento secreto de tecnologias avançadas. A missão tripulada à nave alienígena que se encontra no sistema solar parece à partida condenada. Como poderá uma frágil nave terrestre fazer frente a um misterioso e poderoso oponente, capaz de atravessar a vastidão do espaço interestelar? Os confrontos em escalada acabam por se resolver através do mais elementar dos sentimentos, a curiosidade mútua. Entretanto, na Terra, um novo presidente decide desvendar as tecnologias militares avançadas para pôr um ponto final nos conflitos militares em que está envolvido. E, claro, a presença massiva de uma nave extra-terrestre no sistema solar é um segredo conhecido apenas pelos cientistas, militares e mais poderosos líderes do planeta. Soule podia despachar a história num cenário clássico de invasão apocalíptica, mas há medida que a vai desenvolvendo vai montando um intricado puzzle que mistura boa ficção científica com uma reflexão sobre as crises geopolíticas contemporâneas.


Bodies #03: Este título da Vertigo continua intrigante. Assassínios rituais que se repetem ao longo de várias épocas no mesmo local da cidade de Londres, uma mescla de passado, presente e futuro que coloca nas mesmas páginas mas com diferentes estilos gráficos um detective vitoriano que toma Sherlock Holmes como exemplo, um médico legista alemão que se oculta debaixo da anglicização do seu nome durante o Blitz, uma agente policial muçulmana convicta de véu e forte personalidade, e uma investigadora num futuro que roça a incompreensibilidade. Intrigante, bem escrito apesar de fragmentário.


Legenderry #07: Isto nem parece escrito pelo Bill Willingham, ou talvez o argumentista de Fables não seja tão bom quanto aparenta. Legenderry foi uma brincadeira interessante, recriando sob o estilo Steampunk personagens tão diversos quanto The Phantom, Red Sonja, Flash Gordon, Vampirella, Zorro e Green Hornet, entre outros, junto com os seus inimigos. A Dynamite especializou-se em dar novas roupagens a personagens clássicos e este toque steam foi uma variante interessante. Mas termina de forma tão patética e mal amarfanhada que surpreende pela negativa. As linhas narrativas e pontas soltas são resolvidas à pressa, sem subtileza, a despachar para concluir a série. É pena. É um final triste para uma série interessante.


The Massive #27: Outra série cuja conclusão se aproxima. Toda a sua premissa assentava na busca pelo navio The Massive, perdido nos oceanos de uma Terra à beira do colapso ambiental. E quando os intrépidos activistas a bordo do navio Das Kapital o encontram, o sinal é óbvio. A história está a chegar ao fim. Diga-se que já se sentia a exaustão da história, mesmo com Brian Wood a fazer desvios interessantes pelos dilemas de um mundo à beira da derrocada onde a necessidade de sobrevivência e a cupidez capitalista não cessam de colidir. Wood parece ter adoptado o tom de futurismo apocalíptico fatalista e inevitável, concluíndo com um arco intitulado Ragnarok, referência subtil à aniquilação planetária. Mas deixa uma réstea de esperança no engenho humano: o navio perdido alberga uma ecotopia, talvez capaz de manter uma réstea da humanidade num planeta que está a perder a habitabilidade.


Pariah #08: Esta série discreta contava-nos as desventuras de um grupo de crianças e adolescentes expulsas do planeta por uma humanidade assustada com as capacidades que lhes foram conferidas pela modificação genética. O grupo de génios foi aprisionado numa estação espacial e a história lida com as tentativas de governos e organizações os eliminarem de várias maneiras, desde a indução de avarias no suporte de vida a ataques com mísseis nucleares. Falham, claro, e os mísseis até dão uma ajudinha num projecto acalentado pelos inteligentes párias: desenvolver sistemas de propulsão avançada e partir em direcção ao espaço interestelar. Mas com a Terra a ser assolada por uma pandemia alguns destes génios criados pela manipulação dos genes sentem a obrigação de regressar à superfície, utilizando as suas capacidades cognitivas para benefício de uma humanidade arrependida de se ter tentado livrar daqueles de quem teve medo. Discreta, quase passando despercebida, com um estilo narrativo pouco dado a grandiosidades, não deixou de ter alguns bons momentos de ficção especulativa.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Comics: The Ghost Engine; The Life Eaters


Daniel Djeljosevic, Eric Zawadzki (2014). The Ghost Engine. San Diego: Loser City.

Apesar de se basear em conceitos muito batidos, personagens estereotipadas e enredo previsível, este webcomic acaba por ser uma leitura interessante. A premissa não prima pela ingenuidade. Uma criminosa especialista em roubar obras de arte e um ex-actor de um reality show são contratados por um empresário francês para roubar um tríptico muito especial. No seu interior encontram-se três almas aprisionadas, que irão ocupar os corpos dos que as libertarem. Estas três almas estiveram, na viragem do século XIX para o XX, envolvidas numa tentatica de abrir as portas para o mundo que se encontra para lá da morte, utilizando o engenho fantasmático que dá o título à série. O que se segue é um previsível conjunto de peripécias que envolve uma agência secreta especializda no sobrenatural, um alienígena simpático que enfrenta a indignidade de ser servo de humanos menos avançados do que ele com um certo cinismo irónico, e muita luta interior entre os espíritos que ocupam os corpos das personagens. E, claro, novas e mal fadadas tentativas de reconstruir o engenho e reabrir as portas do mundo para lá da morte.

Previsível, a mexer com elementos muito usados no género, o livro tem uma escrita refrescante que equilibra muito bem o drama e humor. Já a ilustração, não sendo de grandes voos, é também eficaz e elegante. Uma boa surpresa no mundo dos comics disponíveis na internet.


David Brin, Scott Hampton (2004). The Life Eaters. La Jolla: Wildstorm.

Uma moderadamente interessante brincadeira de David Brin com o fantástico e histórias alternativas. Brin imagina uma II guerra mundial em que as piras dos campos de concentração permitiram aos nazis materializar deuses da mitologia nórdica. Com estas criaturas ao seu lado tornam-se invencíveis. Nem a tenacidade dos combatentes da liberdade e o seu poderio científico impedem a derrota. Ou aliás, uma longa luta, que vai evoluindo enquanto diferentes povos manifestam os seus antigos panteões. Uma forma de Brin se divertir com as ideias de religião como manifestação dos anseios da alma humana, dos homens como criadores de deuses e não por eles criados, e do poder da lógica e da ciência para travar obscurantismos, algo que requer luta constante.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Ficções

La Ciudad, tres momentos: Ao mergulhar no catálogo da Sportula deparei com a prolífica obra de Martínez. Não sei nem me atrevo a considerar se será um grande nome da FC espanhola contemporânea, mas o primeiro contacto com uma variação às voltas com Drácula e Sherlock Holmes atraiu pela qualidade do texto. Este La Ciudad é mais ambivalente. Começa com um conto excelente, dá-nos um conto de qualidade média, e termina com um francamente medíocre.  Em Tarot, a ambiência classíca do jogo de cartas, a fazer lembrar A Rainha de Espada de Pushkin pelo foco numa atmosfera de jogo. No fim da noite, um consumado jogador de poker enfrenta um cavalheiresco adversário que o desafia para um jogo diferente. Apostam-se sonhos, e ao naipe habitual juntam-se cartas de tarot. O que se segue é uma noite de tensão, onde o jogador percebe que os pequenos nadas ao qual não dá valor é talvez aquilo que de mais importante possui. O ambiente tenso de um jogo de cartas onde o sobrenatural se imiscui está caracterizado de forma muito eficaz. Piensa lo que quieras é um conto mediano, sobre um jovem tímido que se apercebe que é telepata e consegue controlar a mente dos que o rodeiam. Com este poder manifesta o hedonismo de aproveitar tudo o que a sua discreta timidez lhe impedia de fazer. A história é contada pelo olhar do seu melhor amigo, sabido extrovertido, que sendo o único a saber o segredo do telepata é forçado a suicidar-se. Boa premissa, se bem que já muito vista, mas a narrativa previsível. Em En territorio ajeno um escritor encontra-se numa cidade estranha. E pronto. A prosa neste conto é tão má que não vale a pena ser lido. Há uma tentativa de criar algum mistério mas com uma falta de clareza elementar não se consegue perceber de onde vem este conto, e muito menos onde quer chegar.

Selfies: Mas primeiro, deixem-me fazer uma selfie. E por último. Lavie Tidhar brinca com as premissas clássicas do objecto amaldiçoado e da criatura assassina que persegue nos limites da percepção enquanto ironiza a epidemia de auto-retratos de telemóvel. A história é contada de forma fragmentada, reflectindo a aleatoriedade dos algoritmos de partilha de informação que se sobrepõem à leitura cronológica de sequências de imagens.

King Wen of Zhou and the Long Night: A ficção científica chinesa começa a chegar ao público ocidental, em grande parte graças ao trabalho incansável de Ken Liu como tradutor. Na China já ganhou massa crítica, à qual não é alheia o apoio explícito do partido comunista chinês para usar a FC possibilitando formas de compreender as rápidas mudanças pelas quais o país passa. Liu tem-nos legado contos de vários autores, e está para breve a publicação de The Three Body Problem de Liu Cixin, talvez o primeiro romance de FC chinesa a chegar ao público ocidental. A TOR publica agora um excerto do romance, que também funciona como conto individual. Nele, somos levados a uma China histórica com recortes de fantástico, onde a cronologia histórica se comprime e o planeta é assolado por ciclos aleatórios de normalidade e anormalidade. Durante os períodos normais, que poderão durar dias ou anos, a civilização progride como de costume, mas nos períodos anormais a atmosfera congela, condenando os habitantes à hibernação e os mais resistentes a tentar sobreviver e procurar soluções e respostas para um dilema cósmico que não conseguem compreender. Mas não se trata de um mundo paralelo, é sim uma simulação computacional que parece querer estudar padrões de desenvolvimento civilizacionais através do correr de variáveis e modificação de parâmetros. Talvez uma metáfora da longa história do império do meio, com convulsões e longos períodos de estabilidade que vistos ao fim de dois milénios mostram uma continuidade civilizacional inigualável na história humana. Um curioso misto de wuxia (o género capa e espada chinês) com FC de recorte cyberpunk.

Desafios e recompensas

A boa notícia que recebi ontem foi que o artigo que submeti ao TIC Educa 2014 foi aceite. Mas melhor que a possibilidade de participar no maior encontro nacional sobre tecnologia na educação foi ler o comentário do revisor do congresso que analisou o artigo: "Li com toda a atenção o artigo submetido e considero de muita boa qualidade. É um texto descritivo do trabalho desenvolvido com estas ferramentas tendo como suporte ferramentas e aplicações inovadoras, em especial em contextos curriculares como os descritos. A exploração destes ambientes computacionais é muito promissora para  o desenvolvimento da criatividade e das capacidades de expressão das crianças e jovens. O aspecto a melhorar no futuro é a investigação educativa com a recolha e tratamento de dados que possam suportar os benefícios potenciais do uso destas tecnologias em sala de aula."

Devo dizer que sinto uma ponta de orgulho ao ler este comentário. Em particular na observação que explorar ambientes tridimensionais na vertente de criação e não de mero consumo pode ser promissor para o desenvolvimento da criatividade e capacidades de expressão, às quais se junta a percepção visuoespacial e o mais elementar domínio do computador. E o apontar da falha principal do trabalho, a falta de dados que comprovem algo que se intui como pertinente e estimulante, é precisamente um dos saltos qualitativos que sinto faltar dar neste projeto. Só que neste momento não disponho de condições académicas para o fazer. É algo que requer um conhecimento mais profundo de psicologia da aprendizagem e seria melhor desenvolvido com parcerias nessa área. O projeto TIC em 3D é desenvolvido na escola, em sala de aula de TIC ou em projecto interdisciplinar, recaindo sobre mim o esforço de o levar em frente. Note-se que desde que comecei a levar portáteis para as aulas de EVT até agora já seis anos se passaram, com uma tese de mestrado pelo meio que incidiu sobre o tema e abriu muitas das portas para vertentes de actuação que permitem resultados supreendentes. Como os mundos virtuais, ou o VRML, que apesar de ser uma tecnologia datada facilita muito este tipo de trabalho. Mas subscrevo. Uma coisa é perceber que algo tem um enorme potencial. Outra é provar, e isso é um trabalho imprescindível.

A estratégia de candidatura a colóquios e congressos insere-se na necessária vertente de divulgação deste projecto desenvolvido no Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro. Por muito interessante que sejam projectos desenvolvidos na escola nada têm a ganhar se ficarem encerrados dentro da sala de aula ou dentro dos limites locais das escolas. Há que divulgar, e isso implica arriscar a participação em eventos que possibilitem divulgação. E confesso que dá gosto falar disto noutros contextos, quer a professores quer a outros. Neste ano foram conseguidas algumas vitórias neste esforço. Conseguiu-se apresentar as TIC em 3D no congresso da Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual, que permitiu fugir da área das TIC na Educação e falar do tema a docentes cujas preocupações se prendem mais com a estética, criatividade e expressão artística, despertando para as possibilidades do computador nestas áreas e sublinhando o transvasar dos limites da organização curricular em disciplinas sentidas como estanques apesar de formarem um todo coerente. Também estivemos presentes na Lisbon Mini Maker Faire, completamente fora dos contextos educativos tradicionais, o que permitiu falar e divulgar a públicos cujo contacto com o mundo da educação é reduzido. O feedback recebido foi estimulante e, curiosamente, vi nos comentários dos visitantes espelhadas as preocupações com a criatividade, incentivo vocacional e capacidades de abstracção visual. É muito importante, creio, sair dos recantos habituais e confrontar com a opinião daqueles que estão fora dos meios ou nichos educativos.

Infelizmente o TIC Educa calha nos mesmos dias do Fórum Fantástico, o que implica fazer escolhas, e as questões do imaginário ficcional também me são importantes. Por isso vou ser obrigado a deixar para trás o TIC Educa. Tenho pena, mas ubiquidade é uma competência que ainda não desenvolvi. Este ano foi de recompensadoras vitórias. Espero, francamente, que seja um prenúncio de continuidade e não um canto de cisne. Pela parte que me toca o trabalho continua e os braços não vão baixar. Nunca pretendi que isto fosse um projecto daqueles que teve o seu momento de glória e ao qual depois não foi dada continuidade. Sabem bem do que estou a falar. Quantos projectos não deparamos que nos são mostrados como tendo sido vencedores de concursos, elogiados por entidades ou premiados num determinado ano, mas que depois estagnaram, não evoluíram ou ficaram-se por aí?

Acho que o próximo TIC Educa é em 2016. E que tal concorrer com este projecto levado à impressão 3D? Boa ideia?

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Fórum Fantástico 2014


O Fórum Fantástico 2014 aproxima-se e já há cartaz, criado por Pedro Piedade Marques no seu estilo inconfundível. Para além do grafismo espantoso este designer ainda é dono de uma verve informada invejável e tem um conhecimento profundo sobre a edição literária e design de capas no Portugal recente. A sua apresentação sobre Ribeiro de Mello no painel de Literatura Negra no MOTELx deste ano foi fascinante, não só pela ligação ao fantástico como pelas mirabolantes histórias de um editor iconoclasta. Quanto ao Fórum, suspeito que em breve haja mais novidades e iniciativas.

Bullet Points


J. Michael Straczynski, Tommy Edwards (2007). Bullet Points. Nova Iorque: Marvel.

E se... certo, assim começa a desenrolar-se aquilo que mais atrai na ficção especulativa. Neste e se Straczynski imagina uma bala. Imagina que essa bala, disparada por um agente nazi, mata ao mesmo tempo o Professor Erskine e um polícia militar chamado de Ben Parker. São personagens secundários mas centrais aos mitos da Marvel. Erskine é o inventor do soro que irá transformar Steve Rogers no icónico Capitão América e Ben Parker o tio de Peter Parker cuja morte o irá levar a assumir a responsabilidade de combater o crime como Homem Aranha.

Com esta inversão a premissa-base do universo Marvel pode ser desenrolada e reinventada. Straczynski não vai muito longe. Mistura um pouco a continuidade histórica da Marvel mas não se atreve a fazer grandes mudanças. E percebe-se. O público da editora pode apreciar volteios imaginativos mas arrepia-se perante a perspectiva de grandes mudanças ao que conhece e espera.

Resumindo, o jovem Steve Rogers não é transformado pelo soro do super-soldado mas é captado para um projecto militar que o transforma no Homem de Ferro. Peter Parker, rebelde inteligente que cresceu sem a figura paternal de Ben perde-se no deserto numa rambóia com os amigos e sobrevive ao teste de uma arma atómica de raios gama, mas ao acordar no hospital descobre que adquiriu a capacidade de se transformar num furibundo monstro verde. Já Bruce Banner, sentido-se responsável pelos males de Parker, é picado por uma aranha radioactiva e desfigurado num homem aracnídeo. Já Reed Richards consegue descolar com Sue, Johnny Storm e Ben Grimm em direcção às estrelas, mas um acto de sabotagem faz despenhar o foguetão. Único sobrevivente, Richards torna-se o líder da Shield, uma agência secreta anti-terrorista que recruta a fina-flor dos cientistas para desenvolver tecnologia de ponta. Entre os quais se encontra um cirurgião alcoólico que perante o cheque do governo não hesita em trocar o longínquo Tibete. Aqui Stephen Strange não se torna o maior místico do planeta. As linhas narrativas condensam-se quando a entidade conhecida como Galactus começa a devorar o planeta. Os heróis não o conseguem travar, nem um Tony Stark que se apossa da tecnologia do Homem de Ferro. Resta o sacrifício de Peter Parker como Hulk para comover o Surfista Prateado e convencê-lo a tomar o partido da humanidade. Num certo sentido, encerra em círculo.

Poderia ter ido mais longe, mas não deixa de ser uma série divertida. Estes e ses... desafiam-nos não só pela premissa como pela satisfação da curiosidade de ler como seriam narrativas alternativas das personagens que sempre conhecemos.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

As Histórias de Terror do Tio Montague


Chris Priestley (2012). As Histórias de Terror do Tio Montague. Lisboa: Arte Plural.

Tão bom, sentir aquele arrepio na espinha provocado por palavras que nos trazem histórias tétricas. Ainda sabe melhor se das páginas se levantar um ambiente soturno de velhas casas a ranger, florestas cujas árvores retorcidas intimidam quem as atravessa e crianças malévolas brincam na distância. Estes contos de terror mergulham-nos num escuro mundo gótico através dos olhos de Edgar, um rapaz apaixonado pelas histórias contadas pelo seu tio Montague, que talvez não seja seu tio, e que talvez já tenha sido tio dos seus pais e continuará a ser um tio a viver numa casa decrépita cheia de mistérios muito depois de Edgar desaparecer.

A biblioteca da casa está cheia de curiosos artefactos e todos têm uma história macabra que arrepia. Temos o rapaz que igonra o aviso de não trepar a uma árvore. Não cai, ficará a fazer parte da árvore. Ou a falsa vidente que acaba por se ver aprisionada numa casa de bonecas que é a réplica da casa onde foi tentar um assalto aproveitando a credulidade da dona da casa mas sendo apanhada pelo fantasma de uma irmã falecida. A rapariga ostracizada numa festa que partilha um esconderijo com o fantasma húmido da vítima de um horrendo assassíno. O jovem entediado que numa aldeia turca consegue finalmente interessar-se por uma criatura que é um djinn assassino. A escultura possuída por um demónio que vai passando de vítima em vítima, escolhendo um inocente rapaz cujo destino será mortífero. O rapaz que num acesso de cupidez decide roubar o ouro a uma velhota que está sempre a aparar as suas árvores e como castigo é transformado numa árvore a ser aparada. Estas e outras são as histórias nesta colectânea de contos à qual nem falta um misterioso anfitrião para nos narrar as tristes desventuras dos azarados personagens.

Priestley mistura de forma muito elegante o conto gótico de sobrenatural, a história moralista e o relato de terror clássico com uma linguagem simples mas eficaz. São terrores bem contados, sempre surpreendentes, e que encantam pelo cuidado na construção de um cenário grotesco na mente do leitor. Numa linguagem muito elegante e com um estilo narrativo que cativa o leitor, estes contos de terror encantam pelo arrepio que provocam na espinha daqueles que se atreverem a lê-los. Uma excelente proposta na vertente mais tenebrosa do fantástico constante do Plano Nacional de Leitura.

TIC em 3D @ Lisbon Mini Maker Faire


Estivemos presentes com o projecto Tic Tridimensional na primeira Lisbon Mini Maker Faire, que de mini teve muito pouco e decorreu de 19 a 21 de setembro no Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva. Cem participantes, cerca de dez mil visitantes, três dias muito intensos e recompensadores. Para saber mais sobre como foram estes três dias visitem a página do 3D Alpha, vejam as fotos do evento. O balanço final da actividade pode ser lido aqui: TIC em 3D na Lisbon Mini Maker Faire.

 Três dias a aprender muito, a divulgar uma experiência artística/pedagógica/digital, de explicações e discussões sobre as TIC na escola com todo o tipo de visitantes e em várias línguas. E ainda se arranjou tempo para por um sorriso e um brilhozinho nos olhos de crianças que pegaram no rato e perceberam que afinal ‪o 3D‬ é simples e divertido. Ponto final neste desafio e venham os próximos, alguns já programados e em breve revelados.

 Deixamos um agradecimento à ‪organização da Lisbon Mini Maker Faire‬‪‬, ao Mafralab‬, à direcção do Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro por todo o apoio que tem dado, aos professores que têm colaborado ao longo destes anos nestes  projectos e, em especial, aos alunos. É por eles e para eles que trabalhamos.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Maker Faire Lisboa: dias 2 e 3.


Robot Zeco quer ser amigo?


Quando o Theremin inventou este instrumento musical estaria longe de imaginar as insanidades de hardware do AltLab.


A Prusa Hephaestus da bq imprime com uma belíssima resolução. O extrusor deve ser muito preciso e a calibração cuidada para sair uma impressão 3D destas.


Teste ao Oculos Rift, cortesia do Mafralab. Primeiro impacto: wow! Segundo impacto: estou a ficar com tonturas. A demos era simples, a partir do Google StreetView estávamos no centro de Mafra, a olhar para o Convento, mas ao virar a cabeça a percepção era a que teríamos se estívessemos no local real. Foi tão requisitado que o hackerspace teve de fingir uma avaria para acalmar os visitantes.


Esculturas generativas misturando 3D capture em Kinect, algoritmos de swarm e 3D printing. Uma intersecção entre arte, tecnologia e matemática.

Alguns detalhes de uma enorme vastidão de projectos expostos que mostram que a tecnologia criativa ganhou ímpeto por cá. Algo que já notei no mundo da educação de forma incipiente mas cuja explosão noutras áreas esteve patente nesta mostra. A quantidade de talento e inventividade era estrondosa e a diversidade extraordinária, apesar do forte pendor para a impressão em 3D. Estando dentro, a apresentar uma pequena contribuição, não pude visitar com calma os vários expositores. Fiquei reduzido a umas fugas nos raros momentos em que a zona onde estava ficava mais calma. Mas ficou assente que há muitos a fazer muita coisa, A desenvolver, investigar, experimentar, modificar, recriar. É um misto de invenção com reapropriação e expressão artística.

Comics


Judge Dredd #352: The Man From The Ministry de Gordon Rennie e Kev Hopgood é a melhor série do momento na 2000AD. Certo, é publicada na Megazine mas o universo é o mesmo. O tom retro a remeter para a estética do cinema de ficção científica dos anos 60, a tecnologia antiquada e toda a envolvência de mistério, FC e aventura contribuem para uma belíssima história. Em resumo: na modernidade austeritária resta um minúsculo grupo de cientistas com acesso às instalações e tecnologia esquecida de uma época áurea onde resquícios de tecnologia alienígena alimentaram projectos secretos de exploração e defesa espacial. Está tudo esquecido e empoeirado, poucos são os que conhecem os agentes desta agência esquecida, mas as ameaças planetárias não deixaram de existir. Resta um fiel funcionário público com acesso às velhas tecnologias e uma credencial de alta segurança para travar invasões e outros combates que permanecerão sempre secretos.


The Multiversity: Society of Super-Heroes - Conquerors from the Counter-World #01: Ufa, que o título é comprido. E a história é típico Morrison: frenética, complexa, a levantar mais questões do que responde e funcionando como mais uma peça do vasto puzzle deste reinventar pelo lendário argumentista do velho hábito da DC de esticar os seus personagens com variantes em universos paralelos. Desta vez vamos a uma Terra onde Doctor Fate se mescla com Doc Savage e a Liga da Justiça inclui uma versão feminina dos Blackhawks. A derrota face a invasores de outra Terra paralela liderados por Vandal Savage foi inevitável. Mais uma peça do puzzle Multiversity, ilustrada com um fortíssimo tom retro que recupera o visual vintage e futurista dos anos 50. Inclui aeronaves ao estilo asa voadora de Bel Geddes, se se estiverem a perguntar se o efeito Gernsback Continuum é forte.

Um historial rápido: nos anos 90 a DC inaugurou os seus mega-eventos editoriais com a Crise nas Infinitas Terras, uma sequência de aventuras em que as Terras infinitas eram destruídas, restando apenas a nossa (certo, não tem qualquer lógica matemática, mas estamos no mundo dos comics). O objectivo disto era terminar com as variantes alternativas dos heróis da DC. Nos anos 60 e 70 os argumentistas entusiasmaram-se com as teorias sobre universos paralelos e trataram de criar Terras paralelas povoadas por variações dos super-heróis. Recentemente a DC parece ter-se arrependido e recomeçou a apostar nos universos paralelos, nomeadamente com o Eatth 2 ressuscitado pelo evento The New 52. Ainda não consegui perceber se este Multiversity  é uma homenagem nostálgica de Morrison aos personagens esquecidos ou a editora a sondar o mercado. Talvez as duas.


Sirens #01: É o regresso de um clássico. George Pérez, que se notabilizou pelo traço elegante e detalhado que trouxe ao mundo dos comics através de Wonder Woman, mostra aqui a sua mestria numa nova série para a Boom! Studios, O tom é de ficção científica divertida, entre viagens no tempo e space opera. De regresso estão os classicismos do traço e da forma narrativa dos comics.


Trees #05: Os humanos como formigas. Deprimente, a premissa de uma humanidade que se acomoda a uma invasão alienígena de seres gargantuescos e aparentemente imóveis que apenas estão, sem se incomodarem com o fervilhar da humanidade que os rodeia. Como nós, a quem o fervilhar do mundo dos insectos na nossa casa passa despercebido. Warren Ellis está a ser implacável, contando a história num ritmo preciso mas lento que aguça a curiosidade de quem lê. É frustrante. Espera-se uma explicação, um infodump, algo que normalize a narrativa, mas tudo o que recebemos são vislumbres do que poderá vir a ser a conclusão da série.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Lisbon Mini Maker Faire: dia 1.


Bom dia, humanos insignificantes. Pelo menos é o que parece estar espelhado no rosto do robot. Hoje o dia foi de testes, montagens e palestras mas já deu para ver muita coisa. Robots e impressoras 3D abundam, e o espaço do Pavilhão do Conhecimento está a encher-se de projectos muito criativos que têm em comum o uso experimental da tecnologia.


Um pequeno detalhe de uma grande impressora 3D da Leds & Chips. Suspeito que tenha um metro cúbico de volume. Cabe lá dentro um humano.


Máquinas féericas de Pietro Proserpio, que leva à Faire uma máquina do tempo e uma máquina de fazer sons aleatórios. A fazer lembrar Tinguely pela deliciosa magia mecânica.


Coelhos a reproduzirem-se. Se bem que o paradigma da impressora que imprime peças de impressora é mais da RepRap do que da Makerbot, mas enfim. Coelhos a reproduzirem-se. O low poly é um mimo.


Bicharocos montados a correr parede fora. Uma ideia de estética interessante do FabLab Aldeias de Xisto.


E sim, os velhinhos mindstorms de primeira geração ainda mexem.


Teste de montagem ao espaço do 3D Alpha na MakerFaire. Não se preocupem, vai haver mais do que isto. Mas já percebi que levei monitores a mais para o espaço de que realmente disponho, o que quer dizer que não vou poder mostrar tanto quando poderia.


Do Mafralab estão a vir coisas muito giras. Como estes tricos g33k. Um barrete com leds e um pacman tricotado.


Quando os elementos da beeverycreative estavam a começar a montar o seu espaço suspeitei que estariam a construir um forte de caixas de cartão. O resultado final anda lá perto, mas é uma solução com um design interessante e de baixo custo para criar um espaço diferente e atraente.


Awww. Sad robot is sad. Digamos que os robots Infante ficaram com um ar de frágeis criaturinhas.

Pequenos apanhados do primeiro dia da primeira maker faire portuguesa. Os níveis de criatividade e talento são espantosos. Amanhã será o dia do grande embate com o público. O fim de semana promete. E eu não consigo deixar de me sentir pequenino, com o trabalho de introdução ao 3D desenvolvido com alunos que todos os anos me deixam surpreso, ao pé de projectos tão avançados e espantosos como os que estão para partilha na maker faire.

Insta




Scary monsters.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Ficções

The Vanilla Fudge Room: O jornal The Guardian deu uma bela prenda aos fãs de literatura infantil e fantástica com a publicação de um capítulo inédito do marcante Charlie and the Chocolate Factory de Roald Dahl. Pelo que se conta, o capítulo foi excluído pelo editor por ser demasiado subversivo e moralmente duvidoso. Isto num livro onde crianças ímpias são mimadas com as mais irónicas punições imediatas para os seus vícios morais. No capítulo perdido duas personagens que também foram eliminadas do livro não resistem aos encantos de uma montanha de creme de baunilha e são arrastados para um destino esmagador e cortante. Se bem que suspeito que o que realmente irritou os editores foi a descrição quase vitoriana dos mineiros que escavam ininterruptamente a montanha de baunilha. Suspeito que a insinuação de exploração capitalista pareceu moralmente mais reprovável do que o esmagar e cortar criancinhas aos cubinhos.

Apologue: As habituais partilhas de links sobre as comemorações do 11 de Setembro recuperaram esta curiosa elegia de James Morrow, onde os velhos monstros destruidores se unem após o cataclismo para sublimar o horror real. Velhos monstros, criaturas destruidoras da ficção de eras mais inocentes, a simbolizar o choque quando o real se assemelha ao ficcional da pior forma possível. Não sendo um excelente conto, sempre deixa a imagem memorável de Godzilla, King Kong e outros kaijus a lamentar o ataque terrorista.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

The Motion Demon


Stefan Grabinski (2005). The Motion Demon. Ashcroft: Ash-Tree Press.

Há uma intrigante mistura de classicismo e modernidade nestes contos de Stefan Grabinski originalmente coligidos em 1919. O oculto, o sobrenatural, o irreal e o estranho coexistem com a modernidade da velocidade e da tecnologia. O combóio é o fio condutor destes contos, onde a ferrovia é envolta numa atmosfera exacerbada de profunda estranheza. Os personagens são meras peças destinada a cumprir o fio narrativo, como peões nas mãos de um xadrezista determinado. A prosa é pesada, sem floreados, e apesar de serem histórias curas as linhas narrativas são pouco lineares. Os primeiros parágrafos causam impressões que são levadas em direcções inesperadas pelo escritor.

Escritor obscuro, Grabinski é considerado o Poe polaco e tem vindo a receber mais atenção graças a projectos de tradução e à publicação de um dos seus contos por Jeff e Ann Vandermeer no The Weird, uma das suas influentes e impecavelmente editadas antologias de literatura fantástica. The Motion Demon pode ser descarregado no Goodreads.

Engine Driver Grot: o fascínio pela viagem sem fim, pelo ultrapassar das fronteiras geográficas, metastatizado num maquinista de comboios que sublima o sonho perdido de construir e voar numa máquina voadora com o estender dos limites de uma viagem de longo curso de comboio. O final mortal é uma espécie de final feliz, uma vez que só a morte ardente na colisão de uma locomotiva irá libertar o maquinista.

The Wandering Train: Uma intrigante variação sobre assombrações. Há um comboio que está a arrepelar os cabelos dos maquinistas e engenheiros. Ninguém sabe de onde vem nem para onde vai, não está nas tabelas e horários, e pela velocidade com que se desloca deve ser um expresso. Os indignados funcionários do caminho de ferro suspendem a respiração quando o inevitável acontece e o comboio vagabundo colide com uma composição parada numa estação. Mas a catástrofe não chega a acontecer. O comboio desconhecido atravessa o outro como uma névoa.

The Motion Demon: Um escritor sofre de uma estranha propensão para dar consigo a centenas ou milhares de quilómetros do local onde vive. Por detrás dessa propensão está uma obsessão com a velocidade, que o leva a embarcar amnésico em comboios expresso. Numa dessas viagens, trava conversa com um empregado dos caminhos de ferro que lhe confessa o deslumbre com a corrente tecnologia ferroviária, algo repelente ao escritor, para quem o comboio apesar de ser rápido não o é o suficiente e está limitado pela obrigação de circular por um destino traçado. Acelerar e viajar sem limites é a vocação, mas os limites físicos tornam-se grilhões.

The Sloven: Há nos caminhos de ferro um revisor experiente, lendário pela ordem que impera nas suas carruagens. Onde passa não há apertões, excesso de passageiros ou desordeiros. Mas a imagem fugaz de um passageiro assombra-o. Cruzou-se pela primeira vez com ele momentos antes de um catastrófico acidente ferroviário, e agora, anos depois, volta a vê-lo na sua carruagem. Teme o pior, mas nada acontece. Só que com um revisor tão rigoroso possibilidades perdidas não são aceitáveis. Opta por enganar o sinaleiro, provocando um acidente que crê, intimamente, ser inevitável.

The Perpetual Passenger: Um homem que não é o que deseja. Humilde funcionário de tribunal durante o dia, mal termina o expediente dirige-se à estação de comboios para fazer o que realmente gosta. Viajar, viajar sem destino. O parco salário e a obrigatória normalidade obrigam-no sempre a regressar, mas o apelo dos carris nunca se desvanece.

In the Compartment: A alta velocidade, sedução, sexo, traição, morte. Os instintos primevos vêm ao de cima durante uma viagem onde um homem rico partilha um compartimento com um engenheiro ferroviário e a sua não muito bela mas curiosamente atraente esposa.

Signals: Histórias de assombrações à volta com os sistemas de comunicação ferroviário. Ao final do dia um grupo de sinaleiros junta-se para partilhar cigarros e uns dedos de conversa. Um conta como uma combinação arquetípica de sinais fez desaparecer um combóio para a quarta dimensão, suspenso no tempo até que por algum acaso a combinação se repita. O conto arrepia e intriga o grupo. Mas outro sinaleiro contra uma história ainda mais arrepiante. Parece que há anos atrás trabalhava numa estação que começou a receber sinais misteriosos sobre a iminente colisão de composições. Investigam a linha e nada, não há quaisquer combóios em rota iminente de colisão, e os funcionários da estação anterior nada sabem do que se passa. As mensagens continuam, e os técnicos da companhia passam a linha a pente fino até encontrarem uma estação sinaleira cujo operador morreu. As mãos esqueléticas do seu cadáver descomposto agarravam os manípulos operadores do sistema de sinais. Os técnicos sepultam-no e os sinais misteriosos páram. Na semana seguinte dois combóios colidem, precisamente como previsto pelas mensagens fantasmagóricas.

The Siding: Rumores de estranhas carruagens com o poder de transformar os seus incautos passageiros espalham-se durante uma conversa num comboio apinhado. Depois dessa conversa a maior parte dos passageiros sente uma inexplicável necessidade de sair na estação mais próxima, quer esta seja ou não o seu destino. Restam treze ocupantes, levados a fazer parte de uma secreta irmandade que visa mergulhar nos mistérios das linhas laterais, onde por entre os carris abandonados se ocultam segredos. Estes intrépidos passageiros dão por si a viajar por entre um vasto vazio, sabendo que no espaço real um estranho acidente parece tê-los vitimado.

Ultima Thule: Um funcionário de uma estação de montanha sente dentro de si o chamamento de algo maior. É capaz de percepcionar a escuridão que se oculta por detrás do real e sente que a sua presença no preciso lugar onde se encontra é necessaria para impedir que a escuridão transvase para a realidade.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

The Definitive Silver Surfer


Stan Lee, Jack Kirby, John Buscema, John Byrne, Jean Giraud (2007). The Definitive Silver Surfer. Tunbridge Wells: Panini.

A sintonia com os estados de espírito da adolescência é uma das grandes marcas dos mais icónicos personagens da Marvel. Percebi isso quando, ainda adolescente, fiquei cativo das aventuras dos X-Men escritos por Chris Claremont. Aquilo era mais do que histórias de aventuras com lutas à mistura. As vidas pessoais dos personagens encadeavam-se, cada qual com os seus dilemas, e a sofrer com as injustiças de uma sociedade que não os compreende. Uma óbvia metáfora para os sentimentos que passam pela turbulenta alma adolescente, onde o corpo e o pensamento se desenvolvem em conflito com as estruturas e o normal se redefine a cada dia. Os X-Men, lutadores injustiçados por uma humanidade que os ostraciza, são um dos exemplos desta linha de pensamento, que é encarnada na totalidade pela eterna adolescência do Homem-Aranha.

Há um personagem que leva aos limites este espírito de homem contra o mundo, de honra face à injustiça, de emoções levadas ao épico e, confessemos, pomposo. Silver Surfer é um dos mais icónicos personagens de segunda linha da editora, hoje alvo de um bem humorado tratamento em estilo retro. Na sua origem, às mãos de Stan Lee e Jack Kirby, tornou-se admirável pela forma hiperbólica como encarnou o espírito de sacrifício com uma importante veia psicadélica. Surfista das ondas do cosmos, sacrifica-se para salvar o seu planeta tornando-se arauto de Galactus e sacrifica-se novamente para salvar a Terra, ameaçada por uma força cósmica indiferente aos destinos humanos. Galactus em si é uma personagem muito interessante, metáfora das forças primevas que estão para além do nosso controlo e não se enquadram na dicotomia do bem e do mal. A sua história de origem original (porque estas coisas estão sempre a ser reinventadas no mundo dos comics) qualifica-o como sobrevivente de uma civilização avançada do universo anterior ao nosso, com o big bang a torná-lo uma entidade cósmica essencial à estrutura do universo. Anos 60. O que é que o Kirby e o Lee andariam a ler e a tomar para ter ideias destas?

As histórias de Silver Surfer são sempre aventuras de incompreensão. Não por acaso o seu arqui-inimigo é Mefisto, um demónio dominador que utiliza enganos e ilusões como armas. A humanidade que tanto ama, ao ponto de sacrificar várias vezes a sua liberdade por ela, considera-o uma ameaça e recebe-o a tiro de artilharia ou caça-o com aviões de combate. Por muita amargura que Silver Surfer sinta, a consciência da bondade humana elementar nunca o abandona. Imensamente poderoso, resiste a usar toda a sua força para enfrentar aqueles que vê como seres equivocados. Apenas alguns dos seus pares, super-heróis todo-poderosos, o conhecem e respeitam. O grupo não é grande. Fica-se pelo Quarteto Fantástico e o Doutor Estranho. Silver Surfer sempre foi demasiado icónico e unidimensional para se tornar um personagem de primeira linha da Marvel.

The Definitive Silver Surfer não é um compêndio do personagem. Reúne algumas das suas melhores histórias, dando-nos uma imagem que caracteriza o personagem. Começamos pela primeira aparição nas páginas de Fantastic Four, onde estes enfrentam a ameaça cósmica de Galactus e Silver Surfer se sacrifica. Da sua revista original é reimpresso o primeiro número, um delírio do traço de ficção científica de Jack Kirby, que nos leva a Zenn-la, o seu planeta de origem e nos apresenta ao seu inabalável amor, a bela Shalla Bal. O rigoroso humanismo e persistência do personagem são postos em evidência por confrontos contra um enraivecido Hulk, o insidioso Mefisto e o horror de Drácula. A primeira fuga bem sucedida à barreira que o prende à Terra, ajudado pela super-ciência de Reed Richards, confronta-o com as consequências da sua decisão ao encontrar os sobreviventes de Zenn-La após Galacutus o ter devastado, desobrigado da sua promessa pela rebeldia de Silver Surfer. Para terminar, temos a marcante parábola que uniu duas lendas dos comics. Stan Lee descreve um futuro amargo onde Galactus, vingativo, regressa à Terra para influenciar o pior da alma humana no caminho da auto-destruição e apenas o discreto mas sempre vigilante Silver Surfer lhe resiste. Moebius ilustra, naquela que ficou registada como uma das mais lendárias incursões do mestre da BD francófona no mundo dos comics.

Silver Surfer é um dos mais intrigantes personagens do universo Marvel. De convicções inabaláveis, vítima de um estilismo algo stürm und drang romântico, hiperbólico na sua dignidade e perserverança, e com o toque psicadélico dado pela referência ao poder cósmico, nunca atingiu a popularidade das personagens mais icónicas mas tem presença suficiente para não se tornar secundarizado. Esta mistura de surf, psicadelismo e emoções, continua hoje a deslumbrar os fãs com as suas aventuras pelo cosmos fora, que sulca sempre equilibrado na sua fiel prancha.

TIC em 3D na Lisbon Mini Maker Faire


A Lisbon Mini Maker Faire é o primeiro evento do género a ser realizado em Portugal. Reúne makers das mais variadas áreas, da robótica à impressão 3D e outras tecnologias experimentais. O Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro também estará presente, divulgando o trabalho dos nossos alunos do domínio da modelação e animação 3D. Venha visitar-nos!

Para além dos trabalhos dos nossos alunos poderá ainda ver e experimentar riftcycles de realidade virtual, drones, aplicações de tecnologia de ponta, robótica, picosatélites e espectáculos de bobines Tesla, entre outras aplicações que misturam tecnologia com arte, investigação e criatividade. O evento irá decorrer no Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva de 19 a 21 de setembro, sendo que os melhores dias para o grande público são 20 e 21. A entrada na Maker Faire requer bilhete/registo gratuito, que pode ser feito antecipadamente online no EventBrite-Lisbon Mini Maker Faire ou no local. Para saber mais, visite: Lisbon Mini Maker Faire, EventBrite - Lisbon Mini Maker Faire, Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva3D Alpha.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

MOTELx 2014


Já na sua oitava edição (bolas, como o tempo voa), o MOTELx continua a afirmar-se com um excelente festival de cinema de terror, ainda mais precioso para aqueles que, por motivos laborais, não podem ir ao clássico Fantasporto e ficam por isso muito contentes com ter um festival destes por Lisboa. Tive sorte, ou pontaria, com os filmes que escolhi ver na edição deste ano. Se do ano passado apenas recordo dois filmes interessantes, A Promessa de António de Macedo e Lords of Salem de Rob Zombie, este ano todos os filmes que tenho visto são interessantes. Mesmo o mau filme da secção Quarto Perdido, que funciona como uma visita referencial à pequena história do cinema português de género. As escolhas pontuaram-se por critérios tão rigorosos como visitar referências históricas em  Society de Yuzna ou O Cerro dos Enforcados, descobrir filmes novos (Witching & Bitching, Open Windows), ir ao acaso para acompanhar amigos e até ter uma boa surpresa (Life after Beth) e, enfim, porque é de rigueur,  alinhar no cerimonial do encerramento do festival (Stage Fright) e ficar encantando com a sala apinhada do S. Jorge. Quem a conhece sabe que é uma sala de cinema à antiga, daquelas onde cabem pequenas multidões.

É sempre bom ver o S. Jorge cheio de fãs e participar nesta celebração anual do filme fantástico. Para o ano haverá mais. E esperemos que o investimento da secção Quarto Perdido em mais vertentes do que as cinematográficas na recuperação da memória do fantástico em Portugal se mantenha.

Society: Um clássico do body horror, este primeiro filme de Brian Yuzna é gloriosamente medíocre daquela deliciosa forma que só nos anos 80 seria possível. Más actuações, um festim de roupas e penteados que foram moda na delirante e felizmente distante década de 80. A história mistura inadaptação adolescente com elites conspiratórias que sugam num sentido muito literal os mais pobres. A melhor frase do filme? "I'm not paranoid, my fears are real." Termina com um festim orgiástico de carnes que se dissolvem e indivíduos que se mesclam enquanto sugam as carnes das vítimas. Se o vampirismo é elegante o sugar é repelente. Os efeitos especiais das cenas finais são surpreendentes pela qualidade.

Life After Beth: Confesso que ando sempre a fugir aos filmes de zombies nestes festivais. É que já não há paciência. Há para aí uns dez anos atrás achava-os interessantes. Delirei com o remake do Dawn of the Dead pelo Zack Snyder, redescobri com gosto a saga de Romero e ia-me divertindo com as zombie fanfics do homepageofthedead. E depois a coisa rebentou no mainstream, começaram a chover filmes do género, a coisa alastrou para a BD, romances, televisão e blockbusters. O problema é que normalmente quem vê um destes filmes vê-os a todos. O racismo fóbico implícito no gosto pelo decapitar ou rebentar com os miolos de hordes andrajosas que querem destruir a bucólica normalidade pequeno-burguesa esgota-se depressa. E, por favor, assumam lá que Walking Dead é uma banal telenovela com cadáveres putrefactos aos tombos. Quando descobri que este filme era de zombies, bolas, pensei logo. Mas a supresa é boa. Ao invés de seguir o caminho habitual de catástrofe apocalíptica segue uma estética de filme indie com diálogos de sitcom. Está mais próximo de Shaun of the Dead do que de Dawn of the Dead. O foco do filme está no drama do jovem protagonista, cuja namorada morre mas, misteriosamente, regressa à vida sem se recordar. Sabemos que se trata de uma epidemia de zombies, mas os personagens não. Entre os pais protectores e os assomos românticos de toque necrófilo a decadência vai-se acentuando e o bom humor do filme também. Já alguém selembrou de fazer um filme romântico com zombies, para mal da humanidade, mas esta zom-rom-com até acaba a funcionar muito bem. O que mais se aprecia no filme é a subtileza. Os mortos vão reaparecendo mas como todos estão demasiado absorvidos nas suas vidas nem estranham. O melhor é quando os personagens estão a discutir os seus dramas pessoais, no inimitável estilo de cinema indie de toque autobiográfico, enquanto ao fundo tiros dispersos ou explosões fazem notar que talvez as coisas estejam a descarrilar.

O Cerro dos Enforcados: No reduzido panorama do cinema fantástico nacional, qualquer obra antiga ganha interesse pelo simples facto de existir. À partida, este filme realizado por Fernando Garcia até prometia. Clássico a preto e branco dos anos 50, baseado num conto de Eça de Queirós, com um cuidado notável nos cenários que nos transportam para o Portugal medieval. O décor acaba por ser mesmo o mais interessante do filme, reflectindo a visão romantizada da idade média propagandeada pelo estado novo. O mesmo estilismo que infecta o padrão dos descobrimentos, as celebrações medievas da exposição do mundo português ou a estátua de Afonso Henriques em Guimarães é o que caracteriza os cenários e vestuário do filme, se bem que o matte painting não se esforça muito por ser realista. Mas estas imperfeições dão aquele encanto aos filmes de terror que tanto atrai os cinéfilos. A história é interessante, com um nobre ciumento, uma dama vitimizada e um garboso cavaleiro a formar um muito púdico triângulo amoroso, que um enforcado ao serviço de uma santa irá salvar. O que descarrila e torna quase insopurtável o filme é o estilo de representação, obsoleto já na época em que foi filmado. Os actores não representam, declamam com ímpeto as falas num português elaboradérrimo enquanto assumem poses hieráticas. Nem o zombie/enforcado se safa. Nunca vi criatura do além tão eloquente, articulada e gramaticalmente erudita. Estátuas com voz off fariam o mesmo efeito, até nas imóveis cenas de acção. O filme é mau, são duas horas de bocejo contínuo e ditos eloquentes. Parece que após este filme a produtora faliu e o realizador nunca mais voltou a filmar. Não admira, e creio que também tão houve grande perda. Foi visto pelo que é, uma referência histórica do cinema nacional de género. Algo que, como já observei, é tão raro que até um mau filme se torna intrigante.

Open Windows: A sinopse apelidava este filme do espanhol Nacho Vidalongo de "janela indiscreta do século XXI". Talvez o comparar com um clássico de Hitchock seja exagero, mas a ideia é certeira. A história tem um ritmo alucinante de plot twists em sucessão rápida, mas é no tema e na estética que o filme se torna realmente num hino visceral ao voyeurismo. O conceito de uma actriz seguida e envolvida numa trama complexa com hackers black e white hat acerta em cheio no hipervoyeurismo mediatizado das celebridades. Mas é na estética que o filme deslumbra, apostando num registo hipermoderno onde o ecrã cinematográfico se desmultiplica em múltiplas janelas, misturando imagem real com janelas de programas e fluxos de vidovigilância, chegando até à reconstrução do real em visão computacional a partir de múltiplos pontos de vista capturados por uma infindade de lentes, algo que visualmente funciona como um quadro cubista em movimento.

Witching & Bitching: Alex de la Iglésia dispensa apresentações como um dos grandes cineastas de terror espanhol. O seu mais recente filme não segue, no entanto, o susto visceral como caminho. A estética do horror está lá, entre o suspense e o gore, mas o objectivo é fazer rir os espectadores. O que resulta num filme diveritdo, a brincar com os problemas dos homens e das mulheres com um grupo de criminosos desastrados a envolver-se com um bando de bruxas muito à antiga nos vales tenebrosos do país basco. Visualmente espantoso, cheio de momentos de delírio surreal, mas a deixar uma certa sensação de humor forçado. O toque genial está na criatura adorada pelas bruxas. Não um fálico satã, ou uma elegante súcuba de estonteante beleza, mas uma vénus pré-histórica, gloriosa no grotesco das suas carnes volumosas. Belíssimos efeitos especiais, horrores a fazer rir e uma mestria assinalável no jogo de equilibrismo com os ícones e lugares comuns do género e o inevitável toque de Goya no momento fulcral.

Stage Fright: Nisto das sessões de encerramento a minha referência está no ano em que o perturbador e violento American Mary reduziu ao silêncio a plateia do S. Jorge. É difícil repetir um momento desses. O filme que encerrou o festival este ano seguia por outros caminhos, que se têm vindo a fazer notar nas várias edições do MOTELx. A abordagem ao terror segue com profunda ironia e bom humor. Stage Fright pode ser descrito como um cruzamento entre os slashers clássicos dos anos oitenta com psicopatas de facas afiadas à solta em acampamentos de jovens e as comédias musicais delicodoces ao estilo de Glee. Aliás, sendo preciso, se se misturar Glee com Friday the 13th com pitadas de Scary Movie, Phantom of the Opera e uma piscadela de olhos a Carrie já transmito a noção do que é este filme musical de terror. Sim, leram bem, um musical que ironiza a estrutura narrativa do género de filmes e séries em que um grupo de inadaptados se sublima através da música e dos palcos com doses fortes de terror gore que também ironiza as tropes do género.

Aproveitar o MOTELx para uma dose forte de filmes de terror tornou-se uma espécie de ritual pessoal de arranque de ano lectivo. Enquanto o sangue e as vísceras escorrem no ecrã vou-me lembrando da absoluta normalidade do dia seguinte. Pessoalmente acho que é uma excelente forma de carregar baterias mentais antes de um novo ano de aulas.