Alec Nevala-Lee (2018). Astounding: John W. Campbell, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, L. Ron Hubbard, and the Golden Age of Science Fiction. Nova Iorque: Dey Street Books.
Nunca é boa ideia aprofundar a biografia das figuras de charneira que respeitamos. Acaba-se sempre por perceber as suas falhas pessoais, e isso pode diminuir a forma como os vemos. É sempre complicado perceber que os nossos ídolos têm pés de barro, e podemos lidar com isso de duas formas. A simplista e redutora, em que tentamos apagar a sua memória e diminuir os seus contributos; e a complexa mas correta, que assume que as pessoas que influenciaram estéticas e criadores eram, antes de tudo, humanas, logo imperfeitas, incoerentes, capazes do muito bom e muito mau. Nos últimos tempos a tendência parece pender para a forma intelectualmente mais confortável, especialmente nos excessos da cultura de cancelamento, em que se uma dada personalidade cai no desagrado público é condenada à ostracização e esquecimento. Esta é uma posição simplista, que rejeita a obra apenas com base nas imperfeições da pessoa, e um tremendo erro cultural. Não seguir estes caminhos é raro, e desafiante.
Esta biografia de John W. Campbell tem esse condão. A importância do lendário editor pulp da Astounding (e outras revistas) é fulcral na história da ficção científica. Não é exagero dizer que toda a estética clássica da FC parte do seu trabalho editorial. Wells e Verne mostraram caminhos, mas foi o sentido de editor de Campbell que guiou escritores que se tornaram nos nomes de charneira do género no sentido de escrever histórias onde a aventura acéfala ficava de parte, com o seu cerne constituído por especulação técnica e científica, mesmo que o texto fosse sobre empolgantes aventuras no espaço.
Claro, podemos discutir a validade dessa estética, que evoluiu para as vertentes mais complexas da HardSF. O pulp campbelliano restringe-se aos cientistas e heróis de tez branca, que entre as invenções do presente ou as especulações do futuro resolviam problemas com ciência e tecnologia. De fora ficou a diversidade de género, ou a visão social da FC. Não me parece que isto seja inerentemente criticável. Em parte, estas limitações eram consonantes com o espírito do seu tempo contemporâneo. E, talvez mais essencial, construíram o caminho que permitiu à FC escapar-se ao grilhão das historietas de aventura para adolescentes e se tornasse o género complexo e vibrante que hoje é. Outras literaturas de género não o fizeram, e ou se extinguiram (em parte porque os tempos evoluem, e hoje não nos divertimos com as peripécias de pilotos de biplanos, por exemplo), ou se tornaram estereotipadas, onde as histórias se lêem como uma aplicação chapa 5 das estruturas e estéticas, com resultados previsíveis e banalizados (suspeito que me vão bater por expressar isto, mas é a opinião que tenho sobre géneros com o romântico ou o policial).
Nevala-Lee vai longe no traçar da vida e influência de Campbell, desde os seus começos como editor até falecer. Mostra a sua importância, a forma férrea como trabalhava com os seus autores, como os conduzia e guiava no sentido que ele julgava ser o mais adequado. Se este direccionismo nos parecer excessivo, é graças a ele que temos autores como Heinlein ou Asimov, e tudo o que partiu deles. Mostra, também, um progressivo endurecimento à medida que envelhece, chegando a desmascarar algum racismo e misoginia. Descartar estas expressões como mero espírito do tempo é insuficiente, e esquece que os tempos melhoram porque as pessoas evoluem.
Se Campbell é a figura central desta biografia, o livro detalha as personalidades pessoais e literárias, bem como as relações, entre três das suas maiores criações, escritores que com as suas directrizes, evolouiram para se tornar autores fundamentais, ou, num caso, pontos muito baixos do género. Falamos de Isaac Asimov, Robert Heinlein e L. Ron Hubbard. O retrato de Asimov é piedoso, mostrando-o como um rapaz algo isolado de Nova Iorque que se tornou cientista mas desabrochou enquanto escritor. Um homem de ideias interessantes, escritor prolífico e essencial da FC, mas longe de ser perfeito - a forma desrespeitosa como tratava as mulheres não é esquecida ou menorizada (no fundo, mais por mostrar não ter noção do errado que era o seu comportamento). Heinlein é tratado com respeito, apesar do seu resvalar de conservadorismo excessivo, mostrado como um autor que sempre se superou, com profundas preocupações de progresso social.
Já quando a Hubbard, Nevala-Lee arrasa-o (suspeito que tenha ganho inimigos entre os cientologistas). Mostra-o como um mau escritor que é acima de tudo um consumado vigarista, sempre metido em esquemas e falsificando os detalhes da sua vida. Fundar uma seita de contornos religiosos é o corolário óbvio da desonestidade, e o que surpreende é a forma como o sagaz Campbell se deixou enredar nessa teia pseudo-científica, bem como a incapacidade de perceber a aura de falsidade que envolvia Hubbard.
As histórias pessoais destes autores e editor cruzaram-se numa fiação complexa. As suas relações não foram meramente profissionais, houve amizades, ódios, amores e traições. O livro traça também um retrato do emergir do fandom, e, novamente, não é um retrato simpático. Mostra que a cultura tóxica e o predomianr de personaldiades acintosas, algo que hoje contamina a cultura dos fãs, esteve presente desde o primeiro momento em que os primeiros fãs de FC se juntaram em sociedades e convenções, com lutas internecinas e tremendos choques de personalidades.
Se admiram cegamente Campbell e os escritores clássicos da FC, não vos recomendo esta biografia. Vai mostrar-vos a complexidade das suas personalidaes, e expor os seus muitos defeitos de personalidade. Não vão conseguir deixar de pensar que esses defeitos condicionaram algumas das bases conceptuais da FC (não por acaso, movimentos futuros, como a New Wave, afastaram-se conscientemente das estéticas e temáticas clássicas). Mas, talvez o importante é não ser intelectualmente simplista e redutor. Estas figuras não foram perfeitas, o seu trabalho também não. Mas foram decisivas para a evolução do género. Sem Campbell, Asimov ou Heinlein (e outros, menos falados mas também importantes), não teríamos a FC enquanto género literário evoluído que temos hoje (no resto da cultura pop, como no audiovisual, a evolução foi menor). Ou, talvez sequer nem tivessemos ficção científica, com as velhas histórias de aventuras no espaço relegadas para o esquecimento, ao lado dos contos empolgantes de pilotos de biplanos nos ares, ou de aventuras de cowboys no velho oeste.