quinta-feira, 17 de outubro de 2024

La Reconquista contada para escépticos


Juan Galán (2022). La Reconquista contada para escépticos. Barcelona: Planeta.

Um olhar, acessível mas profundo, para a época em que a península ibérica foi islâmica, até à sua extinção às mãos castelhanas. O livro procura dar uma visão abrangente da história que se convecionou chamar de reconquista cristã da península, mergulhando com a profundezas possível numa obra de largo espectro nos detalhes históricos, mas não deixando de apresentar uma visão crítica que assinala a carga ideológica que o mito da reconquista tem - e se ele por cá tem alguma, na Espanha franquista a coisa adquiriu laivos de mito fundacional, deturpando a realidade histórica.

O livro inicia, como não poderia deixar de ser, com a queda do reino visigótico, cujas lutas internecinas abriam caminho à invasão moura. Curiosamente, a forma como uma entidade politica é conquistada devido às suas desuniões internas espelha a erosão do Al-Andaluz, com os reinos cristãos a aproveitar-se da falta de noção de unidade nacional moura e a manipular os múltiplos estados rivais, ou as facções que lutavam pelo poder, no que era essencialmente uma unidade cultural e religiosa, mas não política, dado que o clã e a tribo assumiam maior importância do que a ideia de uma nação unificada. Mostra também como a queda visigótica foi facilitada pelo tipo de estrutura política - um estado sujeito a clãs religosos e tribais, muitos dos quais não hesitaram em aliar-se aos invasores para obter vantagens, e uma população largamente alheia, que não vê grande diferença entre o jugo visigótico e o islâmico, aliás até o parece preferir, dadas as políticas fiscais visigóticas.

Não que os reinos cristãos fossem mais unidos (e vivemos no país que prova isso, sempre a esquivar-se à integração com o poder hegemónico espanhol). Este livro também trata dessas histórias, dos intensos jogos políticos e militares entre reinos cristãos, culminando na hegemonia castelhana que absorveu, entre política dinástica e vitória militar, os restantes reinos e territórios cristãos, exceto Portugal, para criar a entidade política e territorial espanhola.

O retrato da Ibéria islâmica é profundo, com o autor a mostrar-nos um mundo complexo, por um lado brilhante na alta cultura e comércio, por outro vulnerável aos impulsos retrógrados do fanatismo religioso, e sempre dilacerado pelos jogos de poder tribais ou de homens ambiciosos, mesmo no limite da sobrevivência. É tocante perceber que, por exemplo, nos últimos anos do reino muçulmano de Granada, o último reduto do Al-Andaluz, os aspirantes a emir preferiam disputar-se em guerras civis enquanto sofriam a pressão sistemática do reino castelhano. 

Também nos mostra a permeabilidade da religião, contrariando a visão binária da reconquista como uma guerra entre duas religiões. Essa visão é confortável pela sua simplicidade, e ajuda a justificar acontecimentos, mas a realidade é mais complexa e fluída. As fronteiras eram porosas, e as relações entre reis cristãos e emires islâmicos uma teia que incluia vassalagens, casamentos e alianças. Não foi uma luta ideológica, ou melhor, a luta ideológica foi o pretexto para séculos de guerra onde se forjou a Ibéria moderna. Ao nível do povo, esta fluidez religiosa era especialmente notória. Se a religião se confunde com o estado, faz todo o sentido que o povo adopte a religião dos governantes, e se mova entre religiões de acordo com as oscilações territoriais. Só os fanáticos se mantém plenamente fieis, e isto, é um toque de profunda natureza humana na história. Fica claro, na leitura, que o melhor argumento para a conversão dos povos ao islão, ou à cristandade, era fiscal - aqueles que não professassem a religião oficial ficavam sujeitos a impostos e tributações mais pesadas.

Apesar do largo espectro temático, este livro é uma leitura que não se consegue pousar. O estilo é leve, rigoroso, crítico e com alguns toques de humor. A leitura é complementada por inúmeras notas de rodapé, que complementam os temas gerais com detalhes, ou contando histórias do passado.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

The Singularity


Dino Buzzati (2024). The Singularity. Nova Iorque: NYRB Classics.

Descobri este livro através de uma crítica do Guardian, partilhada por Warren Ellis na sua newsletter, que o apontava como uma curiosa visão precursora das nossas atitudes contemporâneas face à IA. Não sendo um livro estritamente de ficção científica, dado que Buzatti foi daqueles firmes escritores mainstream com alguns recortes de fantástico na sua obra, intrigou-me a descoberta da sua visão.

É uma leitura curta e rápida, simples de resumir.  Um modesto professor universitário é desafiado a integrar um projeto misterioso, numa zona militar remota. Tão misterioso, que só quem trabalha diretamente nele ou os militares que guardam a zona sabem do que se trata. Os militares e responsáveis governamentais que aliciam o humilde professor desconhecem o projeto para o qual fazem o convite. A primeira parte do livro é uma piada kafkiana, com o académico a tentar perceber exatamente onde é que se meteu, sem que ninguém lhe consiga contar nada dada a profundidade do segredo.

Será ao chegar ao núcleo interno da zona militar (o segredo é tão protegido que os guardas das zonas exteriores sabem o que estão a guardar) que o académico descobre a sua missão: trabalhar no desenvolvimento de uma inteligência não humana, espalhada por um vasto complexo de computação e sensores que se espraia ao longo de quilómetros. Uma mente eletrónica que habita um computador, capaz de sentir, experimentar e raciocinar.

Se estão a ver aqui uma visao ficcional ao estilo dos anos 60 da inteligência artifial assente em supercomputadores, não estão enganados. Buzzati segue as tropes esperadas, dos cientistas apostados em fazer nascer uma entidade inteligente cujo corpo se compõem de processadores e sensores, às especulações sobre se uma entidade que hoje chamaríamos de digital é capaz de sentir, sonhar, de ter consciência.

Mas o autor vai ainda mais longe, e desvenda-nos o elemento chave deste computador inteligente: um núcleo, que foi programado com a personalidade de uma mulher. Segue os desejos de um dos investigadores, cuja primeira esposa morreu após o ter traído, e que manifesta a sua obsessão pedindo ao cientista encarrgue de desenvolver o núcleo da inteligência que espelhe a personalidade da falecida. Basta ver o campo emergente das apps de companhia/virtual girlfriend via IA, bem como a forma como muitos utilizadores se relacionam com os LLMs, para perceber que Buzzati anteveu uma das formas como antropomorfizamos a IA. Uma antevisão que, claro, está mais baseada em tendências milenares da alma humana do que em previsão futurista, algo que este livro não é.

O final é intrigante, com a inteligência humana artificializada a urdir esquemas para ser morta. Replicar a mente de uma mulher em corpo de máquina leva-a a enlouqecer, o que em si é uma curiosa reflexão sobre a forma como entendemos a dualidade mente-corpo, mostrando o quão a nossa fisicalidade faz parte da nossa consciência.  E, num retoque frankensteiniano, Buzzati mostra como a obsessão humana pode gerar monstros inocentes. A tradução inglesa do título original, Il grande ritratto, remete para temáticas em que o livro não toca.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Crónica de D. João I


João Santos, Filipe Abranches (2024). Crónica de D. João I. Levoir.

Convenhamos que o texto de Fernão Lopes, uma das obras seminais da historiografia portuguesa, não é dos mais fáceis de adaptar. Transformá-lo numa história ultrapassaria em muito o âmbito das páginas definidas para esta coleção, e nota-se no trabalho de argumento a vontade de sintetizar o texto original à sua essência. A opção foi transformar a obra em grandes quadros sintéticos, com o trabalho de ilustração a sublinhar o conteúdo das palavras.

Filipe Abranches ilustra, e o seu estilo gráfico não é confortável. O seu registo não se resume à mera ilustração, dando um caráter expressionista à vertente histórica. Não consigo desassociar as escolhas gráficas da interpretação e influência vindas da ilustração e pinturas decorativas da segunda metade do século XX português, que cruzavam o modernismo suavizado com a exaltação de uma visão restrita da história portuguesa. Algo que noto nas composições das pranchas e nas escolhas de cor. Claro, uma eventual influência que o desenhador tritura sob a sua visão pessoal, dando-lhe um forte cunho expressionista.

domingo, 13 de outubro de 2024

URL

 



Jim Burns, Venus Prime, 1980’s
: Cenas old school.

The year is 2149 and …: Um curioso exercício especulativo, que imagina diferentes visões para o ano de 2149.

The Best Alternate History Novels, recommended by Harry Turtledove: Os livros que influenciaram aquele que é um dos maiores autores dentro do género história alternativa.

Sol – Diogo Carvalho: Uma proposta intrigante de BD e ficção científica em português. Espero descobri-la no Fórum Fantástico.

The Word for World Is Forest: O ponto sem retorno: Análise a uma obra clássica de uma das mais influentes autoras de Ficção Científica.

Elon Musk Seems to Have Completely Missed the Point of "Star Trek": Os valores Trekkie estão nos antípodas do sistema de crenças do bilionário space karen. Sempre foi assim. Ou pensavam que Star Trek era giro por causa do capitão Kirk à porrada com lagartos mal amanhados?

15 recent sci-fi comics that are changing the genre: Há aqui excelentes sugestões de leitura, e sim, We3 é um livro que puxa as lágrimas.

The Scarlet Samurai: Orientalismos.

Spotting AI Fakes: Can Art Historians Help?: O papel do olhar treinado do historiador de arte na detecção de imagens falsas.

AI Doomers Had Their Big Moment: Em parte, porque os colapsos económicos e civilizacionais via IA não aconteceram, a tecnologia não é assim tão fantástica. E em parte porque o uso de IA generativa se normalizou, tornou-se parte das nossas ferramentas digitais.

What Is ‘Model Collapse’? An Expert Explains the Rumors About an Impending AI Doom: Os riscos trazidos pelo esgotar de dados gerados por humanos usados no treino de IAs, e o crescimento de dados sintéticos, ou seja, dados gerados por IA usados para treinar outros modelos.

How ChatGPT Is Transforming Blind People’s Relationship With Visual Art: Usar o LLM para descrever obras de arte permite aos portadores de cegueira apreciar as obras.

The Art-Science Symbiosis: A relação entre arte e ciência, quer na forma como a arte ilustra o conhecimento científico, quer no uso de metodologias e ideias científicas como forma de exploração artística.

New AI model can hallucinate a game of 1993’s Doom in real time: Um projeto interessante, que mostra o potencial da IA generativa no desenvolvimento de jogos.

AI Open Competition “Reads” Long-Baffling Scrolls From Pompeii: Recordar o projeto que está a conseguir o impossível, decifrar os livros carbonizados da biblioteca de Herculano.

Stranded Astronauts and the Biggest Disruption In Business History: O falhanço humilhante da Boeing com a Starliner, visto sob a perspectiva da evolução das organizações empresariais.

Will "coding" AI be seen as a part of essential education, just like English or Mathematics?: Interessante a pergunta, e especialmente as respostas, que nos mostram que a compreensão profunda da programação e IA não serão para todos, a grande maioria vai-se contentar em usar ferramentas com interface de uso fácil.

Doom Running on a Neural Network Is a Surreal Dreamscape: Se virem o vídeo, o que surpreende é a fidelidade com que a rede neuronal treinada em screenshots de Doom recria os cenários. É como se fosse um motor de jogo virtual.

Studios are cracking down on some of the internet’s most popular pirating sites: A pirataria parecia um tema ultrapassado com o surgimento do streaming, mas a multiplicação de serviços e encasulamento de conteúdos levou ao seu renascer. Por um lado, a pirataria erode a economia criativa. Mas, por outro, é demasiadas vezes a única forma de aceder a conteúdos que os serviços depreciam.

Military driver arrested for creating fake AI sex abuse images—but using real kids he knew: Um exemplo profundamente perturbador do mau uso que pode ser dado à IA Generativa. Mas note-se, isto não é ónus sobre a tecnologia, e o comportamento já era criminalizando independentemente da existência destas ferramentas.

Was an AI Image Generator Taken Down for Making Child Porn?: Chama-se a isto cidadania digital, analisar as tecnologias e os seus impactos, e tomar medidas concretas.

Brazil bans X: all the latest news: Parece impensável, mas aconteceu. A plataforma foi barrada pelo seu incumprimento de ordens judiciais legítimas. 

The Problem with AI: Não é que a IA Generativa seja desinteressante, inútil ou não abra novas possibilidades. Mas já se percebeu que vão estar muito longe das mudanças tectónicas prometidas. E pior, estão a tornar-se exemplos de má automação quando aplicadas na economia.

Post-apocalyptic education: Este artigo, muito certeiro, sobre o problema da cábula via IA generativa na educação atreve-se a dizer aquilo que raramente se diz, quando se fala de educação. É que a maior parte dos alunos não está minimamente interessada em aprender (não tem a ver com irresponsabilidade e idades, até porque é algo que se manifesta com muito maior visibilidade quanto mais velho é o aluno). Para a maioria dos que frequentam cursos e estão na escola, a educação é um meio para obter um canudo, uma certificação, ter uma nota. E para isso, não é preciso nenhuma dedicação à aprendizagem e espírito crítico, que são as duas ideias românticas que sustentam o nosso conceito de educação.

AI's impact on Philippines, the world's call center capital shows what's to come: Rastrear o impacto dos LLMs na indústria dos call centers. Em suma, sim, quem gere esta indústria vê nos chatbots a solução para cortar custos com pessoal.

All the Ways Everyday Gadgets Injured Us Last Year: Bem, não precisamos de revolta das máquinas para que estas dêem cabo de nós. Geralmente, por incúria nossa (e, no caso dos vibradores, algo mais).

Chatbots Are Primed to Warp Reality: Os riscos de filtrar a informação por ferramentas que são atreitas a erros e alucinações.

NaNoWriMo endorses AI, faces backlash, and struggles to clarify: Espera, um evento que anima quem gosta de se expressar pela escrita, a abraçar a IA generativa textual, no seu elementar uma forma de escrever com muito baixo esforço? Isto, perante amantes ferrenhos da escrita? O que é que poderia correr mal?


Flight Girl: Quando voar numa companhia aérea prometia romantismo.

China’s new stealth warship unveiled in leaked images: Não parece especialmente arrojado, e é muito similar ao que os estaleiros ocidentais já produzem.

El negacionismo ha llegado a uno de los últimos rincones de la ciencia aún libres de él: las gafas de ver: Da cegueira mental à cegueira real. You can't fix stupid, e a coisa alastra.

España desayuna poco y mal. La buena noticia es que bastan un par de consejos para llevarnos al siguiente nível: Confesso que do lado de lá da fronteira, sou fã do clássico tostada com acete, tomato e jamón. 

Scaled Composites’ Model 437 Vanguard Has Flown For The First Time: Se há algo que esta boutique de aeronáutica avançada nos permite esperar, são projetos inesperados.

Your Name In Landsat: Um webtoy divertido - uma pesquisa de imagens Landsat que nos devolve acidentes geográficos que formam as letras do nosso nome.

This interactive op art will spank your eyeballs and twist your synapses: Experimentem, mas não me responsabilizo por efeitos secundários.

Fragments of Previously ‘Lost’ Euripides Tragedies Have Been Translated: Do fascínio de ler palavras que se julgavam para sempre perdidas.

En Países Bajos, los parques eólicos instalados en medio del mar sirven para algo más: cultivar algas: Belíssima, a expressão agrovoltaica, ou seja, aproveitar o espaço de estações fotovoltaicas para agricultura.

Employee Found Dead in Cubicle After Apparently Dying There Days Earlier: Agruras do late stage capitalism, e indícios de um ambiente laboral tóxico.

Name that Aesthetic: The Romance and Ruins of Lost Civilizations: Pessoalmente sempre vi os capriccios como elementos da estética barroca, e não como um movimento per se.

Portugal está buscando un nuevo incentivo para su economía: ser el mejor país del mundo para relocalizar la producción: É daquelas notícias que se lê com sentimentos mistos. Por um lado, é uma oportunidade económica. Por outro, só é possível porque somos um país de boas infraestruturas mas de baixos salários, e é esse o fator que atrai este tipo de investimento.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Manhãs de Alice (2015-2024)

É preciso um masoquismo especial para se gostar de cães. A princípio é tudo muito bonito, os cachorros são uns fofos com aquele olhar terno, mesmo quando nos roem tudo o que podem cá em casa.

Depois crescem, e tornam-se companheiros de viagem e aventura, de passeios e caminhadas. Transformam o regresso a casa no fim do dia numa festa. Abraçamo-los quando estamos alegres, mas também quando estamos tristes.

E, de repente, damos por nós a perceber que o tempo passou. Que se o olhar é o mesmo, o corpo já cede. Deparamo-nos com o impensável pesadelo de dar descanso àqueles que durante anos, caminharam ao nosso lado.

No caso da minha Alice, o fim chegou mais cedo, induzido por um cancro que tirou anos de vida à minha querida cadela.

Lutou-se, esquecendo as despesas elevadas (mas temos uma veterinária sensata, que sempre equilibrou a qualidade do serviço que presta com o que cobra) e as dificuldades em encontrar alguns medicamentos necessários (o que se torna ainda mais chocante ao perceber que são medicamentos de uso oncológico humano, mas não suficientemente lucrativos para as farmacêuticas). Adiámos o inevitável por uns meses, com a esperança não em cura, mas estabilizar de doença crónica.

Mas o corpo não aguentou. O sorriso continuava o mesmo, o olhar denotava cansaço, mas o corpo cedeu. 

Chegou o momento do inevitável, e só não dei antes esse passo porque gostaria que ela seguisse para o descanso rodeado das pessoas de quem mais gosta.

Hoje, foi a última manhã de Alice.

Por imenso que custou, com tudo o que dói, estive ao lado dela, a fazer-lhe as festas de que tanto gosta. Adormeceu enquanto lhe segurava a cabeça, senti um último suspiro. 

Se ela sempre esteve ao meu lado, em bons e maus momentos, não podia fazer de outra maneira, doa o que doer.

É um buraco enorme no coração.

"É só um cão", diz-se. "E arranjas outro", confortam. Mas nunca é só um cão. E certo, claro que cá em casa haverá lugar para outro, futuro companheiro de aventuras e dia a dia.

Mas quem tem cães, sabe. Há sempre outro. Mas não para substituir o que nos deixou. Os que nos deixaram ficam para sempre nas nossas memórias. Não se substituem. Temos é coração largo para albergar novas memórias.

E. como somos masoquistas, sujeitamo-nos novamente ao ciclo. Sabemos como começa, sabemos que termina, que o tempo nunca será o suficiente.

Não há lógica, não é sensato. Mas é humano.

Ontem, a minha Alice ainda tinha umas horas de vida. 

Deitei-me no chão, ao lado dela, a mimá-la.

Não havia, nesse momento, nada mais importante.

Hoje, a Alice teve ainda uma última manhã. Estava fora de questão ficarmos em casa a definhar, a fazer horas à espera da morte no consultório. Metemo-nos no carro e fomos à Ericeira. Aí, vi um vislumbre da antiga Alice, antes da doença a corroer, alegre a correr nas Furnas e a ladrar às gaivotas. Cheguei a pensar que me estava a precipitar, que ainda havia vida naquela cadela. Mas recordei-me que não conseguia comer há uma semana, exceto o que lhe forçávamos na garganta com uma seringa. Que passou os últimos dias nas lajes frias da casa, apática. Que uma saída à rua era em modo trôpega. 

Tínhamos de ir à praia. Sob chuva torrencial, percorremos a Foz do Lizandro e S. Julião. Não deu para ela sentir o areal nas patinhas. Parámos na Samarra, para ela cheirar novamente o ar silvestre sobre a enseada. No regresso, connosco no silêncio pesado de quem sabia que era a última viagem da Alice, passeámos na aldeia da Mata Pequena. Um último passeio, por locais onde, noutros tempos, até muito recentes, muito caminhámos, passeámos e brincámos. 

A Alice tinha de partir com memórias felizes.

Faleceu com a cabeça encostada na minha mão, senti o suspiro. Nunca iria abandonar a minha companheira de aventuras nesta última aventura. Restam as boas memórias.

As fotos são já dos tempos de luta contra a doença, até mesmo a última que lhe tirei, ainda esta semana. Recordam que, apesar de estar condenada à partida, valeu o combate. 

Hoje, no passeio final, decidi que não haveria mais do que a nossa memória.

Devo um enorme agradecimento à Dr.ª Lara Pires e à sua equipa da Bichos & Companhia (Malveira), por tudo o que fizeram pela Alice ao longo dos anos. O linfoma venceu, mas a luta proporcionou-lhe um último verão, bem vivido com muitas caminhadas, praia, lagoa e mimos. Não se pode pedir mais. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Embrechados


Conde de Sabugosa (1974). Embrechados. Lisboa: Livraria Sam Carlos.

Textos e crónicas de um tempo que já passou, escritos no tom floreado da viragem do século XX. Os significados de alguns destes textos estão perdidos para nós (a menos que se seja historiador ou investigador de literatura), outros, com apontamentos históricos, têm o seu interesse. Vale a pena recordar o nosso passado literário, provar os discursos e modos de pensamento que hoje nos soam arcaicos, mas que são marcos no caminho da evolução das ideias.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Un museo de curiosidades


Rafael Sabio González (2016). Un museo de curiosidades. Guía alternativa del Museo Nacional de Arte Romano. Mérida: MNAR.

Um excelente companheiro para ajudar a recordar uma visita ao Museu de Arte Romana de Mérida. A partir das suas principais peças, oferece-nos um périplo pela história da antiga Emerita Augusta, pela sua riqueza arqueológica, pelas histórias que se sabem dos seus antigos habitantes, bem como pelo espaço do próprio museu. O tom é leve, mas com uma forte sensibilidade crítica, não se limita a descrever pormenores do acervo, procura trazer a História para o leitor.

domingo, 6 de outubro de 2024

URL


Heavy Metal (1981): Não sei porquê, mas ver esta malta pela frente é algo intranquilo.

Five Classic European Spy Novels, recommended by Patrick Worrall: Os mais marcantes livros de aventuras de espionagem.

Would the Airwolf helicopter have worked in real life? We got expert analysis: Bolas. Esta malta das engenharias é mesmo desmancha prazeres. Só falta virem explicar que é fisicamente impossível o carro do Automan fazer curvas de 90 graus (ok, esta é rebuscada, até para os meus padrões).

5095) A literatura e seus ismos (24.8.2024): Para lá dos ismos clássicos, há os ismos inesperados, feitos da obsessão de um escritor, ou elaboradas piadas intelectuais.

What pre-1985 science fiction are you reading? + Update No. XV: Leituras de Ficção Científica clássica.

Musicians Are Extremely Tired Of Obsessive Fan Behavior: O caso sério de sucesso viral que é Chappel Roan chocou os fãs recentemente, ao fazer uma manifestação de repúdio perante os excessos dos fãs. Não é caso único, e dou-lhe razão, se ser uma figura pública traz consigo o ónus da redução da privacidade, tem de haver limites. Pessoalmente, não consigo conceber como é que ser fã de um dado artista parece dar azo a exigências de extrema familiaridade.

Books about Pompeii: Redescobrir os segredos da tragédia que nos legou maravilhas da época romana.


I love the intricate 1984 box art for Atari’s Dimension X game - art by Timothy Charles Boxell: Cenas old school.

Man Arrested for Creating Child Porn Using AI: Não surpreende. E vai piorar, uma vez que se os serviços de geração online podem ter formas de impedir o uso de prompts criminosos, basta descarregar os modelos e usar os algoritmos offline para contornar todas as regras.

No one’s ready for this: O problema com estas ferramentas é que nunca serão usadas de forma inocente. Por um lado, há isto: "you create the moment that is the way you remember it, that’s authentic to your memory and to the greater context, but maybe isn’t authentic to a particular millisecond” (que é das mais certeiras observações que já li sobre o simples fotografar, todos editamos as fotos que tiramos, nem que seja pelo enquadramento que fazemos). Mas a banalização de ferramentas que permitem ir mais longe e criar visões totalmente idealizadas dos momentos fotografados terá um enorme impacto na forma como aferimos a veracidade do audiovisual. Atenção, não há aqui nada de novo, falsear imagens é tão antigo como, provavelmente, a pintura rupestre, o que muda é a facilidade e intensidade.

I uncovered 8 cool ways to use LiDAR on an iPhone and iPad: Fotogrametria via lidar é algo que adoro fazer, mas o sensor do iPhone permite mais brincadeiras.

El Gobierno prohibirá las facturas en Word, Excel o PDF: la facturación electrónica obligará a usar otros formatos: A lógica do XML, como forma de estruturar e controlar o fluxo de informação.

Are Copilot Plus PCs really the Windows alternative to Chromebooks?: Dado o preço dos Copilots, não sei se serão diretamente comparáveis aos computadores de baixo custo e capacidades básicas da Google.

Microsoft formally deprecates the 39-year-old Windows Control Panel: Pois, mas quem usa um PC a sério, sabe que o painel de controle é fundamental para a gestão profunda do computador. Está lá tudo, organizado, enquanto que as definições mal servem para gerir além do básico.

Microsoft says its killing Windows Control Panel - here's why I'm not holding my breath: Spot on. O painel de controlo é demasiado bem amado por quem está nas trincheiras da informática para ser eliminado de chofre.

NASA will bring the Starliner astronauts home next year on SpaceX’s Crew-9 mission: E assim termina a triste história dos astronautas presos na ISS, com o retorno não na nave que os trouxe, mas na nave da empresa concorrente. Resta saber se a Starliner sobreviverá ao regresso à Terra. E, também, se a divisão espacial da Boeing será capaz de recuperar a sua credibilidade.

Hay una compañía sorpresa que nunca imaginaríamos que se ha metido en el mundo del cloud computing: Lidl: Espera, supermercados a entrar no negócio de serviços Cloud? Na verdade, faz todo o sentido - começaram por desenvolver uma solução para as necessidades internas, e perceberam que tinham mercado para além disso. Que é, se não me engano, aquilo que a Amazon fez. Com um pormenor interessante: a razão pela qual a Lidl precisou de desenvolver este tipo de solução prende-se com o cumprimento da lei europeia de proteção de dados.

Move over, text: Video is the new medium of our lives: Bem, não é exatamente novidade que o vídeo é o meio de expressão de eleição da época contemporânea. Desde que o YouTube deu os primeiros passos que isso se manifestou, e a democratização trazida pela conjugação de câmaras acessíveis nos telemóveis, simplicidade dos softwares de edição e plataformas de publicação alargou esse espectro.

Hello, you’re here because you said AI image editing was just like Photoshop: Uma análise aos medos despertados pela acessibilidade das ferramentas de edição de imagem baseadas em IA nos telemóveis.

Niantic aims to build a richer 3D map of the world with a new version of Scaniverse app: A Scaniverse a ganhar funções adicionais interessantes. Pessoalmente, prefiro-a para fotogrametria com Lidar a Splats, porque a malha poligonal gerada pela técnica de Gaussian Splat costuma ser cheia de imperfeições.

AI can run your blog while you Netflix and chill: Um blog de referência (bem, já teve dias melhores nos tempos áureos quando Cory Doctorow e Xeni Jardin faziam parte da equipa), a fazer publicidade a ferramentas de IA generativa para autopublicação de blogs, que automatiza aqueles textos que ninguém se quer dar trabalho a escrever mas, estranhamente, se espera que alguém os queira ler? Muito sus.


DC Comics’ 1977 SUPER DC Calendar, art by various: Com Solomon Grundy.

Russia reintroduces WWII Yak-3 fighter as AK-3 at Army 2024 exhibition: E a seguir, a British Aerospace revive o Spitfire MkIX? Piadas à parte, este revivalismo destina-se ao mercado das corridas aéreas.

As ruas de Lisboa que já foram palco de guerras: Lisboa, campo de batalha nas guerras liberais.

Story of an Undercover CIA Agent who Penetrated Al Qaeda: Arrepiante, este artigo sobre um agente secreto que se infiltrou profundamente numa das piores organizações terroristas. A capacidade de mimetização e a coragem desta pessoa são inacreditáveis.

La ciencia ha descubierto el ejercicio físico con más beneficios para el cerebro: caminhar: Confesso, tornei-me apologista deste tipo de exercício, e reconheço que sinto estes bons efeitos físicos e psicológicos do caminhar.

En Galicia han encontrado una forma propia de protestar contra la masificación turística: cruzar pasos de cebra sin parar: Se é verdade que o excesso de turismo é uma praga (e os lisboetas que o digam), por outro alguns destes protestos parecem ser de quem quer o dinheiro dos turistas, mas não quer ter de os aturar. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Comics: The Voices of Water; Ablaze Artist Spotlight Collected Set – Werther Dell‘Edera


Werther Dell'Edera, The Voices of Water.

Quando um homem começa a ouvir vozes quando está próximo de água, isso poderá significar algo de irreal ou sobrenatural, ou indícios de doença grave. Não serão as causas físicas que interessam, mas sim os efeitos mentais de se ouvir estranhas vozes. Sclavi sempre foi exímio a apontar a surrealidade da normalidade, a contar histórias onde o estranho acontece nos interstícios da banalidade. 

Francesco Artibani, Tizlano Sclavi, Werther Dell'Edera, Ablaze Artist Spotlight Collected Set – Werther Dell‘Edera 

O grafismo expressivo do ilustrador italiano está em destaque nesta edição, que colige dois dos seus trabalhos. Em He Who Fights With Monsters, somos levados à Praga da II guerra, numa história que revê o mito do Golem. Em The Voices of Water, o desafio gráfico é maior, num registo expressivo de linha sem cor. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A Conversão dos Nus


Nuno Ferreira (2024). A Conversão dos Nus. Vagos: Divergência.

Não resisti à apresentação deste livro no Fórum Fantástico 2024 (que não foi muito concorrida, infelizmente). Os livros no Nuno são para mim uma fonte de frustração. Confesso, já tentei várias vezes ler o Embaixada, mas ainda  não pegou. Não leiam isto como um comentário às suas capacidades literárias, é um escritor com fãs e um espaço bem marcado, é mais uma assunção da minha incapacidade de lidar com a fantasia épica. Bem tento, mas não é mesmo a minha cena.

Neste romance, o tom muda, e Nuno Ferreira oferece-nos uma história que cruza o romance histórico com fantástico. O destaque é dado ao Portugal sob domínio Filipino, e aos tempos de início da revolta que nos restaurou a independência. O lado fantástico é assegurado por manifestações de religiosidade que colocam o corpo e alma dos iluminados pela chama divina a nu.

A ação passa-se na aldeia fictícia de Mouta Alta, usada para elaborar um convincente e bem estruturado da vida no Portugal seiscentista. Acompanhamos um assassino a soldo, que leva a encomenda de matar o padre da aldeia, mas o enredo complica-se quando percebemos que o assassino nasceu na terra onde volta para matar. O resto, é uma sucessão de intrigas complexas, onde ninguém é o que parece, com consequências destrutivas para os aldeãos.

O mistério paira sobre uma igreja recém-construída, cuja inauguração dá aos conspiradores o mote para inicar a vaga de acontecimentos que irá arrasar a vila. A igreja torna-se um local onde quem entra, sai convertido à nudez, despoja-se de roupas e atavismos sociais, deixa para lá o respeito ao poder ecleciástico, e assume uma bondade natural. Algo que atrai as atenções da Inquisição, e terá consequências muito inesperadas ao longo da história.

Cruzando romance histórico com fantástico misticista, esta Conversão dos Nus é uma excelente leitura que nos mergulha em intricadas conspirações no Portugal seiscentista. Mistério e ficção histórica de mãos dadas, num livro que mostra uma outra faceta de um escritor normalmente mais focado na fantasia épica.


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Electronic Superhighway


Omar Kholeif (2016). Electronic Superhighway: From Experiments in Art and Technology to Art after the Internet. Londres: Whitechapel Gallery

Passou por cá em 2017, no MAAT, esta exposição que reusme de forma antológica diferentes vertentes da arte que se envolve diretamente com tecnologia. Electronic Superhighway trouxe obras de diferentes épocas e artistas, tendo como tema comum a reflexão sobre o mundo tecnológico e a procura de novas experiências estéticas mediadas por tecnologia. Reunia obras e registos representativos vindos de projetos como os Experiments in Art and Technology, que reuniram artistas contemporâneos e engenheiros dos Bell Labs nos anos 60, a lendária exposição Cybernetic Serendipity, trabalhos dos artistas algoristas Vera Molnár e Manfred Mohr, a net art dos anos 90, e as reflexões contemporâneas sobre internet, inteligência artificial e cultura digital. 

O catálogo recorda a exposição, que nos dá um panorama abrangente da forma como criadores enfrentam as implicações culturais e sociais da tecnologia, usando meios tradicionais, multimédia ou a apropriação de mecanismos, programação e robótica para explorar as suas ideias.  

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

domingo, 29 de setembro de 2024

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Here’s the full piece I did for @novaandmali’s project A Hitchhiker’s Guide to Art History!
: Visões espaciais.

Humans Are Killable. The Alien Franchise Isn’t: Mais uma iteração de um filme que começou por ser uma obra genial com duas sequelas divertidas, mas agora é uma vaca de leite sobre-explorado por uma indústria cinematográfica que se refugiou nos mercados da nostalgia.

Express Elevator: Das dificuldades em antever futuros, quer na ficção científica quer na análise tecnológica e social. Socorremo-nos de cenários simplificados, mas esquecemos que o mundo real é complexo e cheio de interrelações muitas vezes inesperadas.

Star Wars‘ New History Book Treats It as Exactly That: A Guerra nas Estrelas tratada como se fosse História, promete ser uma leitura fora do comum.

frances farmer will have her revenge: Rever a experiência old media dos meios físicos, recordando os bons momentos, mas sem desprezar as possibilidades dos media digitais.

Avatar, Théophile Gautier: Uma obra do fantástico francês, disponível para leitura digital.

Archie Comics Is Getting Back Into Superheroes, and Taking It Seriously: Ah, só faltava esta, o octogenário adolescente de Riverdale também vai ser super-herói. Curiosamente, a Archie Comics também tem um conjunto de personagens deste género, mas nunca teve grande sucesso.

First International Poster For Megalopolis Has Been Released: Confesso, estou curioso com este filme. Pode ser imensamente interessante, pode ser um flop. Mas quero vê-lo.

The Metamorphosis of the Mad Scientist: As origens e evolução da iconografia pop do cientista louco.

Top Ten Japan All Time Best SF Novels: Algumas das obras seminais da FC japonesa.

Someone Is Watching. Is It God, or Your Boss?: Recordar um filme clássico, e no processo, refletir sobre a normalização da hipervigilância na sociedade contemporânea.

The Best Sci-Fi & Fantasy Novels, as Chosen by Fans: the 2024 Hugo Award, recommended by Sylvia Bishop: Destaques dos nomeados para os prémios Hugo.

Ookla by Jack Kirby, possibly inked by Alfredo Alcala: Pós-apocalipse.

The race to save our online lives from a digital dark age: Os dilemas da preservação a longo prazo dos dados digitais. Formatos obsoletos, tecnologias desaparecidas, serviços que se extinguem são algumas das ameaças à preservação dos nossos textos, imagens, vídeos e outros traços culturais.

Procreate’s anti-AI pledge attracts praise from digital creatives: Mais um sintoma da rejeição, não da IA Generativa por si, mas das formas como esta tecnologia está a ser usada.

Relevance of AI Integration in Military Training: The Case of Mega-Army: É interessante ver que nas aplicações militares de IA, imperam as capacidades de análise de dados, muito longe da ia da prompt que deslumbra os mercados.

Deep-Live-Cam facilita criação de deepfakes em tempo real: Arquivar em "cenas a testar". Atenção, requer computador com boa capacidade.

La estrambótica idea de crear un «Twitter como servicio público gestionado por la UE» desmontada punto a punto con precisión quirúrgica: Bem, mas a ideia não é assim tão absurda. É-o, se nos mantivermos na ideia de plataformas fechadas e centralizadas, que são dificies de arrancar, manter e controlar. Mas há todo um universo de redes sociais abertas - o fediverso, das quais o Mastodon é o serviço mais conhecido. Aí faria todo o sentido uma instância oficial da UE, recordando que as instâncias são interoperáveis, ou seja, o facto de se ter conta numa não impede de se visualizar os conteúdos das outras redes, nem interagir com utilizadores que não pertençam à nossa rede.

Why Does AI Art Look Like That?: Em parte, a banalidade estética dos outputs visuais da IA generaitva explica-se pela própria tecnologia, e pelos dados visuais com que os modelos são treinados. Mas também por isto: "Perhaps this feedback is making its way into the model. If people are downloading art that tends to have really dramatic sunsets and absurdly beautiful oceanscapes, then the tools might be learning that that’s what humans want, and then giving them more of that." E, o dar às pessoas aquilo que elas querem, isso é uma definição de estagnação cultural. Mas este problema não é técnico, os geradores são ferramentas, tem mais a ver com as expectativas de quem os usa, normalmente mais interessados num fácil replicar do realismo artificial e banal do que em explorar novas estéticas. Pessoalmente, comparo a qualidade estética da esmagadora maioria do que vejo mostrado como AI Art às aguarelas dos reformados que se entretêm nos tempos lives. Até são giras, mas culturalmente insignificantes (e é também por isso que me deixei de usar geradores de imagem, reconhecendo a minha incapacidade em ir além do banal).

AI Cheating Is Getting Worse: Não há aqui grandes surpresas, todos os alunos que acham que se podem safar dos trabalhos tediosos e rotineiros usando IA vão fazê-lo. Isso tornou-se claro mal esta tecnologia deu os primeiros passos em público.

The AI photo editing era is here, and it’s every person for themselves: De certa forma, o ato de fotografar é em si irreal, procuramos contruir uma representação da realidade. Mas com adição de IA, podemos definir uma versão da realidade como queríamos que ela fosse, e não como realmente é.

There's a Problem With Rescuing the Stranded Astronauts: SpaceX and Boeing Spacesuits Aren't Compatible: A saga da Starliner continua. Agora, percebemos que caso os astronautas enviados para a ISS na cápsula da Boeing tenham de regressar numa Crew Dragon, será um processo complicado pela incompatibilidade entre fatos de astronauta. Todo este processo está a ser um tremendo descrédito para a Boeing.

AI-Created Cartoons For Kids Are Here (But The Kids Don’t Seem To Be Watching): Não surpreende, se a qualidade é baixa ou os temas desinteressantes, ninguém vai perder tempo a ver. Ou seja, como em muito do discurso à volta da IA generativa, os medos de despedimento generalizado de criativos perante a geração automática de conteúdos estão a revelar-se infundados. Mas o artigo também mostra como a IA generativa está a ser importante nestes domínios, como ferramenta integrada nos processos de trabalho dos criadores. No fundo, é isto, a IA Generativa é uma ferramenta que abre novas possibilidades, e não um fim em si mesmo.

It's Full of Stars: Cenas independentes.

Coisas irritantes que os lisboetas fazem: Como lisboeta que sou… confirmo! Felizmente, o ir estudar e trabalhar obrigou-me a sair de Lisboa e a conhecer, um pouco, a diversidade cultural do meu país. Aprendi que o Norte é todo um universo, e que a sua linguagem "colorida" está mais restrita aos autóctones da zona do Porto. Descobri que o viver na zona oeste me deu aquilo que os meus amigos nortenhos descrevem como um sotaque musical. Estas, e muitas outras, são calinadas clássicas que assentam num velho problema português: a macrocefalia da região de Lisboa face ao resto do país. 

The Panavia Tornado Turns 50 Today: the History of the Variable Sweep Wing Bomber: A história de uma aeronave clássica.

Italian Tornados: the Panavia Tornado in Italian Air Force Service: Os marcos desta aeronave, ao serviço da defesa italiana.

Biden tells creators they have something traditional media does not: ‘You’re trusted’: E, infelizmente, é uma observação certeira.

The Twisted True Love Story of Lady Betty Grafstein and José Castelo Branco: Confesso, não sou totalmente imune à personagem colorida do "socialite" que, diga-se o que se disser, tem tido uma vida interessante e colorida. Este perfil da Vanity Fair é uma delícia.

Back to School. Freedom at Last: É uma realidade que nós, professores, conhecemos bem, é nas férias que os pais percebem a chatice que é ter de aturar os filhos. Piadas à parte, esta é uma das funções sociais da escola, ser um espaço que permite às famílias ter o tempo para as profissões. O problema, é equilibrar isso, e em Portugal isso parece ser uma guerra perdida, com a visão da escola como depósito diurno de crianças, aplaudida por forças laborais que não apreciam que os trabalhadores tenham o direito de acompanhar as suas famílias.

Los romanos tenían una megaindustria que los ayudó a conquistar Britania: la de la cerveza y la sal: Dada a propensão inglesa para abusar da cerveja, quer sejam das pints por lá, quer das canecas debaixo do nosso sol escaldante, diria que os romanos vincaram bem esta marca cultural na antiga Britânia.

Saturn’s Ocean Moon Was Hiding in Plain Sight: Novidades fascinantes sobre os corpos celestes do nosso sistema solar.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Andam Faunos Pelos Bosques


Aquilino Ribeiro (1962). Andam Faunos Pelos Bosques. Lisboa: Bertrand Editora.

A fina ironia desta hilariante comédia de costumes é impressionante. Nas Beiras profundas dos inícios do século XX, as aldeias parecem estar a ser acometidas de estranho mal. Tudo começa quando uma jovem rapariga confessa ter sido abusada por estranha criatura, lesta, peluda e luxuriosa. Poderia ser uma efabulação que oculta uma violenta violação, mas o mal começa a espalhar-se pelas aldeias serranas. Diz-se que há bicho mau nas serras, que se aproveita dos púberes encantos das jovens pastoras e camponesas.

Mas a reação não é de medo. Para surpresa das comunidades, regidas pelos pacientes curas de aldeia, as jovens parecem procurar os encantos dos braços do tal bicho mau. De tal forma que se provocam tumultos e há revolta nas terras. A criatura é esquiva mas célere em provar os encantos das raparigas bonitas, para desespero das menos prendadas pela natureza, que bem se metem serra acima na esperança de serem tomadas pela lúbrica criatura que assombra os matagais.

Restam os guardiães da moral e bons costumes para repor a ordem: os tranquilos padres das aldeias, que vêem o tranquilo remanso das suas calmas vidas virado de pernas para o ar. Lá se vão os longos almoços bem regados após a missa dominical, os cuidados desvelados das mulheres da aldeia que vivem com eles, a quem lhes dão filhos que depois apadrinham como sobrinhos. Resta-lhes desenvolver esforços para repor a santidade do povo, dar caça à criatura, perceber se há demo à solta na serrania ou se é a expressão de uma outra mitologia, o silvestre fauno, que anda a desviar as meninas dos bons caminhos da virtude.

A história conta-se sob o ponto de vista dos padres, divididos entre a impotência para travar o que vêem com um mal que se espalha pelo povo, e as rotinas a que a sua vida de cura de aldeias os habituou. É aqui que reside a mais fina ironia do romance, uma tremenda crítica social e de costumes que disseca, com lâmina afiada, a vida no interior rural português do século XX, uma vida pobre, feita de atraso social e econónico, onda a palavra de padres fieis ao preceito "faz o que digo e não faças o que faço) é a lei. 

Apesar da aparente intrusão do fantástico, sob a forma do mito milenar que vem desviar a pureza das meninas bonitas, o romance foca-se no abalo às relações de poder trazidas pelo inconformismo das populações. Fica claro que não há demos nem faunos à solta pelas serras, que isso é uma desculpa para as raparigas poderem provar o sabor da natureza livre. E essa liberdade é o que realmente atemoriza os contemplativos curas, cuja dicotomia de vida é desnudada com bisturi certeiro, a sua cupidez, gula e lubricidade, que exercem livremente sobre as mulheres das aldeias que tutelam, enquanto pregam o credo da pureza divina. 

Ler este romance é um festim para o cérebro. A ironia, a comédia elegante, o profundo realismo do retrato das geografias e populações. As imagens da serra, das aldeias, formam-se na nossa mente com uma brilhante nitidez durante a leitura. Ajuda a isso a prosa elegante e complexa de Aquilino, useiro e vezeiro no uso de palavras e expressões fora do comum. Um sensual festim literário, onde o prazer da palavra impera.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Arquivo Morto


Fernando Lucas (2024). Arquivo Morto. Lisboa: Mighell Publishing/Fórum Fantástico.

O trabalho de Fernando Lucas é o grande tema desta antologia. Que, diga-se, suspeito que se torne um livro essencial da BD portuguesa. Reúne várias histórias deste criador, originalmente dispersas por outras antologias, fanzines e edições. O espectro do Fantástico paira sobre todas, tocando desde o horror clássico  (com um toque delicioso de humor negro) a um intrigante cruzamento Lovecraftiano com o Terremoto de 1755. Futurismo distópico, paradoxos das viagens no tempo e mistérios no espaço formam as histórias deste livro. As narrativas, curtas, são bem estruturadas e intrigantes, e o traço é sempre de um grande nível. Lucas pode não ser um dos nomes populares e bem conhecidos da BD portuguesa, mas esta antologia mostra que merece ser lido.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Art In History


Martin Kemp (2005). Art In History: 600 BC - 2000 AD: Ideas in Profile. Londres: IPS - Profile Books.

Uma visão abrangente do percurso da cultura artística, focada no desenvolvimento de ideias em determinadas épocas. Vamos da grécia antiga ao momento contemporâneo, passando pelos grandes marcos da continuidade artística. Kemp, profundo conhecedor da história da arte, mostra-nos como os conceitos artísticos se ligam intimamente às suas épocas. O formalismo greco-romano fez sentido nesse tempo, tal como hoje faz o conceptualismo experimental. A arte evolui por tendências e indivíduos que as sabem manipular, mas também de um intercâmbio de vanguarda que pega na crista da onda das ideias, das influências sociais e tecnológicas, sempre em busca de novos horizontes, conceitos e estéticas.