terça-feira, 5 de novembro de 2024

Portugal Romano


Jorge Alarcão (1974). Portugal Romano. Lisboa: Verbo. 

Guardando as devidas distâncias, dado que a edição é antiga e entretanto o conhecimento histórico e arqueológico já efetuou mais progressos, este é um livro abrangente que nos traça o panorama do que foi o nosso território na era romana. Traça a história da progressiva conquista romana das tribos que habitavam o espaço ibérico à invasão das tribos bárbaras. Mostra-nos a rede urbana romana, com as vias que a interligavam, e os espaços rurais que a sustentavam. Mostra, também, a coexistência de diferentes cultos religiosos, entre o culto imperial, a veneração aos deuses romanos, a sobrevivência e sincretismo das divindades das tribos pré-romanas que foram incorporadas como aspeto dos deuses colonizadores, e a influência dos cultos orientais, com especial destaque para o mitraísmo. 

Há uma certa ironia que nós, como povo colonizador que fomos, definimos grande parte do nosso caráter por termos sido romanos. Mas nunca o fomos, realmente, fomos povos e territórios colonizados por Roma, que nos legou cultura, leis e monumentos que ainda hoje valorizamos. Li de passagem, algures, que o império romano nunca nos deixou, realmente. A história mostra que foi absorvido pelas invasões bárbaras, mas os herdeiros do império, os povos colonizados, tornaram-se posteriormente colonizadores e espalharam a base da cultura clássica, legada por Roma, pelo mundo. O seu fascínio e influência ainda hoje perduram.

domingo, 3 de novembro de 2024

URL


Bruce Pennington's 1974 cover to Cults of Unreason, by Christopher Evans
: Salvação por Ovni.

Diálogo: De facto, a substituição da blogoesfera pelas redes sociais trouxe o desvanecer do diálogo textual entre bloggers. Confesso, desabilitei as minhas caixas de comentários, por não ter paciência para lá ir regularmente limpar o spam e aturar os trollzitos que de vez em quando iam lá verborrear. Mas, deixa-me que te diga, João: até me agrada este formato de troca de ideias, em comentário cruzado das nossas leituras e posts. Agrada-me particularmente por ser lento, em contra-ciclo com a economia da distração digital, que vive de constantes imediatos. Conto-vos um segredo (que já devem ter topado): há um hiato de quatro a seis semanas entre o momento em que escrevo as notas para os meus URL, e a sua publicação. Ou seja, vou certamente respondendo-te, e ao Luís, porque as vossas ideias merecem sempre discussão, mas em modo lento. 

Found In The Archives, A Novel By Horror Master George A. Romero Sees The Light Of Day: Romero não ficou conhecido como escritor, mas não deixa de ficar a curiosidade desperta com esta obra póstuma.

The Age of Jennifer’s Body: Um género pouco explorado, o das anti-heroínas de terror. Mulheres que não se rendem ao papel de vítimas nem sobreviventes, mas também não são encarnações do mal.

Mickey 17, a New Film From Bong Joon-ho: Confesso que vi o trailer e meti o filme na lista dos que quero mesmo não perder. Ficção científica de humor negro? Quando é que estreia por cá?

Max Headroom And The Strange World Of Pseudo-CGI: Confesso a minha ignorância, pensava que o glorioso estilo digital eighties de Max Headroom fosse, realmente digital. E não foi o único exemplo de filmes e outros media que usaram meios tradicionais para criar imitações convincentes de um estilo digital.

Cancelling the Pop Culture of Yesteryear: Sim, é verdade, a cultura pop do passado é hoje cringe, cheia de estereótipos datados, racismo e visões retrógradas de género. Isso significa que temos de as editar, criando versões limpas, ou eliminar, para não ofender a cultura contemporânea? Não, de todo. Uma sociedade, uma cultura que sanitiza o seu passado é uma cultura estéril, que desconhece o valor da evolução histórica. Censura, especialmente em nome dos bons costumes, é sempre censurável.

Social media have blurred the boundaries between fans and celebrities – with disturbing results: Que o fandom sempre teve um elemento de toxicidade, isso não é novidade. O que é novo é a forma como as estratégias performativas do online e das redes sociais potenciaram esse tipo de comportamentos. O fã tóxico, hoje, é mais do que o maluquinho alucinado obcecado por uma pessoa célebre, é ele mesmo um célebre-wannabe que usa o seu estatuto de fã para se autopromover, e a qualquer custo. Como sabemos, a economia da atenção online vive de ruído acintoso e escandaleira, não da positividade das interações.

Exploration of Generational Starships in Science Fiction: Sabe sempre bem um listicle, mesmo arriscando que poderá ter sido gerado por um LLM. Aliás, dada a reduzida lista de obras citadas, e o estilo narrativo, diria mesmo que foi gerado por um LLM.

5104) Sete segredos (21.9.2024): São sempre deliciosas, estas brincadeiras literárias do Bráulio Tavares.

Death flies The Sky Route To Berlin: Se o meu sentido aeronáutico ainda funcionar, a capa tenta representar Stukas vs. Gladiators.

SocialAI offers a Twitter-like diary where AI bots respond to your posts: Diálogos que seriam improváveis senão pela economia da trafulhice digital: "Olha, já ouviste falar desta nova rede social? Aderi e já tenho imensos seguidores, estão sempre a comentar os meus posts." "Fantástico! As pessoas que a frequentam gostam mesmo do que tu partilhas, fixe!" "Bem, não, os meus seguidores não são pessoas, são bots de inteligência artificial." Não faz sentido, pois não? Mas isso não significa que se lance o produto e cative investidores. Se bem que, na verdade, isto é em tudo igual às redes sociais de romance e sexo, que prometem um verdadeiro harém de mulheres sequiosas de conversa e relações, mas na verdade são um tipo barbudo que gere algumas dezenas de falsos perfis femininos para enganar os utentes desses serviços.

SocialAI: We tried the Twitter clone where no other humans are allowed: O registo do uso da rede social onde são bots que seguem e interagem com os utilizadores humanos levanta a questão: será uma piada elegante, comentário ácido sobre a forma como nos viciámos na mecânica aditiva das redes sociais? Se assim for, dados os custos de correr este tipo de bots, com ligação a APIs de IA e servidores, é uma piada cara.

Mozilla exits the fediverse and will shutter its Mastodon server in December: Meninos, há aqui uma lição a rete. O Fediverso é por natureza independente. Perceber que a Mozilla fecha a sua instância por ter um reduzido número de contas (270, provavelmente nem os empregados a usavam) é ver que no espaço federativo, conta a dinâmica grassroots, não chega uma empresa chegar, instalar-se e esperar que as pessoas adiram em massa. Exceção, claro, para a Bluesky e a Threads, mas esses são casos à parte: são serviços que se apropriaram dos protocolos do fediverso, não se interligam com as redes, e têm um público alvo específico, os refugiados do Twitter, que é malta que quando chega às instâncias do Fediverso depressa percebe que as dinâmicas são muito diferentes e acaba por abandonar estas redes.

Smartphones Are So Over: Por outro lado, o próprio artigo não é assim tão otimista quanto à tecnologia dos smartglasses de realidade aumentada, apesar de todos os avanços ainda não é uma tecnologia de consumo.

Omnipresent AI cameras will ensure good behavior, says Larry Ellison: Há um nome para isto: totalitarismo. É o apanágio de sociedades como a China, onde direitos humanos fundamentais são letra morta, e a tecnologia é uma arma para reprimir as pessoas. Se os techbros vêm como um benefício social viver numa sociedade panopticon, devemos ficar ainda mais preocupados.

Microsoft releases a new Windows app called Windows App for running Windows apps: No fundo, substitui o clássico remote desktop, e adapta-o para correr em diferentes sistemas operativos.

A bottle of water per email: the hidden environmental costs of using AI chatbots: Por muito que goste da IA Generativa, este problema tem de ser discutido e enfrentado - o custo ambiental da corrente tecnologia é demasiado elevado. Os gastos de energia das empresas que sustentam a infraestrutura na qual correm os algoritmos de IA crescem exponencialmente, os custos ambientais de manutenção e arrefecimento sobem. E não deixo de me perguntar: vale mesmo a pena esta pegada carbónica para gerar bonecada (geralmente bastante foleira), despachar emails (esse suprassumo da capacidade humana), produzir aqueles relatórios que ninguém quer realmente ler? Uma coisa é ver os dados massificados, os gráficos que mostram a curva ascendente do custo energético. Outra (ah, o poder das metáforas) é perceber que para gerar um pequeno texto, gasta-se o equivalente a uma garrafa de água. E quantas vezes carregamos nos botões de gerar, porque não estamos contentes com o output e afinamos o prompt? São muitas garrafas de água por sessão de interação com um LLM (ou outro tipo de gerador), para fazer coisas cuja real importância é diminuta.

For Now, There’s Only One Good Way to Power AI: A Microsoft a reativar uma centrar nuclear para sustentar os seus planos para a IA parece algo saído de um filme (e dá todo um novo significado, deveras nuclear, à expressão "já experimentaste desligar e voltar a ligar"). Mas não é a única BigTech a investir nesta forma de produção de energia.

The Danger Of Superhuman AI Is Not What You Think: Quando nos esquecemos que o real valor da IA é ser uma ferramenta, entramos em territórios onde há dragões conceptuais.

The World's Underwater Fiber Optic Cables: É sempre um fascínio, este tipo de vislumbres sobre a infraestrutura submersa que sustenta a nossa vida digital.

Slaves To The Metal Horde: Bem, pelo menos o robot poupa a dama em perigo.

Archaeologists believe this Bronze Age board game is the oldest yet found: Traços da longa história humana do prazer de jogar.

The Exploding Pagers of Lebanon: Não vou verter lágrimas pelos membros de uma organização terrorista religiosa mortos ou feridos neste ataque. Apenas, registar a sua criatividade, é algo que muitos argumentistas de Hollywood estão neste momento a pensar "bolas, como é que nunca pensei nisto", ou, "se calhar pensei, mas é tão incrível que ninguém aceitaria a ideia".

Una bodega italiana instaló paneles solares sobre sus viñedos y descubrió algo inesperado: mejoran la calidad del vino: Uma experiência interessante, dado que um dos resmungos que se faz sobre a combinação de agricultura com centrais solares é, precisamente, o prejudicar a agricultura. E, confesso, sendo uma vinha na Puglia, dá vontade de ir lá experimentar se esse primmitivo é tão bom como o das vinhas tradicionais.

Convertir a Portugal en monocultivo de eucalipto fue un desastre. Y los últimos incendios no hacen más que recordárnoslo: Uma visão externa dos problemas da nossa floresta, que anualmente se manifestam de forma incendiária. E, apesar de curto, mostra que o real problema não se centra no eucalipto unicamente (e muito menos na mitificação do fogo posto criminoso, que é a explicação confortável, de areia para os olhos das pessoas, muito útil para fugir ao enfrentar da muito mais complexa realidade).

Sweden’s Flying Dragon: The Saab J 35 Draken: A história de uma icónica aeronave clássica.

Previously unknown Mozart music discovered in German library: Como não ficar de queixo caído com esta descoberta de investigadores em arquivos? Uma peça inédita de Mozart, que irá ser ouvida pela primeira vez mais de dois séculos e meio depois de ter sido escrita.

How Big Tech Has Taken Over Our Culture: O texto em si é totalmente focado na realidade americana. Mas o seu cerne é global, dada a forma como as grandes empresas tecnológicas se estruturam, e o poder real que detém na seleção do que vemos e lemos, bem como de cortar o acesso, de forma imune, sem responsabilização pela sociedade civil ou poder político democrático. É, de facto, uma autocracia digital que coexiste em paralelo, mas erode, a democracia.

‘Europe’s Oldest Battlefield’ Just Got Stranger With New Evidence of Outsiders Involved: Indicadores de conflitos alargados da pré-história.

Hay quién piensa que España sigue teniendo cuatro islas perdidas en el océano Pacífico. Es más complicado de lo que parece: Curiosidades das memórias dos colonialismos europeus.

The Avia S-199: Israel’s Unlikely Deliverer: A ironia história do estado de Israel ter, nos seus primeiros tempos, dependido de variantes checoeslovacas do caça alemão Me109.

sábado, 2 de novembro de 2024

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O Caderno da Tangerina


Rita Alfaiate (2002). O Caderno da Tangerina. Lourinhã: Escorpião Azul.

Confesso-me fã do trabalho de Rita Alfaiate. O seu estilo gráfico é espantoso, muito pessoal, elegante e expressivo, quer em registos de cor quer em preto e branco. As suas histórias são de uma complexidade inesperada, partem de conceitos simples que se desenvolvem numa não linearidade inesperada que não teme o ambíguo. Nesta história aparentemente infantil, os monstros são metáforas reais da solidão das crianças inadaptadas. Caminhando sempre na linha da ambiguidade, tanto nos deparamos com monstros reais como com as projeções dos temores individuais. Um livro assombroso, como esta jovem criadora nos tem habituado.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Le Grand Cirque


Pierre Clostermann (1958). Le Grand Cirque. Paris: Flammarion.

O relato autobiográfico das experiências deste aviador francês ao serviço da RAF durante a II Guerra Mundial. De 1942 a 1945, Pierre Clostermann combateu, como militar francês exilado, ao serviço dos aliados. Três anos que, no livro, se sentem como uma eternidade. Se esperam deste livro um relato exaltado de magníficas façanhas de combate aéreo, a leitura não mostra esse caminho. 

As experiências do autor mostram a dura realidade dos combates. As missões sucedem-se, todas momentos em que os pilotos descolam sem saber se irão regressar. Há demasiados  factores de risco, desde a aviação inimiga e às baterias anti-aéreas, aos problemas mecânicos e erros de pilotagem. As missões são uma litania de violência, vista como necessária dado o contexto de guerra, mas não abordada com recortes ideológicos. Não há honra ou valor, apenas o tentar sobreviver abatendo o inimigo.

Os relatos são factuais e desapiedados, numa frieza que traça um distanciamento psicológico do ex-combatente face às emoções que, se afirmadas, o tolheriam, e isso seria morte certa nos céus. Um registo histórico, escrito no tom amargo de um sobrevivente.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Peter Pank


Max Bardin (2011). Peter Pank. Barcelona: La Cúpola.

Fãs portigueses de banda desenhada já com alguma idade recordam-se de uma época onde abundava BD nas bancas e quiosques, mercê da importação brasileira da Abril. Foram os tempos dos lendários formatinhos, que nos traziam os comics da Marvel e DC, as aventuras dos personagens Disney, e muitos outros personagens. Também cá chegavam graphic novels (em revista, não em livro), séries limitadas editadas no formato comic. e outras revistas de BD. No meio disso tudo, havia um fenómeno estranho, que se hoje estivesse acessível a todos em bancas, provocaria pânicos morais: a revista Animal.

Independente e a puxar para o underground, era uma revista que nos trazia do melhor da BD europeia e brasileira. Não a comercial, mas sim a independente e de vanguarda. Para além de geniais cartoonistas brasileiros, foi naquelas páginas que descobri Mattoti, Schulteiss, Magnus ou os irmãos Hernandez, entre outros nomes do vibrante panorama da BD independente dos anos 80 e 90. E também se poderiam descobrir outras coisas. A Animal estava pensada para adultos, e tinha algumas rubricas dedicadas a gostos mais perversos e peculiares. Nos dias de hoje, em que o dilúvio online nos baixou o nível de sensibilidade por excesso de exposição a excessos, revistas como a Animal parecem-nos quase ingénuas. Mas, à época, foi uma pedrada no charco, que mostrava que a BD de qualidade ia além dos formatos comerciais ou do tedioso prestígio da bande dessinée francesa. Podia ser radical, virulenta, escatológica, sem compromissos, e em essência, interessante.

Há um trio de personagens da BD underground europeia (quatro, se incluirmos Cowboy Henk) que eram peculiarmente radicais e tinham presença garantida nas suas páginas: as aventuras sexualidadas do robot Ranxerox e a sua namorada adolescente (este lado não envelheceu bem) por Liberatore, o colapso sangrento da cultura pop no absolutamente brilhante Squeak the Mouse de Mattolli, e a destruição punk da parábola delicodoce de JM Barrie em Peter Pank do espanhol Max Bardin. 

Bardin pegou no esqueleto de Peter Pan e recriou-o numa perspetiva da rebeldia das culturas undeground dos anos 80. A terra do nunca transforma-se numa Terra dos Punks, e os rapazes perdidos num bando de agarrados à cola e heroína. Os piratas tornam-se rockers ao estilo dos anos 50, com o enorme topete do capitão. As sereias são  insaciáveis ninfomaníacas, e a ilha ainda alberga uma comunidade hippie, malta pacífica exceto quando toma ácido.  No meio disto tudo reina Peter Pank, um cabrão assumido, punk até à medula, que não olha a nada para satisfazer os seus prazeres. Se na fábula de Barrie Wendy e os seus irmãos visitam a Terra do Nunca a convite do eterno rapaz, nesta versão os objetivos de Peter são muito mais lúbricos em relação à jovem. E, claro, não poderia faltar a caricatura da fada, no fundo uma das grandes heroínas deste delírio.

Com uma base destas, só poderia dar confusão da grossa, e sucedem-se peripécias de humor corrosivo e implacável. Terminadas as aventuras na terra dos Punks, Max Bardin ainda nos legou outras duas aventuras do seu tramado anti-herói: um delírio onde a iconografia do horror clássico colide com os romances de espionagem e as culturas urbanas violentas; e uma aventura final, um hino à rebeldia onde Peter Pank lidera uma guerrilha que libertará a ilha do jugo dos yuppies (ainda se lembram desta tribo urbana, imortalizada por Olvier Stone em Wall Street e Brett Easton Ellis em American Psycho? Hoje designamo-os por neoliberais). 

Todo o livro é desenhado num traço acutilante e rigoroso, com um esquema de cores fortíssimo. Esta edição da La Cupola recorda um personagem incómodo, e um marco incontornável da iconoclastia underground da BD europeia dos anos 80.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Como sobreviver depois da morte


André Costa (2024). Como sobreviver depois da morte. Lisboa: Quetzal.

Este livro foi das melhores, e mais aleatórias, surpresas literárias que tive este ano. De todos os sítios possíveis, cruzei-me com ele nos escaparates de um super-mercado da zona oeste (mesmo sendo um típico "livros é nas livrarias", a minha bibliofagia leva-me sempre a espreitar as geralmente sofríveis ou modistas ofertas entre os legumes e os produtos de higiene). Atraiu-me a capa, uma belíssima variação de Lia Ferreira sobre o Enterro do Conde de Orgaz, uma das obras que me fez perceber que sofria do síndrome de Stendhal quando a vi ao vivo na capela de Toledo que a alberga, e que dá aqui a base a uma capa que, depois de se terminar o livro, é ainda mais brilhante pela forma com interpreta na perfeição a narrativa.

O livro transporta-nos a Sulfúreo, uma aldeia perdida no interior profundo com o seu misterioso segredo: os mortos, lá, não morrem verdadeiramente. Não que fiquem dotados de vida eterna, se transformem em assombrações ou em zombies, apenas, ao morrer, os corpos dos filhos da terra desaparecem, e voltam a ser vistos regularmente a passear nos seus locais favoritos, falando e dando conselhos aos vivos. 

É um mistério, sempre aludido e nunca revelado, que dá o tom ao livro. Terra onde o tempo parece passar de forma diferente, mais devagar e longínquo, a aldeia também encerra uma maldição. Mas não esperem que esta tem algo a ver com mortos vivos ou algo do género. Este é um daqueles livros cuja leitura desafia constantemente as expectativas, e este é um dos seus principais desvio. 

As serranias em volta têm o infortúnio de serem ricas em minério de volfrâmio. Algo que traz à aldeia empresas mineiras, mas um desenvolvimento que se traduz em exploração laboral e na destruição progressiva do espaço natural, sujeito às depredações de uma engenharia que não se preocupa com o ambiente. Se a terra cresce, com mais casas, maiores igrejas, os espaços naturais que lhe deram o seu carácter são destruídos, contaminados, soterrados por debaixo da cupidez financeira. Os ciclos económicos trazem, quando estão em baixo, pobreza, mas quando estão em alta, a riqueza não chega aos pobres operários, condenados a arriscar a vida por tostões. 

Ao longo do livro, assistimos à degradação progressiva do espaço da aldeia, que começa por nos ser mostrada como uma aldeia isolada dos finais do século XVIII, com os seus costumes e superstições, mas também um local de convivência entre natureza e homem, à progressiva modernização que traz consigo a contaminação e a desertificação espiritual.

Sente-se este com o grande tema do livro, refletindo após a leitura. Mas desenganem-se, como disse, este livro desafia as expectativas dos leitores, e a progressiva decadência do espaço é na verdade pano de fundo para um conjunto de histórias encadeadas, focadas nas vidas de várias gerações de famĺias que sempre lá viveram. Seguimos os seus sonhos, amores, desvelos, ilusões, paixões, desilusões, sempre num sedutor registo de suave realismo mágico. Os mortos vão fazendo as suas aparições nas vidas dos vivos, que iniciamelmente parecem envelhecer muito lentamente, mas à medida que o mundo isolado da aldeia se aproxima do resto do país, das modernidades contemporâneas, o tempo acelera, normaliza-se, e as vidas intemporais tornam-se breves.

Este livro é também uma viagem social sobre a nossa história como país, lida pela visão do impacto de acontecimentos e regimes vinda do país profundo. Inicialmente isolada pela distância, e com isso salvaguardada das convulsões polítícas e sociais, das guerras, golpes de estado e regimes, a aldeia acaba por se tornar um típico símbolo do portugal cinzento e sacripanta estado-novista, completo com as pessoas de bem que vivem à custa do suor do povo. Nem o colonialismo, primeiro como sonho idílico e depois como realidade dura, foge a esta leitura da nossa história.

Pensei, no início da leitura, que estava perante um belíssimo exemplo de ficção fantástica portuguesa, mas o romance extravasa este limites. Os seus recortes sobrenaturais tocam na nossa profunda tradição, as vidas dos personagens têm toques de realismo mágico, mas a narrativa desbrava o caminho que vai de um profundo matagal de isolamento aos danos trazidos pelo desenvolvimento descuidado. Apesar de toda a magia, a história é trágica, as vidas das personagens duras e amargas, mesmo quando parece haver esperança. No fundo, uma metáfora do que é ser povo, em Portugal.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Megalopolis

Saí da sala de cinema com a sensação que vi um filme daqueles que fica para a história. É tudo aquilo que dizem dele. Brilhante, pedante, literário, escandaloso, decandente, gritante, sedutor, caótico, desconexo, vulgar, elegante. Oscila entre exercício de estilo e crítica mordaz à contemporaneidade. É visualmente luxuriante. 

Não é um filme para todos. Não é acessível, simplista ou facilitista. Faz lembrar os momentos mais delirantes de Fellini (não me surpreenderia se Satyricon fosse uma das inspirações), e cruza um certo mito americano, de se imaginar como uma segunda Roma, com a decadência neoliberal contemporânea, onde conta o jugo nepotista dos bilionários. Atreve-se a sonhar utopias, enquanto desmonta a crise dos dias de hoje. É (e isso está explícito logo nos primeiros segundos), uma fábula. Mas não uma fábula discreta, o filme berra o seu ideário aos espetadores.

Este filme anda com  uma carreira maldita. Está a ser vendido como uma incursão de Coppola na FC (e, na verdade, é um maravilhoso filme de fantástico, mas não nos moldes tradicionais), o que tem o condão de desagradar a todos. À crítica porque, enfim, FC, essa mácula. Aos fãs de ficção científica, porque depressa são defraudados da expetativa de ver aventuras no espaço com tiroteios e explosões (hey, adoro FC... literária, no cinema a maior parte dos filmes do género são chiclete que nem vale a pena mastigar). Aos fãs de cinema de autor, porque não é a habitual história confortável ou o drama interior do personagem. Aos estúdios, porque não é mais uma variante de IP que requenta o mesmo conteúdo estafado de sempre. 

Eu, adorei. Saí da sala com a cabeça a zunir de ideias.

(Aplausos para a tradução do filme, que conseguiu apanhar subtilezas dos jogos de palavras, como, se não me falha a memória, traduzir "don't be so Emerson" como "não sejas tão transcendentalista").

domingo, 27 de outubro de 2024

URL


Alfredo Alcala, 1977: Cenas clássicas.

MOTELX 2024: Rituais fúnebres, monstros e folclore indonésio: Alguns destaques de um festival que, este ano, não consegui ir visitar de todo. Que chatice!

Is Grant Morrison Writing Ice Cream Man From Image Comics?: Por favor, espero que não. O resultado da dupla Maxwell Prince e Martin Morazzo é uma das mais brilhantes séries de BD da atualidade. Cada novo número surpreende, pelo experimentalismo narrativo, grafismo limpo e visão única do terror. Acho que nunca li nenhuma série em que todos os números surpreendem. Grant Morrison é perfeitamente capaz de dar continuidade à estética de Ice Cream Man, mas irá por outros caminhos, quem conhece a sua obra sabe quais são. O que se aprecia em Ice Cream Man é a sua frescura, e se a dupla criativa já não consegue ir mais longe ou manter o nível, não há mal em colocar um ponto final na série. E o talento de Morrison merece mais do que ser repescado para continuar esta série.

5101) A palavra catalisador (12.9.2024): A importância daqueles que não tendo deixado obra, foram fundamentais para inspirar gerações de escritores.

O Inferno de Dante: Rever os clássicos.

What We All Forgot About Beetlejuice: Um olhar para o remake, que é também um olhar sobre a carreira de Tim Burton.

What the hell did I just watch?: Pessoalmente, reservo a minha opinião até ter visto o filme, mas as primeiras visões sobre o mergulho de Coppola na FC não são otimistas.

Today’s Great Contemporary Literature Is About The Past: Atrevo-me a dizer que no corrente panorama mediático, toda a cultura pop se focou no passado. Não é só a literatura. Talvez nos tenhamos tornando uma sociedade com medo do futuro.

What to read this weekend: Cosmic horror sci-fi, and the quest to understand how life began: Algumas sugestões de leitura incómoda.

Sci-fi books are taking off again: O capitalismo encontra forma de monetizar tudo. Agora, é o colecionar de primeiras edições de clássicos e livros raros de ficção científica enquanto nicho de mercado para investimento.

If War Again Strikes Belgium: Cenas aeronáuticas.

4 ways I reuse my old iPhones instead of trading them in - including with robots: Métodos para escapar ao ciclo de desperdício de tecnologia que, estando já fora do topo, não deixa de poder ser usada em funções úteis.

Social-Media Companies’ Worst Argument: Fala-se imenso na proibição de telemóveis às crianças e jovens, com o argumento de serem perniciosos para a sua saúde mental e formação. Na verdade, o problema não está no telemóvel, mas na forma como as empresas usam as plataformas móveis para desenvolver produtos aditivos, manipuladores da atenção, que lucram através do viés, da exploração de sentimentos negativos, da vacuidade. Não é por acaso que os gestores destas tecnológicas restringem o tempo de ecrã dos seus próprios filhos: sabem perfeitamente que o que vendem são produtos desenhados para viciar, danosos para os seus utilizadores. Representam uma perversão do ideário de conectividade e expressão trazido pela internet. E sabem bem as más consequências da forma como estruturam os algoritmos das redes sociais. É algo que está mais do que documentado. Mas, se se fala em legislar, em regular estes abusos, levanta-se logo o espectro do ataque à liberdade de expressão, essa ideia que está a ser instrumentalizada para que alguns bilionários se tornem mais ricos explorado a miséria do lado negro da mente humana. Falar dos telemóveis como um problema, mas não ter a coragem de enfrentar as plataformas, é como tentar combater a toxicodependência atacando as drogas enquanto se elogia traficantes e produtores.

Something New: On OpenAI's "Strawberry" and Reasoning: As primeiras impressões do novo algoritmo da OpenAI são interessantes, pela forma como está pensado para melhorar o desempenho não pela velocidade, mas pela fiabilidade. Teremos que levar com os habituais coros de "um algoritmo que raciocina", mas na verdade parece-me que estamos perante um algoritmo que foi desenvolvido com a capacidade de verificação prévia de resultados.

5 ways to start using Gems in your workflows, according to Google: Ideias para tirar partido dos assistentes de IA.

Yet Another iPhone, Dear God: Ian Bogost a resumir o que todos sentem. Regularmente as empresas fazem o seu estardalhaço cíclico de marketing do que se tornaram atualizações incrementais a uma tecnologia estável.

Leituras da Semana (#32 / 09 Set 2024): Ainda não li o artigo de Chiang (tenho de ter pachorra para contornar as barreiras), mas diria que descartar as ferramentas de IA generativa com o argumento da falta de esforço, não é o mais lógico. Seria como observar que os artistas que não produzem os seus próprios pigmentos e esticam as telas não são realmente artistas. Até porque a IA generativa requer esforço para ser bem usada (e por "esforço" não me estou a referir ao simplismo do prompt engineering, estou mesmo a falar do desafio de usar criativamente os geradores). O deslumbre que por ai corre é enorme, mas no fundo, tudo se resume a isto: são ferramentas, não passam disso, trazem novos potenciais, mas são tão artísticas e criativas per se como um pincel ou um bloco de notas. Não é a tecnologia que faz a arte, mas sim a imaginação do humano que a usa.

Hemos encontrado la "kriptonita" de la Generación Z: son expertos en apps, pero no saben usar una impressora: Sejamos honestos. Acho que ninguém sabe, realmente, como dar conta de uma impressora (2D). Por vezes, nem os técnicos das marcas…

I Have AI Fatigue. Here's What I'm Doing to Overcome It: É um sentimento que também partilho.

All maps are wrong: Recordar que os mapas não são o território, mas sim uma abstração que nos permite replicar com simplicidade uma realidade muito complexa.

From Punch Cards to Python: Foco no trabalho de Grace Hopper, que desenvolveu a ponte computacional entre a linguagem natural e a linguagem máquina.

A New Front in the Meme Wars: Entre a complacência da gestão das redes sociais, a quem lhes interessa crispação e ruído, e a acefelia dos extremistas, facilmente manipulados.

2024 Ig Nobel Prizes for Silly Science Include Pigeons in Missiles, Hair Whorls, and Dead Fish That Swim: Ciência de tom pateta e divertido, mas na verdade ciência a sério.

Microsoft’s Hypocrisy on AI: A IA pode ser uma ferramenta fundamental para combater o aquecimento global, diz a empresa que corteja ativamente o mercado das empresas petrolíferas, prometendo-lhes ferramentas de IA para aumentar a extração de petróleo.

Scaling: The State of Play in AI: O que impressiona neste artigo é a noção de escala, quando maior for o modelo, mais parâmetros tiver, e maior a quantidade de dados de treino, melhor o seu desempenho. E o treino destes modelos envolve verbas que chegam ao milhar de milhão de euros, com projeções de dez mil milhões em custos por modelo para a próxima geração. Diz-se que o desenvolvimento da IA vai esgotar os dados para treino, mas suspeito que antes disso esgote o dinheiro disponível.

In 1926, TV Was Mechanical: Os primórdios do desenvolvimento da televisão.

French Art Number One: Like one of your french girls.

Gracias por todo, Stalin: cómo la existencia de la URSS provocó que Occidente aplicara políticas anti-desigualdad: Uma ideia que Chomsky demonstrou ter estado na génese do estado social. Por um lado, a luta contra o comunismo soviético; por outro, o reconhecer que as desigualdades extremas da primeira metade do século XX tiveram um papel fundamental no crescimento do fascismo, história que teve um final catastrófico.

One Giant Steppe for Space Flight: Visões do mundo que rodeia uma base de lançamentos.

What Researchers Learned From the World’s Oldest Cookbook: Para aqueles que tenham curiosidade em saborear a comida que deliciava os Sumérios.

New M-346 Jet For The Frecce Tricolori Display Team Breaks Cover: Ficam com um ar fenomenal, e dada o brilhantismo da equipe aerobática, vai permitir espetáculos aéreos ainda mais memoráveis.

The Lion of Venice was made in China: Esta ninguém esperava. A análise à composição química do metal deste ex-libris veneziano mostra que foi uma importação chinesa, que terá chegado através da estrada de seda. Traços da globalização, que já existia antes do nosso mundo global.

Top 10 jet fighters ranked by claimed kills: Confesso que a segunda aeronave mais letal em combate, foi uma surpresa.

Don’t ask if AI can make art — ask how AI can be art: Uma visão que se alinha perfeitamente com o meu ponto de vista - chamar "arte" ao output da IA Generativa é apenas pateta, mas é importante perceber que a IA generativa também é uma ferramenta para criação.

What if electrification transformed the EU economy?: Uma análise que mostra o caminho europeu para eliminar progressivamente a dependência de combustíveis fósseis, com especial destaque para a aposta ibérica em renováveis. Pessoalmente, gostaria muito de ver a suposta consequência de preços mais baixos na minha fatura da eletricidade…

China tiene un arma para burlar los aranceles y proteger los secretos de sus coches eléctricos: kits de quita y pon: Uma guerra económica e tecnológica, a China destacou-se pelo fortíssimo investimento no desenvolvimento de tecnologias para automóveis elétricos, mas a Europa tem a sua própria indústria, que não está estagnada neste campo, a proteger.

A Parasitic Goblin: The Story of the XF-85: Talvez uma das mais bizarras propostas de aeronave a ter sido desenvolvida e testada.

Silent Solar: Um relato do crescimento não reportado da energia solar nos países do terceiro mundo, onde são a alternativa às más infraestruturas e subida dos preços da energia baseada em combustíveis fósseis.

Occidente quiere proteger los cables de comunicaciones submarinos a cualquier precio. Rusia y China acechan: Os combates estratégicos passam pela infraestrutura de cabos submarinos.

The Incredible Armada of Aircraft Behind 1969’s Battle of Britain Film: Uma piada com fundo de verdade dizia que quando este filme estava a ser filmado, os seus produtores detinham uma das maiores forças aéreas do mundo em número de aeronaves, dada a quantidade de aviões que reuniram para as cenas. E diga-se, para fãs de aeronáutica e história, é dos melhores filmes sobre aviação na II Guerra.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Almanaque Steampunk


(2022). Almanaque Steampunk. Oeiras: Divergência.

Tendo tido o seu ponto alto nos primeiros anos do século XXI, o movimento literário e estético steampunk tem perdido, nos tempos mais recentes, o seu vapor. 

Perdoem-me, mas tinha de fazer esta piada seca. 

O momento de ribalta do steampunk já passou, claramente, mas os fãs mais empedernidos ainda o mantém vivo com festivais, iniciativas, grupos de cosplayers e edições com a deste Almanaque, que por cá já é uma tradição literária. Ainda bem que isto acontece, são os fãs que dão vida, riqueza e diversidade às várias vertentes do Fantástico. 

Esta, que é a mais recente edição de um livro que se tornou um clássico do Fantástico Português, mantém a estrutura dos anteriores almanaques, coligindo ficção curta, notícias imaginárias, ilustração e banda desenhada, sempre à volta do vitoriano passado imaginário em que a tecnologia a vapor e a automação de mecanismo de relógio nos dariam um mundo retro-futurista repleto de autómatos, dirigíveis, e mega-cidades de arquitectura fin de siécle.

É, como os anteriores, um mergulho divertido na estética steampunk, com os expectáveis variados graus de qualidade literária, dado o grande conjunto de criadores que a antologia reúne. É interessante ler as explorações deste imaginário, com particular destaque para a ficção, com contos curtos muito bem conseguidos.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

The Mercy of Gods


James S. A. Corey (2024). The Mercy of Gods. Nova Iorque: Orbit.

Prometia ser explosivo, o regresso da dupla de autores que assinam sobre o pseudónimo de James S.A. Corey. Tendo em conta o elevado nível da série Expanse (obviamente, falo dos livros, apesar da adaptação televisiva também ser boa), a fasquia ficou alta. Terão os criadores sido capazes de lançar as bases de uma nova e interessante série de FC?

A premissa intriga. Vivemos num tempo em que a humanidade colonizou um planeta alienígena, com biologia nativa incompatível mas não agressiva, há tanto tempo que se esqueceu do seu ponto de origem. Não é claro no livro (ou posso ter lido mal) se a humanidade se espalhou pelas estrelas, ou se algum cataclisma passado eliminou a Terra, ou talvez isso venha a ser explorado em livros futuros. Acompanhamos os pequenos dilemas de uma equipa de investigadores que acabou de conseguir o maior sucesso das suas carreiras, encontrando uma ponte biológica que consegue ligar a fauna nativa do planeta com a imigrante terrestre. Mas tudo muda de repente, quando a chegada de naves desconhecias à órbita do planeta começa por mostrar aos humanos que há outras civilizações no vasto espaço, e o seu ataque fulminante revela que estas não são pacíficas. 

A humanidade colonizadora do planeta encontra-se sob domínio dos Caryx, uma espécie que se dedica a conquistar outras raças para as testar. Se as considerar úteis, incorpora-as na sua civilização compósita, como instrumentos ao seu serviço. Se lhes forem inúteis, extermina-as. Um grupo de humanos, praticamente todos ligados à investigação científica, são levados cativos para um planeta central e submetidos ao teste civilizacional, que aparentemente se centra no desenvolvimento de investigação científica, mas na verdade também passa pela capacidade de sobrevivência e subserviência perante os novos mestres.

Os investigadores da equipa de biologia encontram-se no centro de tudo isto, e um deles acabará por se tornar uma espécie de líder nomeado pelos conquistadores, devido ao seu papel na denúncia de uma revolta de cativos que não só poderia colocar em risco a sobrevivência humana, mas também uma ténue hipótese de combate aos invasores. Isto porque junto deste grupo, é capturada uma outra entidade alienígena, composta de nano-máquinas que se apropriam de corpos (não é um bom resultado para os anfitriões), e que procura espiar os poderosos conquistadores, procurando informações que revelem fraquezas que possam explorar em combate aberto. Uma aliança que talvez seja a única esperança para a humanidade recuperar a liberdade face a um invasor vastamente superior em tecnologia, mas que terá custos pesados.

A premissa é vasta, mas este livro lê-se demasiado como um colocar de peças em tabuleiro para exploração posterior. Boa parte da narrativa passa-se a explorar as dinâmicas internas do grupo de investigadores, dos seus problemas e guerrinhas académicas, sem que o grande arco narrativo avance muito. Há capítulos que, face ao desenrolar da história, se tornam inúteis. Os leitores são mergulhados num fascinante vislumbre de uma mescla de civilizações e criaturas alienígenas, mas esses aspetos não são muito explorados. Este livro tem muito enchimento e pouca substância. Percebe-se que o foco nos detalhes e minudências tem como objetivo a construção de personagens complexos e credíveis com que o leitor se possa identificar, mas apesar do esforço não conseguimos empatizar com os personagens principais.

Mas sejamos justos. Esta dupla de escritores explora uma vertente comercial, e os seus livros não têm de ser profundos voos literários de ficção científica. The Expanse, apesar do seu sucesso crítico, não passava de uma space opera divertida e bem urdida, e esta nova série segue um processo similar. Apesar das falhas do livro, ficou aberto o apetite para perceber como é que esta nova e ambiciosa série literária se irá desenvolver, que caminhos irá percorrer este vasto panorama.

domingo, 20 de outubro de 2024

URL


Flash Gordon - art by John Bolton (1980): Clássicos camp.

A Minecraft Movie’s first trailer is equal parts goofy and creepy: Bem… a estética minecraft em estilo realista é muito creepy.

5098) Quando uma coisa perde o sentido (3.9.2024): Sobre a memória coletiva e o sentido das coisas que nos rodeiam.

Passagem para Júpiter e outras estórias: Um dos livros da minha pilha de livros por ler, e este apontamento não dá muita vontade de pegar nele.

Espiga – Bernardo Majer: Leituras de BD portuguesa.

Uzumaki Trailer Is As Disturbingly Twisted as We Hoped It Would Be: Na verdade, o visual da animação é estonteante, um perfeito decalcar do estilo de Ito.

Oh, the Places You’ll Go: A complexa história crítica da literatura infantil.

Nuevo curso de lecturas: los libros que estamos leyendo en Xataka en septiembre: Confesso, R. F. Kuang está a entrar no meu radar, e vergonhosamente nunca li Susanna Clarke.

Jerusalém, Alan Moore: Do lado de lá do atlântico, uma edição muito especial do romance de Moore.

Brand New Science Fiction and Fantasy in Translation to Start September: Confesso que fiquei curioso com romance mosaico japonês.

Landmark Western Novels, recommended by Susan Kollin: Literatura que invoca o oeste americano, mas não na ótica do velho oeste. A cowboiada aqui é contemporânea.

Seven Books That Demystify Human Behavior: O inferno, diz-se, são os outros.

Alan Moore's new whimsical, wonderful, and wordy novel: O regresso do grande mestre, desafiante e prometedor.


It's Full of Stars: Construtivismos.

Relativity Space has gone from printing money and rockets to doing what, exactly?: Aquela que era a grande promessa da nova indústria espacial, a empresa que desenvolvia foguetões com manufatura aditiva, está a tornar-se algo mais convencional.

AI Is Coming for Amateur Novelists. That’s Fine: Não sei se concordo com o tom do artigo. Há uma certa ironia, no fundo, o artigo está mais a cascar no NaNoWriMo como iniciativa, a desconsiderar quem participa neste desafio, do que realmente a falar do impacto dos LLMs na escrita. Ou seja, neste ponto de vista não há qualquer problema em participar do evento usando IA, porque o articulista pensa que o NaNoWriMo é inútil. E, para isso, qualquer coisa serve.

The best Raspberry Pi alternatives: Expert recommended: Placas alternativas ao popular e acessível Pi.

Un completo estudio acerca de dónde viene el mito de que Internet fue diseñada para sobrevivir a un ataque nuclear: O problema destes mitos é que sendo confortáveis, repetem-se e perpetuam-se.

The Vega rocket never found its commercial niche. After tonight, it’s gone: O fim de uma tentativa europeia de avançar na indústria do lançamento orbital.

It’s Spreadsheets All The Way Down for This 80s Handheld: Um dispositivo intrigante, tecnologia dos longínquos anos 80.

When "AI for Good" Goes Wrong: Um brilhante ataque ao paternalismo do solucionismo tecnológico.

How AI Is Helping To Authenticate Artwork: Aplicações de machine learning na história da arte.

After seeing Wi-Fi network named “STINKY,” Navy found hidden Starlink dish on US warship: Compreendo bem isto. Os utilizadores são muito persistentes a contornar os protocolos de segurança digital das organizações. Mesmo que sejam militares a bordo de navios em missões sensíveis. Confesso, ri-me a bandeiras despregadas com esta história.

Is The Pornitor the worst-named computer peripheral in history?: Algures, alguém achou que este nome era uma boa ideia.

Man Arrested for Creating Fake Bands With AI, Then Making $10 Million by Listening to Their Songs With Bots: Esta história é o corolário de alguns delírios sobre IA generativa - criar música com IA, ouvida por bots, e receber as receitas de um streaming totalmente artificial.

Roblox is launching a generative AI that builds 3D environments in a snap: Um excelente exemplo do desenvolvimento de IA Generativa enquanto ferramenta integrada em contextos.

Large Language Models on Small Computers: Usar modelos otimizados para computadores de baixos recursos.

A class of 20 pupils at a $35,000 per year private London school won't have a human teacher this year. They'll just be taught by AI: Coisas que se sabe à partida que vão correr mal. Este tipo de projetos assentam numa visão exclusivamente instrucionista da aprendizagem, na exposição a conteúdos seguido de treino e testagem. Mas a educação não é apenas debitar matéria.

Los millennials han llegado a la política. Y ahora su pasado digital les persigue: É por estas que temos de ter cuidado com a nossa pegada digital, as patetices embaraçosas que fizemos no passado, se estiverem online, vão regressar para nos assombrar. Mas no caso da política, a forma como se lida com o registo de versões menos maduras da pessoa é também importante. Pessoalmente, confiaria mais num político que confrontado com parvoíces passadas mostrava que entretanto, amadureceu do que outro que se sente ameaçado porque a sua imagem contemporânea ameaça desabar. Percebe-se aí qual o real interesse e capacidade do político.

6 ways LibreOffice is better than Google Docs for serious writing work: Sabemos que se começa a instalar desconforto com as práticas predatórias dos promotores agressivos da IA, quando um dos maiores argumentos para usar o LibreOffice é ser uma aplicação local, garantido que os documentos não são indevidamente apropriados para treino de algoritmos.

DOOM on a Volumetric Display: Existe algum dispositivo computacional que não consiga correr DOOM?

BruceS: Chega de natureza, toca a voltar ao ecrã.

How The Taliban Have Changed Afghani Culture After Three Years: Um curioso paradoxo, a forma como este regime de obscurantismo medieval oprime a mulher, mas está a respeitar o património arquitetónico afegão.

People Who Used "Glitch" to Get Free Money From Chase ATMs Are Now in Huge Trouble: Os problemas de quem leva a sério os vídeos do TikTok, ou you can't fix stupid.

Here Comes the Sun: Sinais positivos do crescimento do uso de energias renováveis, a incrementar de forma sustentada.

Madrid expulsa a los patinetes eléctricos de alquiler: retira las licencias a Lime, Dott y Tier y se niega a su vuelta: Como acabar com uma das pragas da mobilidade urbana.

Calypso Returns Home, Completing an Incomplete Crew Flight Test to the ISS: Um final mais feliz do que o esperado para a história triste da Starliner, apesar dos medos, a nave conseguiu regressar. Mas os astronautas que deveria transportar ficaram a aguardar boleia na ISS.

The Mysterious, Meteoric Rise of Shein: Um olhar para o gigante chinês do comércio online da fast fashion, e para as suas práticas de ética muito questionável.

How Ancient Greek Texts In Arabic Translation Started A Medieval Scientific Revolution: Recordar a importância da época dourada árabe para transmitir e evoluir o conhecimento da antiguidade clássica.

La disputa más larga es un misterio de 500 años. España sigue sin saber si le pertenecen unas tierras diminutas frente a Tenerife: Um foco nas nossas Ilhas Selvagens, os rochedos atlânticos que nos ajudam a aumentar mais a nossa zona económica exclusiva.

How Tropical Modernism Became a Tool of Postcolonial Nation-Building: Análise visual ao modernismo da arquitetura das novas nações pós-coloniais, que se queriam afirmar por um modernismo com traços das suas culturas tradicionais.

There is no "woke mind virus": O conceito de vírus mental advém do abuso da teoria dos memes, e não passa de um mau argumento para a chafurda ideológica das guerras culturais.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

La Reconquista contada para escépticos


Juan Galán (2022). La Reconquista contada para escépticos. Barcelona: Planeta.

Um olhar, acessível mas profundo, para a época em que a península ibérica foi islâmica, até à sua extinção às mãos castelhanas. O livro procura dar uma visão abrangente da história que se convecionou chamar de reconquista cristã da península, mergulhando com a profundezas possível numa obra de largo espectro nos detalhes históricos, mas não deixando de apresentar uma visão crítica que assinala a carga ideológica que o mito da reconquista tem - e se ele por cá tem alguma, na Espanha franquista a coisa adquiriu laivos de mito fundacional, deturpando a realidade histórica.

O livro inicia, como não poderia deixar de ser, com a queda do reino visigótico, cujas lutas internecinas abriam caminho à invasão moura. Curiosamente, a forma como uma entidade politica é conquistada devido às suas desuniões internas espelha a erosão do Al-Andaluz, com os reinos cristãos a aproveitar-se da falta de noção de unidade nacional moura e a manipular os múltiplos estados rivais, ou as facções que lutavam pelo poder, no que era essencialmente uma unidade cultural e religiosa, mas não política, dado que o clã e a tribo assumiam maior importância do que a ideia de uma nação unificada. Mostra também como a queda visigótica foi facilitada pelo tipo de estrutura política - um estado sujeito a clãs religosos e tribais, muitos dos quais não hesitaram em aliar-se aos invasores para obter vantagens, e uma população largamente alheia, que não vê grande diferença entre o jugo visigótico e o islâmico, aliás até o parece preferir, dadas as políticas fiscais visigóticas.

Não que os reinos cristãos fossem mais unidos (e vivemos no país que prova isso, sempre a esquivar-se à integração com o poder hegemónico espanhol). Este livro também trata dessas histórias, dos intensos jogos políticos e militares entre reinos cristãos, culminando na hegemonia castelhana que absorveu, entre política dinástica e vitória militar, os restantes reinos e territórios cristãos, exceto Portugal, para criar a entidade política e territorial espanhola.

O retrato da Ibéria islâmica é profundo, com o autor a mostrar-nos um mundo complexo, por um lado brilhante na alta cultura e comércio, por outro vulnerável aos impulsos retrógrados do fanatismo religioso, e sempre dilacerado pelos jogos de poder tribais ou de homens ambiciosos, mesmo no limite da sobrevivência. É tocante perceber que, por exemplo, nos últimos anos do reino muçulmano de Granada, o último reduto do Al-Andaluz, os aspirantes a emir preferiam disputar-se em guerras civis enquanto sofriam a pressão sistemática do reino castelhano. 

Também nos mostra a permeabilidade da religião, contrariando a visão binária da reconquista como uma guerra entre duas religiões. Essa visão é confortável pela sua simplicidade, e ajuda a justificar acontecimentos, mas a realidade é mais complexa e fluída. As fronteiras eram porosas, e as relações entre reis cristãos e emires islâmicos uma teia que incluia vassalagens, casamentos e alianças. Não foi uma luta ideológica, ou melhor, a luta ideológica foi o pretexto para séculos de guerra onde se forjou a Ibéria moderna. Ao nível do povo, esta fluidez religiosa era especialmente notória. Se a religião se confunde com o estado, faz todo o sentido que o povo adopte a religião dos governantes, e se mova entre religiões de acordo com as oscilações territoriais. Só os fanáticos se mantém plenamente fieis, e isto, é um toque de profunda natureza humana na história. Fica claro, na leitura, que o melhor argumento para a conversão dos povos ao islão, ou à cristandade, era fiscal - aqueles que não professassem a religião oficial ficavam sujeitos a impostos e tributações mais pesadas.

Apesar do largo espectro temático, este livro é uma leitura que não se consegue pousar. O estilo é leve, rigoroso, crítico e com alguns toques de humor. A leitura é complementada por inúmeras notas de rodapé, que complementam os temas gerais com detalhes, ou contando histórias do passado.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

The Singularity


Dino Buzzati (2024). The Singularity. Nova Iorque: NYRB Classics.

Descobri este livro através de uma crítica do Guardian, partilhada por Warren Ellis na sua newsletter, que o apontava como uma curiosa visão precursora das nossas atitudes contemporâneas face à IA. Não sendo um livro estritamente de ficção científica, dado que Buzatti foi daqueles firmes escritores mainstream com alguns recortes de fantástico na sua obra, intrigou-me a descoberta da sua visão.

É uma leitura curta e rápida, simples de resumir.  Um modesto professor universitário é desafiado a integrar um projeto misterioso, numa zona militar remota. Tão misterioso, que só quem trabalha diretamente nele ou os militares que guardam a zona sabem do que se trata. Os militares e responsáveis governamentais que aliciam o humilde professor desconhecem o projeto para o qual fazem o convite. A primeira parte do livro é uma piada kafkiana, com o académico a tentar perceber exatamente onde é que se meteu, sem que ninguém lhe consiga contar nada dada a profundidade do segredo.

Será ao chegar ao núcleo interno da zona militar (o segredo é tão protegido que os guardas das zonas exteriores sabem o que estão a guardar) que o académico descobre a sua missão: trabalhar no desenvolvimento de uma inteligência não humana, espalhada por um vasto complexo de computação e sensores que se espraia ao longo de quilómetros. Uma mente eletrónica que habita um computador, capaz de sentir, experimentar e raciocinar.

Se estão a ver aqui uma visao ficcional ao estilo dos anos 60 da inteligência artifial assente em supercomputadores, não estão enganados. Buzzati segue as tropes esperadas, dos cientistas apostados em fazer nascer uma entidade inteligente cujo corpo se compõem de processadores e sensores, às especulações sobre se uma entidade que hoje chamaríamos de digital é capaz de sentir, sonhar, de ter consciência.

Mas o autor vai ainda mais longe, e desvenda-nos o elemento chave deste computador inteligente: um núcleo, que foi programado com a personalidade de uma mulher. Segue os desejos de um dos investigadores, cuja primeira esposa morreu após o ter traído, e que manifesta a sua obsessão pedindo ao cientista encarrgue de desenvolver o núcleo da inteligência que espelhe a personalidade da falecida. Basta ver o campo emergente das apps de companhia/virtual girlfriend via IA, bem como a forma como muitos utilizadores se relacionam com os LLMs, para perceber que Buzzati anteveu uma das formas como antropomorfizamos a IA. Uma antevisão que, claro, está mais baseada em tendências milenares da alma humana do que em previsão futurista, algo que este livro não é.

O final é intrigante, com a inteligência humana artificializada a urdir esquemas para ser morta. Replicar a mente de uma mulher em corpo de máquina leva-a a enlouqecer, o que em si é uma curiosa reflexão sobre a forma como entendemos a dualidade mente-corpo, mostrando o quão a nossa fisicalidade faz parte da nossa consciência.  E, num retoque frankensteiniano, Buzzati mostra como a obsessão humana pode gerar monstros inocentes. A tradução inglesa do título original, Il grande ritratto, remete para temáticas em que o livro não toca.