quinta-feira, 3 de julho de 2025

Andanças com Heródoto


Ryszard Kapuściński (2020). Andanças com Heródoto. Lisboa: Livros do Brasil.

Terminada a leitura, fico com um sabor de profundo humanismo no meu espírito. O livro é um diálogo mental, entre dois viajantes. Temos Kapuściński e as suas experiências de viagem, em si um olhar para um outro mundo, para o nosso passado recente já desaparecido. Crescendo na Polónia devastada na II Guerra, tornando-se jornalista no ambiente opressivo da ditadura comunista, descobre em si uma inusitada vontade de ir conhecer outros países e vê-se, um pouco por acaso, enviado pelas revistas onde trabalha para ir cobrir acontecimentos noutros países. 

Dado o clima da Guerra Fria, a sua carreira de correspondente não o leva aos grandes centros globais, mas sim aos países amigos da cortina de ferro. Dá por si na Índia, no Egipto, em África, na China. Primeiro, como jornalista duplamente inexperiente. Viver num país onde a propaganda se sobrepõe á realidade e a informação é fortemente censurada, nada o prepara para o contacto com outras culturas, das quais tudo desconhece. Kapuściński é resiliente e curioso, dá sempre a volta às mais mirabolantes barreiras com que se depara. Essas histórias formam parte do livro, e acabam por funcionar como retrato da segunda metade do século XX. Visitou uma Índia e Egipto emergentes, nos países africanos recém-independentes, e sentiu na China a dissidência e o afastamento entre estados totalitários aparentemente aliados, mas rivais. São tempos e modos que hoje recordamos na história, característicos da época mais forte da Guerra Fria.

E, no meio destas andanças, um complexo diálogo com um homem que viveu há milénios. Heródoto, pai da História, viajante consumado, que nos deixou o primeiro texto conhecido que fala de povos, de usos e costumes, das façanhas dos reis e da história das nações do mundo que conhecia - o imenso centro do mediterrâneo, com ramificação até à longínqua Índia. As histórias de Heródoto cruzam-se com as experiências de Kapuściński, graças ao livro que o acompanhou desde a sua primeira viagem ao estrangeiro, e que nunca mais largou. O faro de jornalista depressa descobre no homem da antiguidade uma espécie de alma gémea, curioso com as geografias, as pessoas e os seus costumes, mas atento aos pormenores e capaz de distanciamento, de afirmar que o que conta e descreve é a sua percepção, mas também são as visões e percepções daqueles que lhe relataram histórias e acontecimentos. Uma visão relativista, que afirma há mais de dois mil anos que a verdade histórica é condicionada pela percepção daqueles que contam. 

O livro entretece dois tempos, o passado recente de Kapuściński e o distante de Heródoto. Tanto visitamos a China maoista no dealbar da revolução cultural como a Pérsia que se prepara para invadir a Europa. Saltitamos entre os novos estados africanos e a Atenas clássica. Sempre a refletir na humanidade essencial, no humanismo das gentes, quer as pessoas anónimas do dia a dia, quer aqueles que a história imortalizou. Um diálogo entre épocas, entre tempos, mas a mostrar um fio contínuo ao longo da história.