quarta-feira, 27 de março de 2019
Winepunk - A Guerra das Pipas
Joana Neto Lima, A.M.P. Rodriguez, Rogério Ribeiro (ed.) et al (2019). Winepunk - A Guerra das Pipas. Calvão: Editorial Divergência.
Ainda recordo a sessão de apresentação desta antologia numa edição passada do Fórum Fantástico. Recordo especialmente as ilustrações que foram mostradas, que despertaram a atenção para o que me pareceu ser um bem arquitetado mundo ficcional, numa cronologia rigorosa que especulava, com muitos recortes de ficção científica, o que poderia ter acontecido se no dealbar da república portuguesa, a monarquia do norte se tivesse aguentado e desse origem a uma guerra civil. No entanto, durante muito tempo esta antologia parecia ter ficado na categoria de coisas interessantes anunciadas na literatura fantástica portuguesa que nunca vieram a acontecer. Tornou-se um daqueles objetos em que sempre que se falava nele, alguém se perguntava mas ainda não foi publicado, e se refletia na fugacidade deste tipo de projetos. Foi finalmente editado pela Divergência. Pelo resultado, valeu a pena a espera. Os contos são sólidos, com os autores participantes a dar o seu melhor. As ideias de base intrigam e despertam a imaginação. As ilustrações de Rui Alex recriam o estilo gráfico da ilustração popular de final de século, com um toque decididamente steampunk (oops, winepunk), sendo evocativas e visualmente interessantes. Não resisto a uma nota final quanto ao design gráfico do livro, muito bem conseguido exceto num pormenor. Ou estou a ficar pitosga, ou a decisão de escolher letras com um corpo pequeno e tom cinzento sobre páginas de fundo amarelado não é daquelas que facilite a legibilidade do livro. Ou então, é um convite subtil para o ir ler lá para fora, numa esplanada ao sol, bebendo uns cálices de vinho do porto enquanto se lê os contos.
A Companhia Zero: Cabe a Joel Puga o abrir das hostilidades (piada intencional) desta Guerra das Pipas. E fá-lo em grande estilo. O seu conto é interessante não só pela forma como nos transporta às trincheiras desesperadas, mas por tudo o que não nos conta e deixa intuir, levando a que o leitor construa uma visão mais alargada do mundo ficcional do que o diretamente expresso no conto. Contado como narrativa epistolar, o conto leva-nos a conhecer o desespero de um oficial monárquico subtilmente condenado à morte, por ter pais que se passaram para a república. Não terá de enfrentar um pelotão de fuzilamento, a sentença é mais maquiavélica: liderar um batalhão de estropiados, inadaptados e doentes mentais que são carne para canhão, soldados-tampão para as forças da monarquia. O seu uso no campo de batalha servirá para atrasar o invasor, e já agora, eliminar aos cofres monárquicos o peso de sustentar incapazes. Na sua única batalha, condenados à partida, terão de enfrentar inimigos que são claramente o resultado de experiências genéticas.
A Ira da Ferreirinha: Como habitual. Carlos Silva dá-nos um conto sólido, num misto de aventura e reflexão. Envolve a personagem histórica que foi D. Antónia Ferreira, nome incontornável quando se fala do vinho do porto, enquanto vai revelando pormenores sobre o milagre energético que sustenta a monarquia do norte neste mundo ficcional. Tudo é contado seguindo o ponto de vista de um homem despeitado, que para se vingar de ter sido desprezado pela Ferreirinha convence os republicanos a lançar um ataque aéreo com armas biológicas, que irá destruir a base do poder monárquico. Bom conto de Carlos Silva, que mistura um passo sólido no mundo ficcional Winepunk com elementos de história muito reais, referenciando a epidemia de filoxera que, no fina do século XIX, aniquilou a produção vitivinícula portuguesa.
In Vino Veritas: Na contribuição de João Ventura para a antologia, as videiras são instrumentalizadas como arma, graças à sabedoria de um indiano em dívida para com um dos nobres da monarquia do norte. Com as suas ministrações, o vinhedo de uma das plantações que alimenta a produção de energia sustentadora do regime aumenta, mas o sábio tem mais um truque para ensinar, com uma poção que torna as videiras numa terrível arma. Ventura conduz-nos ao longo da sua narrativa com passo ritmado, misturando intriga com aventura enquanto aprofunda as premissas do mundo ficcional winepunk.
Uma Conspiração Perigosa: Este sólido conto de João Rogaciano mergulha-nos nas intrigas conspiratórias das sociedades secretas. Nele, um agente da polícia secreta real infiltra-se num grupo de terroristas republicanos que conta com elementos ao mais alto nível do governo monárquico, e usa atentados à bomba para disfarçar os testes da sua arma secreta, uma máquina capaz de provocar terramotos.
Nunca Mais: Sem surpresas, o conto de João Barreiros é o que apresenta maior amplitude na antologia, quer em duração quer na ambição. E, novamente, sem surpresas, é uma barragem de fogo intensivo de ideias implacáveis. Sonhadores alimentados por vapores vínicos que sonham com tecnologias futuras, algo que é uma armadilha para exterminar a humanidade; criaturas bio-construídas, a genética manipulada e retalhada ao serviço das armas; todo um palco de decadência retrofuturista, naquele tom de detalhada ruína apocalíptica que Barreiros consegue fazer tão bem. Confesso que passei boa parte da leitura à espera do momento em que o Kraken iria destruir a cidade do Porto, mas o autor é malévolo, só nos mostra a cidade destruída num futuro do qual emanam tentáculos de conhecimento que irão modificar o passado. Este conto é Barreiros igual a si próprio, implacável, erudito e apocalíptico.
Os Engonços de Quionga: Na sua primeira contribuição para a antologia, Rhys Hughes recorda-nos gentilmente dos episódios esquecidos da I guerra mundial em África, com os combates entre portugueses e alemãs no norte de Moçambique. Mas a história não se passa nessa época, vai para um futuro após a queda da monarquia do norte, em que os ventos de guerra voltam a soprar na Europa. Os residentes na esquecida colónia de Quionga temem o regresso dos alemães, e viram-se para as estranhas invenções de um sábio luso-muçulmano que, utilizando as tecnologias aprimoradas na monarquia do norte, vai permitir a deslocação do território em direção a Portugal utilizando pernas mecânicas. Imaginem a jangada de pedra, mas em saltos de canguru com patas mecanizadas. Enquanto este pedaço de áfrica se escapa em direção à Europa, vai-se desagregando, e a Portugal só chegaram fragmentos. Um toque do surrealismo fantástico de Rhys Hughes no universo ficcional winepunk.
A Loja do Desejo Agridoce: Uma continuação do conto anterior do mesmo Rhys Hughes, que aqui nos mergulha num profundo irrealismo romântico, traçando o destino luso-tropicalista dos restos dos vestígios de Quionga. É um conto que tem pouco a ver com o mundo ficcional da antologia, embora lhe seja tangencial, e é-me difícil não ver nos nomes de alguns dos personagens um sorridente piscar de olhos a algumas figuras destacadas do nosso panorama literário de FC e fantástico. No fundo, o conto é uma transmutação da forma como o escritor nos vê, naquele estilo poético que lhe caracteriza a obra. E este é um dos melhores títulos de contos que li nos últimos tempos.
Dicionário Ilustrado da Monarquia do Norte: AMP Rodriguez encerra a antologia numa imitação do estilo árido de biografia curta. Olhando para as histórias ficcionadas de mulheres reais no quadro do mundo ficcional Winpunk, alarga o espectro desta história que nunca existiu, dando-nos vislumbres sobre os acontecimentos pseudo-históricos que se desenrolaram nesta imaginária monarquia do norte.