quarta-feira, 19 de março de 2014
Trillion year spree
Brian Aldiss, David Wingrove (1988). Trillion year spree : the history of science fiction. Londres: Grafton Paladin.
Onde começa a FC? Qual o texto seminal de onde germinou esta forma literária? Aldiss é muito preciso. Rejeita textos clássicos fantasistas como o de Luciano de Samosata ou as viagens fantásticas dos autores enciclopedistas do iluminismo e focaliza-se em Frankenstein como a raiz da imensa floresta da FC. A confluência do romance gótico com visão científica, os traumas pessoais da autora sublimados através de narrativas que fogem ao ocultismo mágico e contemplam as possibilidades científicas, bem como a responsabilidade, arrogância e consequências imprevisíveis do progresso que confluem no drama do Viktor Frankenstein, e o seu lado de romance-périplo que através das aventuras dos personagens leva o leitor numa viagem dupla por entre cenários fantasistas e ideias progressistas são os elementos que Aldiss acusa como elementares para o género.
Para lá de Shelley, Aldiss leva-nos a Poe como outro dos nomes germinais do género. Mas não o faz cegamente. Observa que a grande força narrativa de Poe está no seu lado mais tenebroso e obsessivo e reflecte que as suas incursões na proto-fc são intencionalmente patéticas, como se recusasse ir tão longe nos domínios especulativos quanto vai nos das trevas obsessivas. Então porque é que Aldiss o salienta? Pela sua mestria no domínio do conto, onde de facto foi precursor. Note-se que a capacidade sintética da narrativa curta é uma das grandes características da FC.
Aldiss não esquece outros textos que exploram diversas temáticas que irão coalescer na Ficção Científica. Regressa aos périplos planetários com Luciano de Samosata, Kepler e Voltaire, vai aos proto-universos paralelos de Margaret Cavendish e analisa a longa tradição das utopias e distopias num arco literário que inclui Platão, More, Swift, Defoe, Butler e Zamiatin. As raízes do totalitarismo mecanicista de We encontram-se na utopia esclarecida da República platonista.
Na era Vitoriana Aldiss estabelece a génese do ideário que gerou a FC contemporânea. Não é uma afirmação inocente. Esta é a era em que o conceito de progresso se afirmou, com a ideia que o progresso científico geraria progresso tecnológico e social. Este é um substrato a partir do qual podem nascer visões de futuro, e foi o que aconteceu. Quer a partir do progressismo social de Gilman, da visão de superioridade tecnológica de Bulwer-Lytton, ou da caricatura que traduz um fascínio visceral, difícil de definir, com o artefacto tecnológico patente em Hoffmann ou Villiers d l'Isle Adam. É deste substrato que partem Verne e Wells, de formas diferentes mas profundamente influentes.
Verne, como Robida e outros escritores similares, repensa a tecnologia, a grande novidade da época, e utiliza-a de forma particularmente eficaz como elemento em narrativas de aventuras que têm cativado gerações. Verne não é um verdadeiro futurista, colocando visões tecnológicas arrojadas ao serviço de uma visão de contemporaneidade. Wells parte de uma base similar, mas consegue projectar mais longe as preocupações da emergente era industrializada do progresso técnico. Verne deslumbra-se, Wells preocupa-se com as consequências e a sua mensagem é a de que serão profundamente transformativas. E, no caso das passagens mais fortes de Time Machine, irrelevantes. No longo amanhã tudo será reduzido a pó.
Para além de Wells Aldiss traça o desenvolvimento da FC enquanto forma de literatura popular, onde a preocupação literária fica para segundo plano e a ciência e tecnologia são os elementos chamativos para atrair os leitores. Neste saco Aldiss coloca obras tão díspares como as Edisonades, robots a vapor nas pradarias ou antevisões de guerras futuras que se tornariam horrendamente prescientes poucos anos depois na I guerra. Aldiss também faz notar uma atracção progressiva pelo exótico e selvagem, pela decadência da visão limpa da utopia invadida pela selva primeva. Fala-nos aqui do aventureirismo selvagem de H. Ridder Haggard, do renascer do mito telúrico primevo de Stoker ou dos horrores tecnológicos de M.P. Shiel e até o espírito libertário de Jack London. Parecem nomes curiosos para debater a génese da FC mas Aldiss tem uma visão abrangente, sabendo que o género vai muito para além da ficção especulativa de base científica, indo beber a variadas fontes que por sua vez o modelam e transformam.
Esta é a ponte que leva Aldiss ao trabalho de Edgar Rice Burroughs. Escritor prolífico, foi talvez o primeiro escritor profissional a viver da sua prosa de aventuras exóticas. Não o primeiro, claro, mas talvez o primeiro dos escritores de best sellers constantes que mina até à exaustão uma ideia que agradou ao seu público. Aldiss foca-se particularmente neste aspecto, demonstrando que em Burroughs o rigor científico se esfuma, a visão progressista é deixada para trás pelos conceitos orientalistas do fascínio pelo exótico. Mas legou-nos histórias que perduram, e um gosto pela narrativa de aventura que está mais para o lado do fantástico do que de uma FC que exige rigor científico. É esse o outro ponto onde Aldiss foca: Burroughs está na fronteira entre a narrativa de aventuras com bases progressistas e a pura fantasia de sabor exótico. É com este argumento que o autor olha para Hogdson, Clark Ashton Smith ou o incontornável Lovecraft, como fornecedores de visões proto-surreais do fantástico que não são estritamente horror ou fantasia.
Ao olhar para os anos 30 é impossível fugir aos pulp, e Aldiss não o faz. Antes, opta por um ataque visceral a Hugo Gernsback, editor da seminal Amazing Stories. Detestar não é conceito suficiente para descrever o ataque de Aldiss. Ódio abominável aplica-se melhor. Para este autor, Gernsback representa as duas vertentes que mais detesta nas concepções de FC: a bastardização do género, banalizado em histórias simplistas de aventuras com adereços futuristas, e a escrita a metro sem preocupações de qualidade. Fica claro que Aldiss abomina aquele futurismo optimista retro que William Gibson satirizou com elegante nostalgia no conto Gersnback Continuum.
Despachando a génese dos pulps, Aldiss volta-se para o trabalho de autores considerados parte do cânone literário tradicional mas cuja prosa roça, toca ou mergulha descaradamente na ficção científica. É nesta luz que analisa o absurdo surreal de Kafka, o humanismo de Kapec, ou o proto-psicadelismo social-progressita de Aldous Huxley. Não esquece C.S Lewis, que sendo mais conhecido como fantasista é o autor de uma curiosa e bem urida triloga de FC que mistura o misticismo mítico com uma visão aventureira do sistema solar. Aldiss interliga o trabalho destes autores pela constância de uma visão que vai além do real e pela óbvia reacção ao horror da primeira guerra, muro onde se estamparam os futurismos radicais que prometiam um amanhã construído com fé cega na tecnologia. Termina com uma curiosa comparação entre a FC mítica e fortemente poética de Olaf Stapledon com as pretensões mitológicas do mais popular mas de prosa mais banal Tolkien.
Se as visões a metro de aventura fantástica/futurista editadas ao estilo de Gernsback são aberrantes para Aldiss, o estilo editorial marcante de John W. Campbell dá o mote para uma análise dos autores da ficção pulp que se tornaram grandes mestres da FC. A preocupação do editor com uma boa mistura de especulação ´com qualidade literária legou-nos o trabalho de Jack Williamson, Pohl, Van Vogt, Gunn e Bradbury, entre tantos outros, ao longo de uma influente carreira como editor. Mas fica sublinhada a dicotomia entre duas grandes vertentes da FC. Temos a aventura futurista, onde a plausibilidade não é importante e a prosa é muitas vezes sofrível, apesar dos altos expoentes de EE Doc Smith; e a FC com preocupação literária, pensada a partir de ideias e ambientes que não são necessariamente dependentes de um artifício tecnológico.
Abre-se o caminho para os anos 50, onde o optimismo começa a esfumar-se perante o rescaldo da II guerra e das novas super-armas capazes de destruir a humanidade. Perde-se a fé cega no progresso e na perfeição tecnológica. A razão aplicada, ao contrário do quadro de Goya, é geradora de monstros e estes encontram lugar no melhor da ficção de Asimov, Bester, Vonnegut, Miller Jr., Damon Knight ou Blish. Aldiss sublinha o negativismo e paranóia subjacentes à FC nos anos 50 com uma visita ao incontornável 1984, onde se mostra a queda de todas as utopias. Mas nem tudo é obscuro nesta época e Aldiss avalia o crescimento literário de Bradbury, que nunca abandonou o deslumbre infantil para com o futuro, embora lhe reconheça os fantasmas, e o sublimou num realismo mágico que ultrapassou as fronteiras do género com uma invejável candura. Essencialmente, Aldiss mostra que independentemente das preocupações dos autores a FC atinge a maturidade literária nesta época.
O livro termina com três notas. Primeiro, Alidss vê-se obrigado a olhar para os grandes sucessos do cinema que trouxeram a FC para as luzes da ribalta. É claro que a estética e o ideário de filmes como Star Wars, Blade Runner e 2001 não lhe agrada. Vê-os e ao seu sucesso como uma simplificação bastardizante do género, que se afasta do intelectualismo pelo qual luta ao longo do livro. O torcer de nariz é tão pronunciado que se sente. A finalizar o século XX (e o livro) Aldiss olha para o lado mais intelectual da FC, o movimento iniciado por Moorcock na revista New Worlds que nos legou uma visão de FC experimentalista, literáriamente complexa e em busca de novos temas e estéticas. Analisa a herança de Moorcock e Ballard e o seu reverso, o regresso dos clássicos Asimov, Heinlein e Clarke como detentores do estatuto de visionários multimilionários graças aos best-sellers repetitivos que vendem como pães quentes.
Para encerrar, Aldiss faz um longo apanhado dos autores e tendências da FC nos anos 80. É curioso ler sobre vozes hoje estabelecidas como Greg Bear, William Gibson, Bruce Sterling, David Brin e outros como jovens promessas cujas estéticas apontavam para possíveis novas vertentes de exploração da FC. Outros nomes desvaneceram-se, e outros renderam-se ao comercialismo que Aldiss tanto critica ao longo desta obra.
Ufa. O título aponta para o vasto alcance ambicionado por Aldiss. Esta é de facto uma história da FC, pesquisada e contada por um dos seus praticantes. Não é uma narrativa isenta. Aldiss não se coíbe de opinar e fazer transparecer o que pensa ao longo do livro. Isto é particularmente visível na forma como arrasa Gernsback, Hubbard ou qualquer vertente da FC com que discorde. Mas não deixa de ser um observador presciente, capaz de auto-criticar os vícios do género, entre os quais a predisposição para lutas internecinas. Pela abrangência e profundidade, este é um livro incontornável para quem quer ficar a conhecer bem o que é a ficção científica.