sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Sonhos urbanísticos

" Essa ilha tem propriedades admiráveis: normalmente é uma ilha de vegetação agrícola e umas esparsas construções de um piso, com um sistema precário de diques e comportas e um vago projecto turístico onde se sonha um campo de golfe e até um heliporto, mas nas noites de véspera de Lua nova muda de aspecto, adquire características mágicas e surge no meio dela a tal Cidade das Torres que desaparece de novo ao nascer do Sol do dia seguinte. Nessa Cidade das Torres, e sobressaindo no meio do conjunto dos seus inúmeros edifícios, ergue-se uma torre grandiosa em forma de sucessivos octaedros truncados, sobrepostos, a Biblioteca De Todos os Livros Que Não Existem - B.D.T.L.Q.N.E. - , e os livros que não existem são milhões de milhões de milhões, porque nessa formidável biblioteca estão arrecadados não só todos os livros que se perderam ou foram destruídos, como os 700 mil manuscritos da Biblioteca de Alexandria e muitíssimos outros, mas sobretudo os mais geniais de sempre, os que nunca chegaram a ser escritos..." (p. 108)

"Continuaram a caminhar e reconheceram a luminosidade anil-esverdeada e as eternas neblinas que costumavam pairar na estranha urbanização da Cidade das Torres, cujas estruturas turriformes de aparência enlouquecedora pejavam o espaço em antagógica desordem... Algumas das torres faziam lembrar poliedros irregularíssimos suspensos sem que nada os segurasse, outras tinham o aspecto de altos torreões, ou de paralelipípedos tubulares ou até de cilindros esguios e mal equilibrados semelhantes a Torres de Pisa com escoliose, outras ainda viam-se envolvidas em placas de silício como asas desfraldadas, com incrustações de esmeraldas, e por entre tudo aquilo emergiam de vez em quando uns esquisitos promontórios de mármore e cristal-de-rocha e metal corroído entre escadarias sem começo nem fim, e colunas e belvederes subindo e descendo em translação quadridimensional..." (p. 129)

" (...) e correu na direcção do zigurate, ou da tenebrosa Torre de Babel construída em superdegraus sobrepostos em cujo interior funcionavam e giravam engrenagens, peças, rodas, alavancas, contrapesos, correntes, molas e muitos outros mecanismos de relojoaria. Depois de muitas voltas em vão, lá descobriu por fim uma entrada e penetrou naquele infernal edifício que ela aliás já conhecia doutros tempos, sabia que se tratava de um espantoso aparelho temporal que fora criado no mesmo dia em que o Demiurgo criara o planeta Terra, era um relógio em que cada situação específica e crítica contava os minutos do destino e por isso se chamava Carrilhão do Karmo, ou Relógio do Destino. O seu gigantesco mostrador achava-se encimado por uma placa com a terrível sentença latina alusiva às horas: Omnes vulnerant, extrema necat - todas ferem, a última mata." (p. 141)

Do conto O Códice Abandonado de António de Macedo.

António de Macedo (2007). A Conspiração dos Abandonados: Contos Neogóticos. Sintra: Zéfiro.