terça-feira, 12 de abril de 2022

The Ark Before Noah


Irving Finkel (2014). The Ark Before Noah: Decoding the Story of the Flood. Nova Iorque: Nan A. Talese.

Descobri o inimitável Irving Finkel com o delicioso First Ghosts, sobre as tradições sumérias e assírias ligadas ao além. Um livro delicioso, erudito, escrito com uma enorme paixão pela língua, costumes e literatura de povos há muito desaparecidos, quase esquecidos, mas que deixaram marcas indeléveis na cultura global. Uma dessas marcas é bem conhecida dos crentes da mitologia judaico-cristã, e parte integrante do substrato cultural ocidental - a história de Noé, da arca e do grande dilúvio.

Mesmo sabendo que a bíblia, nos seus múltiplos livros e versões, recolhe e incorpora muitas tradições e literaturas dos diversos povos do médio oriente, não deixa de ser algo desconcertante deparar com no Épico de Gilgamesh  com a história de Utnapistim, o ancião que construiu a mando dos deuses uma arca para salvar pessoas e animais de um grande dilúvio que arrasou a humanidade. A literatura de um povo esquecido, as lendas deixadas em tabuinhas ocultas debaixo das areias dos desertos iraquianos, sobreviveu no corpo dos textos religiosos fundamentais das religiões abrâmicas. Mais do que o lado mitológico, é essa capacidade de sobrevivência memética que fascina, especialmente se nos recordarmos que O Épico de Gilgamesh, uma das mais antigas obras literárias da humanidade, esteve perdido durante milénios. Só a partir do século XIX, com as expedições arqueológicas que começaram a recuperar o passado da Assíria e Suméria, os fragmentos desta maravilhosa obra literária regressaram à memória humana. E, com esse regresso, percebemos que parte dessa tradição cultural nunca se perdeu, sobreviveu sendo modificada e incorporada noutras tradições.

Finkel vai mais longe, e foca-se num outro poema assírio, o Épico de Atracasis. Vê aqui a origem do mito de Noé, bem como uma variante da história de Utnapistim, e um indício alargado da religiosidade dos assírios. Finkel disseca o poema, mostrando-nos que é um manual para a construção de uma arca, versão gargantuesca dos milenares barcos de junco que ainda no século XX navegavam pelos pântanos do Eufrates. Mostra ainda como a incorporação destas histórias na bíblia se terá dado com a deportação das altas classes do reino de Judá, levadas por Nabucodonosor para a Babilónia como reforço político face à rivalidade de poderes com o Egipto. 

Como sempre, Finkel é erudito, e apesar do forte academismo deste livro, leve e divertido. Falar sobre tabuinhas que se esboroam nas prateleiras poeirentas dos museus parece à partida tema árido, mas Finkel é um claro apaixonado por aquilo que faz, pelo estudo e decifração dos artefactos de uma cultura milenar. Essa paixão dá a faísca ao livro, torna-o fascinante, encanta-nos com o nítido brilho no olhar do autor, enquanto nos recorda a forma como a nossa cultura contemporânea tem as suas raízes num longo e entretecido substrato milenar de ideias e mitos.