António Lima (1997). O Fim dos Séculos. Lisboa: Bertrand.
"Olhe, tinha esse livro a 10 euros, mas passei para 5, ninguém estava interessado..." conta-me o alfarrabista, atrás da sua banca na Ericeira. Por momentos, temi que estivesse a aumentar o preço. Peguei no livro por pura curiosidade com uma parte da história recente de Portugal que conheço mal, o fim da presença portuguesa na Índia. "Sabe", continua o alfarrabista, "esse livro parece um romance, mas não é, é a história dos últimos dias na Índia, contado por um tipo que estava lá, viveu esses dias".
O vendedor de livros não mentiu (nem me subiu o preço do livro). Lê-se, de facto, como um romance, porque o autor organiza as suas memórias dos anos que passou no Estado da Índia de uma forma muito narrativa. Quem não for avisado, pode pensar que é mesmo um romance. Mas não. Esta é a história de um médico, que usou o serviço militar para poder tirar o curso de Medicina, e quando acha que já pode respirar, tendo-se visto livre de incorporações para África, e pensar em seguir uma carreira médica dos hospitais de Lisboa, se vê mobilizado para o sonolento resquício imperial da Índia portuguesa. Isto, no final dos anos 50, com a independente união indiana a aumentar a pressão constante sobre Portugal para que descolonizasse e devolvesse os territórios que ocupava há mais de 400 anos. Nada disto interessa ao médico, que na verdade está imensamente agastado pelo entrave que a mobilização para Goa coloca à sua vida pessoal.
Dura pouco, o mal estar. Enviado para Diu, ainda mais calmo e sonolento que Goa, o médico depressa se rende aos encantos da vida colonial. Tem uma missão médica a cumprir, que o anima e lhe dá experiência, e é depressa seduzido pela vida de expatriado, pelo exotismo das populações, o peso histórico da presença portuguesa. Fica contaminado pela nostalgia do império, assumindo a visão que a longevidade da presença portuguesa naqueles territórios lhes deveria conferir um estatuto próprio, um país diferente, mescla de europa e índia. Não tem, no entanto, ilusões sobre a real influência política e militar portuguesa, e é bastante crítico do sistema de castas indiano. O romantismo colonial deste homem assenta no lado cultural, nos monumentos e património material e imaterial.
Regressado a Goa, com novas responsabilidades na criação de uma rede de medicina de apoio às populações, apercebe-se cada vez mais das fragilidades da presença portuguesa, do longo desleixo a que a região foi votada, da inexistência de infraestruturas para lá do simbólico. Do abandono de um resquício colonial que só era invocado por razões cerimoniais. Apercebe-se também da iminência de uma invasão, embora o seu cada vez mais profundo conhecimento da realidade goesa nunca o leve a questionar o óbvio, a legitimidade da presença portuguesa.
O final do livro traz-nos a queda do império em Goa. Uma queda patética, do ponto de vista imperialista, uma invasão rápida onde, apesar de alguma fútil resistência e mortes a lamentar, o desfecho é o inevitável. Tornado azedo pela postura oficial da ditadura portuguesa, que ordena um inútil combate até ao último homem, uma espécie de götterdämmerung à portuguesa da colonização na Índia. Uma postura ridícula, ainda mais pela enorme falta de preparação e material das reduzidas forças portuguesas, equipadas com armas obsoletas e munições fora de prazo. Tudo isto é observado de forma meticulosa nos capítulos finais, onde o autor nos relata a invasão, a sua experiência como prisioneiro de guerra (com uma tentativa falhada de fuga), a longa demora no regresso a Portugal, e o desprezo oficial de um governo ditatorial por aqueles que se recusaram a cumprir ordens estúpidas.
A história não é a preto e branco, e não podemos ler este livro como um relato crítico. Representa a experiência de um homem, inicialmente adverso a estar na Índia, mas depressa seduzido pelo sonho colonial, pela vida como membro de uma elite. Alguém que procura razões históricas para legitimar a ocupação de territórios, crítico face ao real investimento que os ocupantes fazem versus o que reclamam fazer. Fã de uma portugalidade algo estado-novista, de um país do Minho a Timor, mais pelo sentimento de imponência do que pela realidade política. Aqui, sublinha sempre que se os governos nunca foram grande coisa, apesar disso há um legado português nas populações, na religião.
Claro que daí a manter a obstinação de ocupação de um território , invocando a história e o património, sonhando com federações ou autonomias mas sempre dentro da ideia romântica de um Portugal como país global, vai uma enorme distância. Algo óbvio para nós, com o distanciamento temporal, histórico e crítico. Não o era para uma pessoa da época que, pelo que transparece no que escreve, não prestava grande atenção à política nem criticava o regime ditatorial em que vivia. Este livro vale pelo que vale, como registo da experiência de alguém que viveu os últimos dias da necessária queda de um território ocupado, com um ponto de vista que para nós é questionável, entre saudosismo colonialista e nostalgia pela vida na Índia. É interessante como documento histórico, e se soubermos manter as devidas distâncias ideológicas, permite conhecer melhor este episódio do passado recente português. É de sublinhar que é muito fácil ler este livro como forma de reclamar visões do passado grandioso, em apoio a posturas conservadoras. Pessoalmente, prefiro lê-lo como relato, recusando a sedução pela nostalgia colonial.