Altino do Tojal (1979). O Oráculo de Jamais. Lisboa: Sá da Costa
Sabemos que nos espera o inesperado quando lemos que o cão que acompanha um par de caçadores se chama Solipim, e gosta muito de tocar pandeireta quando sente que o dono está triste. Embora este delicioso romance de Altino do Tojal não se debruce muito sobre dotes musicais caninos. Segue por outros caminhos, sempre inesperados, num formato narrativo de tríade muito similar ao de Orvalho do Oriente, a outra obra de Altino que li. Não é muito correto tirar ilações sobre a obra de um escritor com dois meros livros lidos, mas o paralelo estrutural é visível, os dois romances seguem a mesma estrutura. Cruzam um número mínimo de personagens principais, o primeiro capítulo foca-se mais numa delas, o segundo noutra, e o terceiro é um devaneio de fantasia que termina naquele que é o pior dos artifícios literários - o "afinal, era tudo um sonho".
Nos ermos isolados das serranias transmontanas, um improvável par de caçadores calcorreia o matagal. Um está armado, mas a sorte de caçador não lhe sorri. Outro optou por se esquecer da arma em casa. O par dialoga num azucrinar constante, entre a inépcia de ambos. A improbabilidade agudiza-se quando se percebe que não são velhos companheiros de caça, mas dois recém-conhecidos, em que um se deixou seduzir pelas promessas de terreno farto de lebres e láparos do outro. Talvez, revela-nos o livro, o caçador que deixou a caçadeira em casa tenha vindo à serra para caçar memórias. E esta parte da história arruma-se com o caçador armado mas azarado a regressar à carrinha, para se abrigar da chuva que aí vem, junto com o seu mastim exímio na caça e no toque de pandeireta.
Dez anos se passaram desde que o homem sem caçadeira andou a caçar naquelas serranias. Onde, num local ermo, encontrou uma jovem camponesa que conseguiu seduzir, mas acabou por deixar. Afinal, a sua vida não era ali, mas na grande cidade mais a sul. Desafiar um novo companheiro de copos a vir descobrir os terrenos de caça transmontanos foi a desculpa que encontrou para regressar, num misto de saudade e curiosidade pela vida da camponesa que seduziu e deixou. Tem aprazíveis memórias dela , e do seu cão, mas não do pai da rapariga, um velhote dedicado a estudos esotéricos que vive no meio de estranhos livros. Dez anos passados e a memória dos caminhos não o trai. Por entre penedos e urzes lá chega ao casebre onde, uma década antes, conheceu felicidade.
Não encontrará a então jovem, agora madura, camponesa rodeada da manada de filhos e cuidadora do velho pai que espera. O casebre está deserto, cheio de livros empoeirados, e nas redondezas o homem encontra uma criança com ar de dez anos, magra, que carrega a bengala do velhote leitor, do qual é neto, e um saco com os seus ossos, pormenor que não é tão tétrico quanto aparenta. O homem depressa percebe que a criança quase selvagem que vive por ali tem de ser seu filho, e que tragédias que nunca conheceremos lhe levaram a mãe e o avô. O homem contemporiza, percebe que a criança é sangue do seu sangue, mas tem os seus filhos e mulher na cidade, imagine-se o escândalo que seria ficar a conhecer-se o resultado de um fugaz prazer há uma década? Dá de comer à criança, ouve as suas histórias, dá-lhe um capote e alguns objetos e, mal o sente a dormir, devolve-o ao abandono, com a intenção de avisar as autoridades de que há uma criança abandonada na montanha.
Nunca saberemos se as autoridades chegam a saber alguma coisa. Mas sabemos que o grande sonho da criança é encontrar a alma do avô, que ela sabe estar entre as estrelas. É por isso que carrega os seus ossos no saco, junto com a bengala e os óculos, para lhos devolver quando o reencontrar. Pelo que o avô lhe ensinou, apenas o Oráculo de Jamais lhe poderá indicar em qual das muitas estrelas o poderá reencontrar. Mordendo uma maçã, o rapaz descobre-se dentro da enorme biblioteca que a maçã alberga (maçãs mordidas que revelam bibliotecas, uma metáfora simples e poética sobre mitos cristãos e conhecimento). A biblioteca é na verdade a porta para um mundo maior, onde encontrará animais que o ajudam a chegar ao Oráculo de Jamais. A caminhada é dura e plena de estranhos encontros, e quando o Oráculo revela ao rapaz a que estrela se terá de dirigir para encontrar a alma do avô, é acordado pelo ribombar dos trovões. Só na casa arruinada, pega nas ofertas que o homem que nunca saberá ser o seu pai lhe deixou, na sacola com os ossos do avô, e sai.
O artifício "foi tudo um sonho" é útil para que uma obra com óbvias incursões dentro do fantástico não o assuma, e se deixe ficar pelas temáticas da literatura convencional. Por cá sempre se temeu o fantástico, visto como estigma que retira seriedade aos livros. É curioso notar que no romance de Altino de Tojal que li anteriormente, a melhor parte, um delírio delicioso com balões, dragões e mesquinhos deuses menores chineses, também é descartada como um sonho. Oráculo de Jamais também nos leva da realidade banal ao onirismo puro, numa espiral de pequenas estranhezas que leva o leitor ao momento de enorme beleza que encerra o livro, embora a história termine com uma devolução ao real. Esta reticência com o artifício do sonho é coisa minha, notem. A leitura deste pequeno e delicioso romance foi, digamos, deliciosa e o livro é daqueles que nos encanta, entre tristeza, estranheza e sonho.
Livro descoberto graças à cronologia da Ficção Especulativa Portuguesa do Projeto Adamastor, que identifica esta obra como pertencente à literatura fantástica, e me permitiu tirar a dúvida do título numa tenda da Feira do Livro de Lisboa.