Aquilino Ribeiro (1982). Romance da Raposa. Lisboa: Bertrand.
Regressar a um texto clássico da minha infância, e perceber que não perdeu o encanto. O regresso foi pro mero acaso, em busca de ideias para uma banal tarefa de iniciação ao processamento de texto para os meus alunos mais novos, pensei, e porque não dar-lhes umas palavras de Aquilino?
Sata-Pocinhas, a raposa fagueira, lambisgueira, e mais uma série de belísimos epítetos com que Aquilino a descreveu no seu romance, continua hoje a ser-me tão fascinante como quando a conheci. Ou talvez mais, porque se antigamente as aventuras da raposa me divertiam, hoje consigo perceber que a esperteza implacável da Salta-Pocinhas é uma condição de sobrevivência. É o que lhe permite sobreviver e prosperar num mundo onde imperam os fortes. E tantas das peripécias da raposa são daquelas que mostram os pés de barro dos mais fortes.
Sei hoje, também, em grande parte graças ao Lisboa Triunfante de David Soares, que este aparentemente inocente conto infantil de Aquilino se insere numa tradição europeia que usa a raposa matreira como metáfora para a insubmissão, para o afirmar da liberdade individual face Às pressões de quem exerce o poder. Bem, mas de inocente o conto de Aquilino tem muito pouco. Com mel, ensina-nos a violência das sociedades, o caráter impiedoso da natureza, e a importância de saber usar a inteligência para resolver problemas. E, também, a necessidade de se ser impiedoso face aos outros, para poder afirmar-se como se é. Mesmo que isso choque a moral e os bons costumes.