Leviathan Wakes, James S.A. Corey
A série Expanse dá-nos um futuro não muito distante em que a humanidade se espalhou pelo sistema solar. A Terra e Marte são os grandes centros de poder politico e militar, com a míriade de entrepostos que coloniza a cintura de asteróides, as luas de Júpiter e estações espaciais intra-solares como territórios disputados entre a semi-independência e a ingerência das potencias do sistema. São civilizações interdependentes mas de culturas radicalmente diferentes. As fronteiras do sistema foram abertas graças a uma tecnologia de propulsão nuclear que permite às naves atingir velocidades sub-lumínicas e encurtar os tempos de travessia entre planetas e entrepostos, e nada mais para além disso. A humanidade está trancada nos limites do sistema solar. Nada de viagens instantâneas e warp speeds. A série procura ser verosímil mesmo quando se vê obrigada a esticar os limites da ciência. Uma boa parte do prazer desta série é a forma como as peças da linha narrativa se encadeiam com uma lógica que não conseguimos antever. O resto são as empolgantes batalhas espacias entre naves. O livro é essencialmente uma belíssima desculpa para imaginar e descrever ao pormenor as tecnologias futuristas das aguerridas marinhas espaciais. Mistura de forma exímia acção, aventura e intriga num sólido mundo ficcional de iconografia clássica. Infelizmente, após este brilhante primeiro livro, os autores passaram a série restante a contar essencialmente a mesma história.
Seveneves, Neal Stephenson
Livro de visão ambiciosa e utopia desenfreada onde a humanidade é levada à beira da extinção para se reinventar. Assenta numa Hard SF duríssima, cheia de especulação futurista informada que extrapola tendências e tecnologias contemporâneas no domíno da genética, aeroespacial, informática e engenharia estrutural. Tão hard que Neal Stephenson lida com a tragédia imediata com a destreza emocional de um autista profundo. A vida na Terra é aniquilada por uma chuva de pedaços da Lua, estraçalhada pelo impacto de um cometa. Os sobreviventes refugiam-se em órbita, aproveitando qualquer habitat capaz de ser lançado ao espaço, mas entre intrigas e acidentes depressa se vêem à beira da extinção. Num momento crucial a humanidade fica reduzida a sete mulheres e um banco de ADN, a partir do qual irá renascer e regressar ao berço terrestre. O livro está cheio daquele optimismo sillicon valley, do sim podemos, e sim, vamos fazer, de desenrascar tecnologias e seguir metodologias pouco convencionais, de supremacia conceptual de iniciativa privada sobre instituições científicas. Mas o que marca é esta atitude de supremacia da técnica sobre o social. Stephenson não foge ao atrito sobre recursos tecnológicos, mas deixa sempre bem claro que o problema real são os humanos e, muito literalmente, leva a sua visão da humanidade ao absurdo lógico, depurando-a de todos os elementos, condensando-a em sete representantes cujas imperfeições são eliminadas pela aplicação judiciosa da genética.
Aurora, Kim Stanley Robinson
Um livro intrigante, estranho no quadro da obra deste autor. A FC Hard não é habitualmente pessimista. Talvez Aurora acuse o peso da contemporaneidade, das óbvias e reais consequências do aquecimento global, e seja uma forma do autor despertar as consciências para o facto do nosso planeta ser um local único, não nos servindo de nada sonhar com as estrelas enquanto deixamos o nosso berço degradar-se para além do recuperável.Pega num tema bem explorado pela FC, o das naves geracionais, focando-se nos equilíbrios ambientais e biodiversidade dentro de um sistema fechado, uma eco-esfera que se desloca pelo espaço sempre nos limites dos seus recursos. A missão colonizadora, um de muitos passos que a humanidade dará para fora do seu berço, esbarrará nos limites biológicos impostos pela vida noutros sistemas solares. Espalhar-se pelas estrelas é um sonho que colide com a realidade das viagens espaciais. Há imperativos biológicos, tecnológicos e sociais a considerar, e não abonam muito a favor das visões de naves estelares a sulcar os vazios intergalácticos. As barreiras físicas e fisiológicas são enormes, e os destinos possíveis são por demais desconhecidos para assegurar a viabilidade de colónias. É uma visão sóbria, que se afasta do optimismo alastrante da maior parte da FC hard.
Cunning Plans, Warren Ellis
Reúne apontamentos e transcrições de palestras que Ellis tem sido convidado a dar em eventos ligados às intersecções entre tecnologia, design e arte. Sendo um contador de histórias, com um lirismo visceral da palavra electrificada, não se remete para o hype dinâmico ou apresentação estilo TED, com um pé na academia e outro no espectáculo. Ellis tece fiapos de pensamentos que reflectem a condição hipermoderna, misturando narrativas de elementos díspares que se solidificam em pontos de vista inesperados, conjurando noções radicais na mente daqueles que estão encurralados a ouvi-lo com as teias de palavras que urde. Caracterizando as palestras pelos textos, não se trata tanto de aprender coisas novas mas sim de interligar o que se sabe e o inesperado, abrindo novos caminhos para compreender este transiente momento contemporâneo.
Finches of Mars, Brian Aldiss
A acreditar no que se lê sobre este livro, é com esta vénia que Brian Aldiss despede-se da ficção científica. E que vénia. Finches of Mars é FC depurada, mais próxima do experimentalismo literário legado ao género pela New Wave do que da rígida estrutura narrativa entre aventura e infodump que caracteriza a maior parte desta literatura. O enredo é traçado com grandes pinceladas, sem mergulhar em pormenorizações. Estamos num futuro próximo, com a humanidade a começar a dar os primeiros passos no sistema solar. A Lua é habitada continuamente, apesar de haver uma restrição de noventa dias de permanência por razões de saúde. As primeiras bases marcianas, financiadas por uma improvável coligação de universidades, estabelecem a primeira colónia humana no planeta vermelho. Quem para lá vai sabe que não há possibilidade de regresso. Aldiss não é um optimista, sublinhando os efeitos nocivos das viagens pelo espaço sobre o corpo. Finches of Mars é um romance inquietante. Desolador, longe do optimismo da FC mais actual, mas também a não se meter no campo das distopias. É... diferente. Essa diferença é sublinhada pelo forte lado experimental na técnica narrativa. Não há longos infodumps a enquadrar aventuras bem gizadas. Constrói-se em fragmentos, por vezes dispersos, sem um grande esforço em aprofundar as personagens nem em definir os momentos da história. Lê-se como se contempla um quadro impressionista. São manchas fragmentadas o que vemos de perto, e é quando nos afastamos que nos apercebemos da beleza do conjunto.
Os Últimos Contos de Cantuária, Jean Ray
Uma delícia literária composta de curtos contos. Inspirando-se nos contos homónimos de Chaucer, reúne um grupo peripatético de viandantes improváveis de várias eras que se cruzam numa noite escura, na taverna onde, seiscentos anos antes, os companheiros de viagem e de histórias de Chaucer tinham partido para Canterbury. Sentido de humor, de uma forma elegante e corrosiva mas também estranha e decadente, é uma das sensibilidades que caracterizam estes contos que se destacam especialmente por um apurado sentido do macabro, do cruel, do tétrico e do insólito. São pérolas literárias eruditas e decadentes do sangrento humor negro, de crueldade elegante.
A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison, Enéias Tavares
Uma deliciosa surpresa de Steampunk Tropicalista. Enéias Tavares transmuta Porto Alegre para uma viragem de século com automótatos a vapor e dirigíveis. Fá-lo sabendo manter o foco narrativa não nos adereços estéticos steampunk mas num intrigante enredo onde serial killers, alienistas enlouquecidos, donas de bordéis de luxo, aristocratas decadentes, policias e jornalistas colidem de forma sangrenta. A juntar a uma divertida aventura steampunk com um brilhante enredo entre o policial e o fantástico, está uma profunda vénia à literatura de época em registo é epistolar, com personagens que referenciam obras clássicas da literatura fantástica brasileira.
Os Marcianos Somos Nós, Nuno Galopim
Intrigante viagem pelo real e pelo imaginário do planeta Marte. Não sendo muito profundo, é abrangente, conseguindo tocar quer na história literária das visões fantásticas sobre o planeta, quer na história da exploração científica progressiva que nos permite conhecer cada vez melhor este planeta do sistema solar. Galopim traça uma visão abrangente da forma como esta literatura abordou o fascínio pelo planeta, comparando a evolução nas ficções com o conhecimento progressivamente ampliado pela investigação científica. De fora fica uma possível visão sobre Marte de autores portugueses de Ficção Científica.
Almanaque Steampunk, Corte do Norte
Destacar os três contos que formam o cerne desta antologia é um acto muito injusto. Todo o Almanque é uma muito bem conseguida obra de ficção, e se o conto segue os pressupostos mais tradicionais das narrativas ficcionais tudo o resto não lhe fica atrás. Este é um dos aspectos que tem intrigado nestas antologias steampunk, a forma descontraída como se atrevem a explorar aspectos meta-ficcionais. Nesta antologia, tudo faz parte da narrativa global. É um discreto mundo partilhado, que se conta através dos contos mas que ganha vida nos detalhes entretecidos em notas, fait divers, relatos ficcionais, anúncios a replicar o estilo publicitário do século XIX, ilustrações e banda desenhada. Quase uma arte completa, no sentido wagneriano do termo.
Silvestre, João César Monteiro
Incursão de João César Monteiro pelo fantástico, Silvestre é um filme que se destaca pelo respeito ao medievalismo que professa. A história desenrola-se de forma singela, fugindo ao lado épico que caracteriza este tipo de filmes. É um filme fortemente ritualizado e teatral, lento no seu ritmo, com falas adequadas à época. Os seus cenários fogem do naturalismo e assume-se como cenários pintados ou fotografias ampliadas, criando interessantes efeitos visuais. A estética do filme presta uma profunda vénia à pintura medieval e proto-renascentista, com os quadros do filme a invocarem directamente a estética hierática da perspectiva primitiva. Vénia que é sublinhada pelo hieratismo de uma câmara que mantém sempre os mesmos pontos de vista, reforçando a sensação no espectador que se está a olhar para um quadro animado. Filme notável pela sua estética, e pela rara incursão dentro dos campos da fantasia.
Deixa-me Entrar, Joana Afonso
Deixa-me Entrar é o seu primeiro trabalho completamente a solo de Joana Afonso, sendo responsável pelo argumento e ilustração. O nível visual é elevadíssimo. Já a história, tecnicamente muito bem estruturada, resvala um pouco na linha de equilíbrio entre o drama e o dramalhão. Mostra que sendo já uma referência no grafismo da banda desenhada, Joana Afonso tem a clara capacidade de contar boas histórias. Promete continuar a surpreender-nos com uma obra que amadurece a cada novo livro.
O Poema Morre, David Soares e Sónia Oliveira
Uma incómoda meditação sobre a guerra. David Soares parece perguntar-nos se a guerra talvez seja uma constante humana, uma reflexão societal da violência inata da alma humana. Uma visão dura, que explora numa dos mais incómodos livros que publicou recentemente. Não há redenções nem ilusões de bondade. Todas as personagens são naturalmente perversas, perversão que se torna sistémica quando escalada a toda uma sociedade.
Injection, Warren Ellis, Declan Shavley
A mais recente série de Warren Ellis analisa a modernidade segundo o seu olhar distorcido, numa história onde um grupo de antigos elementos de um think tank enfrenta as consequências de um vírus memético que introduziram na consciência comum para tornar o futuro um local interessante.
Survivor's Club, Lauren Beukes
O comic escrito por Lauren Beukes para a Vertigo começa por um jogo de computador malévolo que de alguma forma afectou a infância dos personagens, mas depressa resvala para o weird profundo com duas gémeas em que uma é boneca, ou um actor de filmes de terror assombrado por uma violenta possessão demoníaca. Estamos no terreno do fantástico dark, e acho que nos espera uma wild ride.
(Apontamentos para o painel Leituras do Ano no Conversas Imaginárias 2015. A lista completa de escolhas literárias e fílmicas do João Barreiros, João Campos e Cristina Alves está aqui: Leituras do Ano 2015).