terça-feira, 6 de outubro de 2015
Sincronicidade
Com saudades da Cinemateca e sabendo que ia estar por Lisboa nestes dias, fui surpreendido com a projecção do filme Os Emissários de Khalôm de António de Macedo. Perfeito para alternar com o congresso dos professores de informática, pensei. Ver filmes de Macedo é evento tão raro que não se pode deixar escapar qualquer oportunidade de ver ou rever. Pensei que a sessão fosse um freak event na programação da Cinemateca, mas estava inserida no âmbito do festival Arquitecturas Film Festival numa vertente dedicada ao futuro. Sendo um dos raros filmes de ficção científica portugueses, diria que o seu visionamento é obrigatório num evento destes. Quanto ao festival, deveria ter estado mais atento. No mesmo dia, noutro cinema, organizaram uma sessão sobre 3D printing com projecção de documentários e discussão com notórios impressores 3D nacionais, que só descobri horas depois de ter sido realizada. Bolas. Daria perfeitamente para sair do congresso, continuar na onda 3D, e chegar a tempo da ficção cientifica. Azares.
O que foi de todo inesperado foi contar com a presença de António de Macedo na sessão, acompanhado de António de Sousa Dias, compositor da banda sonora do filme. Macedo, com o bom humor e humildade que o distingue, falou-nos um pouco do filme, da assumida impossibilidade da FC em antever futuros, e da tecnologia computacional. Nunca cessa de encantar ouvir Macedo terminar dizendo-nos que espera que o filme nos divirta tanto como se divertiu a fazê-lo.
A sincronicidade esteve em parte do que partilhou connosco. Ao falar do filme falou de tecnologia computacional, recordando-nos da gloriosa era da computação em linha de comandos. Depois da partilhar ideias junto de professores de informática, e falar sobre 3D printing, quem diria que o dia ainda me reservaria ouvir o sempre brilhante António de Macedo a falar sobre linhas de comando, workstations IBM que em 1987 eram a vanguarda da computação, e a vida antes dos interfaces WYSIWYG. Só para sublinhar o quanto as coisas mudaram, recordo que a IBM já não fabrica computadores. Ah, a sincronicidade, esse conceito de Jung que quando menos esperamos nos apanha a jeito e surpreende.
Rever Os Emissários de Khâlom permitiu-me reparar em elementos que me tinham escapado no primeiro visionamento do filme, no saudoso ciclo dedicado ao realizador. A forma intrigante como o esoterismo e a FC pura se unem no filme. O futurismo proto-cyberpunk das entidades algorítmicas que se encarnam em seres ao longo do tempo, assumindo faces da dualidade do bem e do mal. A hilariante expressão ameaçadora dos montanheses que tentam caçar incautas condutoras no meio da Serra da Estrela. O humor corrosivo e ainda hoje tão certeiro com o utilitarismo cego na investigação cientifica. A influência do espectro da guerra nuclear, um medo hoje esquecido nas entrelinhas da história do século XX. A atomização dos tempos que condenam as personagens a repetir paixões e temores. O utilizar um fractal de Mandelbrot como elemento gráfico da narrativa.
Quanto aos célebres computadores, que Macedo confidenciou que à época a IBM lhe pediu discrição por ser uma novidade no mercado, equipam uma sala de investigação que décadas passadas sobre a sua concepção ainda parece moderna. Apesar dos computadores com duas entradas de disquete de 5" (uma para correr o sistema operativo e outra para aplicações, diz o professor de TIC que há em mim), dos monolíticos monitores CRT, das impressoras de agulhas ou dos televisores para mostrar vídeo linha a linha. Até o lado mais fantasista, com o computador inteligente que se assemelha a um ovóide (impossível não pensar na iconografia de FC de Jodorowsky e Moebius) ladeado de painéis que vão piscando em diferentes cores não envelheceu tão mal como Macedo nos confessou que temia quando fez o filme.
Não passam filmes suficientes deste extraordinário realizador. Quando passam são raros e circunscritos a eventos que mal se dá por eles. Não há cópias disponíveis em DVD dos seus filmes para que possam ser vistos e revistos noutros contextos. Enquanto professor envolvido nas actividades do Plano Nacional de Cinema na escola onde lecciono, reflicto muitas vezes sobre a impossibilidade de mostrar a obra de Macedo aos nossos alunos. Por isso, mesmo sabendo que dificilmente será lido (no PNC sei que sou ouvido, uma das coordenadoras é também fã incondicional deste autor único), deixo aqui um recado à Cinemateca: queremos mais António de Macedo. Quer em projecção, quer transposto em DVD. Como eu gostaria de organizar uma sessão com Chá Forte com Limão, a Maldição de Marialva ou este Emissários de Khâlom para os meus alunos. Com a vantagem adicional de neste poderem rever algo que lhes falo nas aulas de TIC numa outra luz. Enfim, vamos refilando, porque se não o fizermos ajudamos a que a fantástica obra de Macedo caia no esquecimento.