terça-feira, 4 de março de 2014

Sublime Dreams of Living Machines


Minsoo Kang (2011). Sublime Dreams of Living Machines: The Automaton in the European Imagination. Cambridge: Harvard University Press.

Como resistir a um título destes? Quer ao título quer ao tema. Originalmente a tese de mestrado do autor, agora disponível online no Internet Archive, este livro é imprescindível para um curioso apaixonado pelas visões da FC, aliás, pelo porquê dessas visões, que se interroga sobre o que é que nos atrai no imaginário das criaturas artificiais, que impulso primevo nos move na forma como nos sentimos atraídos pelos engenhos mecânicos.

Primeiro, há que definir com precisão o que é isso de autómato. Fiquei surpreendido quando Kang refere que a distinção entre autómato como mecanismo simulador de vida e máquinas complexas apenas se estabeleceu com os lendários autómatos de Vaucason. Até lá, não havia distinção entre um mecanismo automático, como um relógio, e uma simulação de vida com engrenagens e mecanismos de relógio. Kang também traça com muita firmeza uma linha entre a noção de autómato como mecanismo simulador de vida e o conceito de objecto de forma humana ou animal que parece imbuído de espírito anímico. Se outros traçam uma linha que interliga o Talos ou o Pigmalião da mitologia greco-romana com os autómatos do século XVIII, a proto-ficção científica de Villiers de L'isle Adam ou Hoffman e a correntes visões sobre robótica avançada, Kang rejeita liminarmente este argumento, afirmando o carácter eminentemente mecanicista do autómato face ao misticismo oculto de estátuas que aparentam vida.

Traçar uma história destes mecanismos implica recuar até à antiguidade clássica, de onde subsistem relatos de mecanismos complexos simuladores de vida. Kang olha para o incontornável Héron de Alexandria mas também para os relatos de criaturas que despertavam admiração dos escribas da antiguidade. A suposta decadência da idade média trouxe consigo o esquecimento dos estudos sobre mecânica da antiguidade clássica, mas isto não se traduziu no desaparecimento do saber e da busca pela construção de mecanismos realistas. Aqui, a ortodoxia religiosa veio impor a necessidade de começar a distinguir conhecimento científico de magia, quer por razões de superstição religiosa quer pela necessidade de encontrar caminhos de desenvolvimento do pensamento científico. Também na ficção literária o conceito de homem mecânico se faz sentir, entre os relatos de viagens com elementos do fantástico quer em variantes das lendas arturianas.

No renascimento autómatos mecânicos, animados por mecanismos de relógio ou por força hidráulica, fizeram as delícias dos nobres patronos de artífices e inventores que, passo a passo, aperfeiçoaram as técnicas de reprodução mecânica de movimentos. Os animais animatrónicos de Da Vinci são o exemplo mais conhecido, mas susbsistem relatos de estátuas com mobilidade e jardins cheios de criaturas mecânicas que maravilhavam os visitantes. Ao progresso técnico junta-se a evolução dos conceitos de conhecimento científico. O ideário de magia é abandonado em prol de uma visão de progresso sustentado pela observação e descoberta das leis naturais. Daqui ao iluminismo vai um curto passo, e não surpreende que se dê aqui a explosão do gosto pelos autómatos mecânicos, causada pelo espanto provocado pelos modelos animatrónicos de Vaucanson. O mais curioso é que se as criações deste inventor surpreenderam a Europa, não são as mais elaboradas ou complexas construídas à época. Os luxuriantes autómatos construidos por Jacquet-Droz são o ponto mais alto desta arte que tanto deve à técnica mecanicista. Kang aponta aqui um conceito intrigante. Enquanto o conhecimento do mundo se aprofundava, os cientistas e filósofos começaram a interpretar as leis naturais à luz dos mecanismos, entendendo e concebendo o universo como um vasto mecanismo cujas leis que movem as suas engrenagens estavam a ser descobertas. Ao mesmo tempo, artífices meticulosos dedicavam-se a replicar os seres vivos enquanto máquinas movidas por intricadas engrenagens.

A visão mecanicista do universo como um imenso mecanismo de relógio alastrou às concepções sobre o que é ser humano e Kang alista nada menos do que Descartes e o seu dualismo para mostrar o alastrar desta ideia de mecanismos como representação conceptual do real. Deste ponto mostra como utilizar o mecanicismo como metáfora ajudou a definir o estado, as relações sociais e o corpo humano, todos elementos bem oleados das maquinarias do real. Talvez o momento mais curioso deste argumento é quando Kang utiliza uma passagem particularmente mecanicista de Fanny Hill, clássico da literatura erótica, para demonstrar como descrever tudo como máquinas em funcionamento até contaminou as descrições do romantismo erótico. O autor demarca também neste momento a alteração de sentido do conceito de autómato, palavra obscura recuperada do grego aristotélico por Agrippa para designar elementos mecânicos mas que após Vaucason e as epistemologias pós-cartesianas adquiriu a conotação de mecanismo que procura simular vida.

Esta visão não é fundamentalmente diferente do nosso gosto contemporâneo em comparar sistemas sociais, entender o corpo ou compreender o cérebro através da metáfora computacional. Parece que as novas tecnologias vão-nos servindo de metáfora para melhor descrevermos quer o mundo quer a nós próprios. Pergunto-me se os modelos contemporâneos que descrevem o pensamento como sistema de processamento de informação futuramente parecerão tão arcaicos quanto esta visão do homem enquanto entidade mecânica. Mesmo na altura já se sentia que engrenagens e afins não chegavam para descrever os sistemas do mundo e Kang relata um reverso, uma luta de ideias que vai para lá do mecanicismo. Uma das consequências foi uma noção pejorativa de autómato como ser mecânico que é capaz de pouco mais do que executar acções repetivas, metáfora útil para desprezar aquilo de que menos se gostar nos sistemas sociais ou políticos e comportamento humano. É interessante ver como evoluiu o conceito de autómato, de designador de mecanismos a simulador de vida e a símbolo de baixa autonomia. Mas ficam coisas a faltar, pensa o estudioso de FC que se meteu neste livro para ficar a perceber melhor a linha que vai das Evas futuras às Cherrys 3000 e à visão de robots companheiros que tanto deixou Sherry Turkle aterrada em Alone Together.

O carácter académico deste livro explica os parágrafos em que Kang se desvia do tema e explora a fundo a história e as correntes de pensamento das diferentes épocas sobre as quais se debruça. Chegado ao século XIX, detalha meticulosamente a filosofia naturalista e a sua visão do homem mesclando o orgânico com o espiritual, equilibrando com o romantismo e alguns vislumbres de positivismo. Quase passa despercebida a análise a textos seminais para se conhecer as raízes do fascínio pelos simulacros como Olimpia de Hoffmann e L'Eve du Futur de Villiers de L'Isle Adams. Também toca em Goethe e não esquece o romance sobre essa outra vertente da simulação de vida por cientistas que se sobrepõem aos deuses que é Frankenstein. Na vastidão do texto de Mary Shelley cabe sempre mais qualquer coisa. O século XIX misturou a alma romântica com um gosto pelo exótico e o positivismo progressista em visões que sublinham um fascínio pela superação humana dos limites impostos pelos deuses.

Já no século XX a visão inverte-se. Kang relata o fascínio modernista pela máquina, espelhada com maior espectacularidade na hipérbole dos futuristas italianos. Marinetti, para além de cantar a beleza do automóvel, também se dedicou a criar robots literários. O trauma das trincheiras pôs cobro ao optimismo destravado. Combinado com o mecanicismo frio do Fordismo/Taylorismo das linhas de montagem desumanizantes onde o operário era reduzido à condição de autómato, lançaram-se as bases de um ideário que vê a máquina como um perigo. É aqui que se dá a génese do conceito contemporâneo de Robot, a partir do aviso de Karel Capek sobre o futuro da humanidade às mãos das suas criações. Este medo da máquina já era ecoado no século XIX por Samuel Butler, que Kang cita profusamente, antevendo os delírios industriais do século XX em paralelo com os primeiros passos, forçosamente analógicos, dados por Babbage numa tecnologia que virá a reforçar o ideário destes sonhos de maquinas vivas. A visão da máquina esmagadora do espírito humano, do autómato como metáfora para a escravidão espiritual e o esmagar das liberdades é expressa com maior expressão no cinema expressionista alemão. Kang cita, como não poderia deixar de ser, Metropolis de Lang mas não esquece Caligari e outros filmes com visões mecanicistas poderosas. A única alternativa vem do surrealismo, com visões feéricas que se focam no gosto pelo movimento de engrenagens sem utilidade prática mas de grande delícia estética. Raymond Roussel é a referência literária citada para ilustrar esta vertente assumidamente onírica onde a máquina se torna um delírio da imaginação.

Terminamos deliberadamente por aqui. Kang não se quer meter na explosão das ficções científica e especulativa do século XX, com a sua enorme multiplicidade de visões e conceitos sobre a robótica. Faz notar que as conhece bem, mas pára perante a grandeza da tarefa.

Posto isto, ficamos mais esclarecidos sobre o fascínio com os mecanismos que nos parecem vivos? Nem por isso. Apesar de se alongar em discussões sobre correntes filosóficas Kang não procura resposta a essa questão. O seu caminho é outro, mostrando uma tradição de ideário espelhada na história e literatura que é surpreendentemente longo, não se esgotando em suspeitos do costume como Vaucason ou os especuladores da ficção científica e com raízes científicas na antiguidade clássica e idade média. Fascínio esse que, com as novas roupagens das promessas da robótica avançada potenciada pela informática, ainda hoje perdura, como refere quando conclui que "for now and the foreseeable future in the cybernetic age, we still find ourselves dreaming the millennia-long dream of sublime and uncanny living machines".