domingo, 21 de maio de 2006
Crónicas do Fim do Mundo
Wikipedia | Poul Anderson
Bibliografia de Poul Anderson
ISFDB | Poul Anderson
Poul Anderson foi um dos mais prolíficos escritores da era de ouro da ficção científica, aquela era pós-pulp pontuada pelas obras de Heinlein, Asimov e Arthur c. Clarke. Ao longo da sua carreira, Anderson publicou inúmeros livros e contos, organizáveis em grandes arcos de histórias que em vários livros nos contam as aventuras vividas em mundos ficcionais. Escritor dedicado à veracidade científica das suas projecções futuristas (dando ou tirando alguns pormenores que por força das circunstâncias não podem ser exactamente correctos), Poul Anderson legou-nos séries como a Harvest of Stars, Maurai, Time Patrol, Hoka, Technic League, entre muitas outras. Confesso, no entanto, que da sua obra só conheço alguns dos livros da série Harvest of Stars, um gigantesco diorama da expansão humana pelo universo que acaba por regressar à terra-mãe para evitar o declínio desta. E este livrinho editado pela saudosa colecção Argonauta, as Crónicas do Fim do Mundo - The Horn of Time no seu título original.
Crónicas do Fim do Mundo reúne um conjunto de contos de Anderson que acabam por nos mostrar vislumbres dos grandes arcos da sua obra. No primeiro conto, O Caçador, somos introduzidos aos Kith, um quase imortal (devido aos efeitos relativistas das viagens espaciais) grupo de humanos que se dedica a interligar a humanidade espalhada por míriades de planetas com as suas naves espaciais. Devido às vastas distâncias interestelares, os Kith consideram as civilizações humanas algo de efémero. Numa viagem exploratória, descobrem que nos vinte mil anos que passaram entre duas visitas a um planeta colonizado os habitantes humanos desse planeta evoluíram para uma forma mais de acordo com as necessidades reais do ecossistema do planeta.
Um Homem Pelas Minhas Feridas, o segundo conto das Crónicas do Fim do Mundo, é uma brincadeira mal humorada sobre o conceito de corrida de armamentos, com uma variação. Após uma inconclusiva guerra nuclear, as grande potências dedicam-se a um novo jogo militar: o assassínio organizado de responsáveis políticos, levado a cabo por agências especializadas. Como em todas as corridas ao armamento, os perigos do absurdo espreitam.
A grande preocupação da prosa de Poul Anderson é a noção de declínio. Para Anderson, a constante inovação tecnológica e melhoria do nível de vida das populações traziam consigo as promessas de um mundo melhor, e o espectro da complacência, que ao longo dos tempos acabaria por levar ao declínio das sociedades, populadas por seres complacentes que pensam apenas nos seus confortos e não em correr riscos e tentar algo de novo. Podemos encontrar uma ideia similar em Against the Fall of Night de Arthur C. Clarke. Esta é uma ideia que transparece ao longo dos vários contos que compõem as Crónicas do Fim do Mundo, mas que se revela mais acentuadamente no conto Os Mais Altos. Neste conto, uma missão de colonização terrestre depara com uma civilização alienígena totalitária que após milénios de totalitarismo declinou ao nível de uma termiteira - os seus indivíduos são incapazes de decidir por si. Num toque de humor negro, a missão colonizadora representa os povos terrestres, unificados sob a bandeira Soviética, que governa o mundo após... isso mesmo, uma guerra nuclear.
Em O Homem que Chegou Cedo, Anderson diverte-se com as consequências das viagens no tempo. Neste conto, após uma explosão atómica, um mero soldado estacionado em Reikjavik decobre-se na Islândia viking. No conto Marius, Anderson debate-se com as noções de totalitarismo benévolo, numa história em que os representantes das forças europeias livres depõem um líder que na sua luta por uma europa reconstruída após um violento conflito nuclear está a levar a europa em ruínas em direcção a uma ditadura.
Os leitores mais atentos deste texto estão já a notar alguns padrões, algumas ideias que se repetem. Já vos fiz atentar na noção de declínio presente na obra de Anderson, e certamente que já se aperceberam que parte dos contos contidos em Crónicas do Fim do Mundo são comentários políticos e sociais, escritos numa era em que as ideologias eram mais bem definidas do que hoje em dia. Mas o outro grande padrão nas obras de Anderson (não em todas, mas na sua maioria) é o cataclismo nuclear. Como bom autor da segunda metade do século XX, Anderson viveu debaixo do espectro da aniquilação atómica. Esse é um espectro que nos parece distante - as correntes tentativas por parte de países "rebeldes" de adquirirem armas atómicas só poderão trazer pequenas catástrofes, na ordem de hiroxima, se se utilizarem as poucas ogivas atómicas que de dispõe. Mas durante a guerra fria, todo o planeta estava sob a mira dos misseis soviéticos e americanos. Se a guerra fria se tornasse quente, sabia-se que cerca de trinta minutos depois das declarações de guerra as grandes cidades americanas e as grandes cidades russas seriam ruínas radioactivas. A europa não passaria de um amontoado de incontáveis crateras de impacto nuclear. Os efeitos da guerra nuclear poriam em perigo a sobrevivência a nível planetário, como Carl Sagan demonstrou nos seus estudos sobre o efeito do inverno nuclear. A forma como os escritores de ficção científica abordavam este tema dependia das suas perspectivas - se P. K. Dick era um pessimista que via mundos pós-apocalípticos recheados de ruínas, mutantes de decadência, Poul Andernson via futuros de esperança, em que após alguns séculos de decadência barbárica os restos de humanidade fariam evoluir novas civilizações, reconstruindo um novo mundo sobre as ruínas do velho. É nesta perspectiva que se insere o conto Progresso, que encerra o livro, e que nos introduz aos Maurai - os descendentes dos polinésios, e a potência dominante num mundo que, 200 anos após um conflito nuclear, ainda luta para se reconstruir.
Para além de ser uma leitura de clássicos da ficção científica, quer quanto ao autor quer quanto aos temas subjacentes aos contos, as Crónicas do Fim do Mundo são também um retrato fiel dos grandes temas e dos grandes arcos da obra de um dos grandes escritores de ficção científica.