terça-feira, 15 de outubro de 2024

The Singularity


Dino Buzzati (2024). The Singularity. Nova Iorque: NYRB Classics.

Descobri este livro através de uma crítica do Guardian, partilhada por Warren Ellis na sua newsletter, que o apontava como uma curiosa visão precursora das nossas atitudes contemporâneas face à IA. Não sendo um livro estritamente de ficção científica, dado que Buzatti foi daqueles firmes escritores mainstream com alguns recortes de fantástico na sua obra, intrigou-me a descoberta da sua visão.

É uma leitura curta e rápida, simples de resumir.  Um modesto professor universitário é desafiado a integrar um projeto misterioso, numa zona militar remota. Tão misterioso, que só quem trabalha diretamente nele ou os militares que guardam a zona sabem do que se trata. Os militares e responsáveis governamentais que aliciam o humilde professor desconhecem o projeto para o qual fazem o convite. A primeira parte do livro é uma piada kafkiana, com o académico a tentar perceber exatamente onde é que se meteu, sem que ninguém lhe consiga contar nada dada a profundidade do segredo.

Será ao chegar ao núcleo interno da zona militar (o segredo é tão protegido que os guardas das zonas exteriores sabem o que estão a guardar) que o académico descobre a sua missão: trabalhar no desenvolvimento de uma inteligência não humana, espalhada por um vasto complexo de computação e sensores que se espraia ao longo de quilómetros. Uma mente eletrónica que habita um computador, capaz de sentir, experimentar e raciocinar.

Se estão a ver aqui uma visao ficcional ao estilo dos anos 60 da inteligência artifial assente em supercomputadores, não estão enganados. Buzzati segue as tropes esperadas, dos cientistas apostados em fazer nascer uma entidade inteligente cujo corpo se compõem de processadores e sensores, às especulações sobre se uma entidade que hoje chamaríamos de digital é capaz de sentir, sonhar, de ter consciência.

Mas o autor vai ainda mais longe, e desvenda-nos o elemento chave deste computador inteligente: um núcleo, que foi programado com a personalidade de uma mulher. Segue os desejos de um dos investigadores, cuja primeira esposa morreu após o ter traído, e que manifesta a sua obsessão pedindo ao cientista encarrgue de desenvolver o núcleo da inteligência que espelhe a personalidade da falecida. Basta ver o campo emergente das apps de companhia/virtual girlfriend via IA, bem como a forma como muitos utilizadores se relacionam com os LLMs, para perceber que Buzzati anteveu uma das formas como antropomorfizamos a IA. Uma antevisão que, claro, está mais baseada em tendências milenares da alma humana do que em previsão futurista, algo que este livro não é.

O final é intrigante, com a inteligência humana artificializada a urdir esquemas para ser morta. Replicar a mente de uma mulher em corpo de máquina leva-a a enlouqecer, o que em si é uma curiosa reflexão sobre a forma como entendemos a dualidade mente-corpo, mostrando o quão a nossa fisicalidade faz parte da nossa consciência.  E, num retoque frankensteiniano, Buzzati mostra como a obsessão humana pode gerar monstros inocentes. A tradução inglesa do título original, Il grande ritratto, remete para temáticas em que o livro não toca.