segunda-feira, 29 de maio de 2023

Auto da Barca do Inferno


João Lameiras, Joana Afonso (2023). Auto da Barca do Inferno. Lisboa: Levoir/RTP. 

Se a coleção Clássicos da Literatura em BD é conhecida pela sua qualidade consistente, como série editorial que leva os grandes livros a um público juvenil, suspeitei que este volume fosse particularmente interessante. Não necessariamente pelo texto. Que me perdoe Gil Vicente, mas este Auto da Barca é sobejamente conhecido, representação moral que deixa o seu público a sonhar com o fim triste no além que terão os grandes da vida que o oprimem no dia a dia. Assistir ao périplo de desencantos de nobres e usurários, alcoviteiras e frades que se julgam a caminho do paraíso mas têm endereço certo nos infernos é um daqueles contos moralistas que, apesar do peso religioso, nos recorda a importância do viver uma vida bem vivida. 

Fiquei à partida curioso pela volta que a dupla de criadores por detrás desta adaptação daria ao texto. João Lameiras, que conheço mais pelo trabalho como investigador na área da BD e livreiro, parece-me ser muito rigoroso nas suas abordagens. E Joana Afonso tem um tipo de traço muito encantador, com um toque de grotesco, que estava curioso de ver a retratar um auto medieval.

O livro não desilude. A adaptação de João Lameiras é rigorosa, cuidada, com umas soluções muito interessantes para transmutar para a rigidez da prancha o fluir teatral. Usar toda uma prancha como vinheta única em que as personagens se vão sobrepondo pareceu-me uma excelente forma de traduzir entre duas linguagens mediáticas diferentes. O traço de Joana Afonso nunca desilude, bem como o seu sentido de composição, há muito para descobrir nas suas vinhetas. Na sua representação, o diabo é deliciosamente demoníaco, o anjo puro, e as personagens são caricaturais num tom que quase toca no grotesco, mas não chega lá (nem tal faria sentido). 

A fasquia estava alta para este livro, e a leitura não desiludiu. A adaptação é sólida e visualmente interessante. E o pormenor final de invocar Böcklin, apesar de algo óbvio para conhecedores, é perfeito para colocar os neurónios dos jovens, público-alvo deste livro, a mexer. Gil Vicente sai muito bem servido pelo trabalho da dupla de autores.