Donald Michie, Rory Johnston (1984). O Computador Criativo. Lisboa: Editorial Presença.
Valerá a pena prestar atenção a uma obra sobre o estado da arte da inteligência artificial e computação criativa escrita nos anos 80 do século XX? O campo da tecnologia caracteriza-se por evoluções vertiginosas, e a ferramenta de ponta de hoje está condenada ao esqucimento obsoletista do amanhã. Isto, claro, se alinharmos pelas estéticas do deslumbramento com a novidade, talvez o mais recorrente tipo de discurso sobre tecnologia e os seus impactos, entre o otimismo sillycon valley (não, não é erro ortográfico) à apologia da IA generativa.
Este livro surpreende, em duas vertentes. Por um lado, ao falar do estado da arte em 1984 no que respeita à automação e IA, mostra-nos o quanto evoluímos nessas áreas, muito por causa de novas técnicas de IA (aprendizagem mecânica) que colocaram de parte técnicas menos eficiantes, como a programaçáo prévia de decisões e possibilidades. Se bem que esse tipo de desenvolvimento é aboradado no livro, precisamente ao falar da complexidade excessiva desse tipo de abordagens.
Por outro lado, reparamos que há questóes que são estruturais nestas tecnologias. Questóes sobre impactos sociais, culturais e económicos, que hoje debatemos como se fossem novidade, já o eram antes. É revelador de uma certa miopia cultural das estéticas de deslumbramento tecnológico. No que respeita à questão que me levou a pegar neste livro, a ligação entre computação e criatividade, logo desde início que a posição assumida é a de que há uma ligação forte entre estas áreas, assumindo o computador não como uma mera máquina de manipulação de dados, mas através desta manipulação, um sistema de produção de novo conhecimento.
Na aplicaçáo ao domínio mais artístico que conotamos com a ideia de criatividade, o livro mostra-nos projetos, à época a ponta de lança da exploração da criatividade digital, que criaram as bases de aplicações que hoje consideramos novidade, deste a inteligência artificial generativa aos metaversos. É refrescante ler sobre projetos de criação artística com sistemas hoje vistos como primitivos de inteligência artificial, a procura por algoritmos de arte generativa, o desenvolvimento de imagens de síntese que veio da origem ao realismo nosso contemporâneo da modelação 3D, ou a criaçao de ambientes virtuais tridimensionais com interação (o que chamaos hoje de realidade virtual ou metaverso).
Mostra que esta questão da criatividade computacional já levava a trabalho, pesquisa e experimentação desde a segunda metade do século XX. E que a ambiguidade das respostas, a intuição da possibilidade de criatividade a partir do que são sistemas mecânicos, ou programados, mas cujos resultados excedem os limites conceptuais da mecanização ou programação, também já era sentida nos anos 80. Ou seja, a discussão acesa que temos hoje, sobre se as produções da IA Generativa podem ser consideradas criativas ou não, já existiam muito antes dos correntes desenvolvimentos em IA.
Há achados de alfarrabista que são fortuitos, e quando mergulhei na pilha de livros não imaginava que saísse de lá com uma leitura tão provocatória. Lida décadas depois do seu período de máxima relevância, percebe-se como documento histórico, documentando um estado da arte já passado nos domínios da tecnologia. Mas continua atual nas questões levantadas, mostrando o quão estruturais são quando se reflete nos impactos sociais e culturais da tencnologia computacional.