Este foi um ano fértil em boas leituras, dentro dos vários géneros e temas que me interessam. A lista é eclética, e vale o que vale, são as escolhas pessoais de um leitor bibliófago pouco metódico. É curioso notar o quanto o mangá se tornou prevalente nas leituras de banda desenhada, e devo confessar-vos um segredo culposo: este ano comecei a seguir sugestões de leitura de TikTokers, e diga-se, não saí nada desiludido (o descobrir das leituras mais viscerais deste ano vieram daí). A lista não pretende seguir modas, cruza clássicos (alguns um pouco esquecidos) com novidades. Eu, bibliófilo em constante modo aleatório, me confesso.
Ficção Científica
Marko Kloos, Centers of Gravity
Marko Kloos nunca desilude, sabemos sempre que nos trará uma excelente e divertida aventura de space opera militarista. Mas este oitavo livro da série Frontlines termina com uma sensação de conclusão, talvez sendo o último da série.
Bruno Martins Soares, Insight
Bruno Martins Soares é um dos nossos melhores praticantes da arte de contar uma boa história. Daquelas que se lê não pela profundidade literária, mas pelo prazer de ser conduzido ao longo de uma narrativa bem urdida. Literatura também é isto, mergulhar numa história bem tecida, onde toda a linguagem está otimizada para agarrar o leitor. Insight, a sua mais recente edição por cá, mostra muito bem essa capacidade, com uma história inesperada, bem ritmada e surpreendente.
Andrew Stuart, We Shall Sing a Song Into the Deep
Este curto livro foi uma das melhores surpresas que li este ano, até agora. A descrição no BoingBoing, que me intrigou, assenta-lhe como uma luva: imaginem um cruzamento entre A Canticle for Leibowitz e Hunt for the Red October, e têm a premissa, o misto claustrofóbico de paranoia submarina e religiosidade lunática que alimenta este livro. Que, apesar de curto em páginas, está na medida certa, consegue conjurar um sólido mundo ficcional, invocar personagens complexas, agarrar o leitor com uma narrativa pós-apocalíptica ritmada e inesperada.
Lívia Borges, Futuro
À beira da extinção, a tenacidade humana resiste, mesmo quando a própria esperança já desapareceu. É esta a sensação que retiro da leitura deste romance, uma sólida proposta de ficção científica saído da Editorial Divergência. O livro está em firme âncora neste campo literário, com uma premissa, história e mundo ficcional entre a ficção pós-apocalíptica e a distopia.
Ken MacLeod, Beyond the Hallowed Sky
Há um certo sentimento a ficção científica pós-brexit neste início de trilogia. Ken MacLeod dispensa apresentações, como um dos mais destacados e consistentes autores de space opera da atualidade, mas este início de trilogia pareceu-me não muito coerente, apesar de bem estruturado. Coloca muitas questões, que deixa naturalmente sem resposta (é para isso que servem os restantes livros) mas também não nos deixa muitas pistas para aguçar a curiosidade.
Alastair Reynolds, Eversion
Este é um daqueles livros inquietos, que nos obriga a rever constantemente as nossas expetativas face à realidade ficcionada da narrativa. Uma sucessão de eventos que se repetem num ciclo difícil de quebrar, que a cada nova iteração trazem novos elementos mas mantém a estrutura, como forma de fuga a uma realidade de aceitação difícil.
Fantástico
Ottessa Moshfegh, Lapvona
Há livros que são chocantes, que se esforçam ao máximo por chocar o leitor, exaltando o pior, exacerbando a violência, chegando ao grand guignol. E há livros que são implacáveis, que desorientam e atormentam o leitor da primeira à última página, sem cair em litanias da desgraça mas pela forma desoladora como nos apresentam a alma humana. Lapvona é claramente um desses, uma obra sem piedade para com os seus temas e personagens, desoladora, um choque de ar fétido que não nos deixa indiferentes.
Agustina Bazterrica, Tender is the Flesh
Se há livros metodicamente concebidos para serem chocantes, este é um dos melhores exemplos. Da primeira à última página, até à última frase, a narrativa está engendrada para manter o leitor num estado de choque contínuo. É uma leitura frustrante pela forma quase banal com que a linguagem nos expõe às piores atrocidades.
Literatura
Altino do Tojal, Os Putos
É, com muita justiça, o mais conhecido e aplaudido livro de Altino do Tojal. Se será o melhor, não conheço o suficiente sobre a sua obra para o dizer (e, quanto mais leio, mais admiro este autor algo sui generis que me parece algo esquecido). Mas desengane-se quem pegar nesta obra à espera de bucólicas histórias infantis. Tojal é muito mais complexo do que isso, e estes curtos contos, onde também detectei fragmentos de romances, são uma leitura acutilante e inquietante.
Branquinho da Fonseca, O Barão e Outros Contos
O que me surpreendeu nestes contos foi a forma delicada como vão do banal ao surreal. Começam por vinhetas perfeitamente normais, pequenas vicissitudes do dia a dia, mas durante a narrativa algo quebra, e seguem-se momentos de puro absurdismo. São contos cruéis, onde a pele de boa educação de personagens conservadoras depressa se quebra, revelando tendências para o exagero, o histriónico, o abusivo sem limites, a libertação de convenções, arrastando e modificando irremediavelmente aqueles que com eles se cruzam. O delirante conto O Barão é talvez a expressão mais sublime desta sensação, com a sucessão surreal de acontecimentos e a personalidade exagerada do personagem que lhe dá o título.
Wu Ming, Proletkult
Este livro curioso faz-nos regressar às utopias do futuro progressista e revolucionário comunista. Invoca as estéticas da ficção científica soviética, com o seu sonho de espalhar a igualdade e o progresso pelas estrelas (claro que, como bem sabemos, por detrás destes ideais estava um estado repressivo em tudo igual a outros tipos de regime totalitário). A invocação é feita de forma delicada. Apesar de ser a essência do livro, estas ideias estão num esparso polvilhar, porque a estrutura narrativa leva-nos à amargura daqueles que estão a ver os seus ideais de liberdade esmagados pela ortodoxia sedenta de poder.
Não Ficção
Edward Wilson-Lee, A History of Water
É sempre curioso ler sobre a nossa história sob um olhar exterior, que nos dá diferentes visões sobre os acontecimentos e personalidades. Se bem que seria redutor ver este livro apenas na perspetiva portuguesa. Antes, o foco em duas personalidades da nossa história é um ponto de partida para uma análise de um momento chave na história global, que é simultaneamente o tempo da origem do colonialismo europeu, das raízes do iluminismo, e das guerras religiosas e políticas que viriam a moldar o continente, e o mundo.
Sérgio Carvalho, Lisboa Árabe
Como era a cidade de Lisboa no seu tempo árabe? Este livro tenta responder a esta questão, procurando retratar Lisboa nos tempos mouros. Não é tarefa fácil, as fontes documentais são escassas, e o autor socorre-se de alguma especulação informada, traçando paralelos com o que se conhece de outras cidades do Al-andaluz. O livro dá-nos um excelente panorama do que era Lisboa nesses tempos, entre a geografia da cidade, os modos de vida dos seus habitantes.
Irving Finkel, The First Ghosts
Um mergulho profundo na longevidade das tradições ligadas à morte, que nos leva aos tempos por demasiado tempo esquecidos da Suméria e Assíria. A descoberta, a partir do século XIX, dos vestígios escritos por entre as ruínas que polvilham os países que hoje ficam nos territórios do antigo crescente fértil, revelou-nos civilizações, mas mais do que isso, um profundo humanismo. Os milhares de tabuinhas de barro com inscrições em cuneiforme são na larga maioria dos casos meros documentos administrativos, mas só isso já nos dá uma profunda apreciação daqueles seres humanos que, há milénios, viveram e reclamaram contra clientes e fornecedores.
Kenneth Clark, Civilização
É sempre encantador mergulhar na erudição pura de um GBM. Entrar na mente e modo de pensamento que interliga ideias díspares, que nos avassala com conhecimento, que procura ligações por vezes insuspeitas, por outras inesperadas, entre épocas e pessoas marcantes. Decorrendo de um daqueles programas televisivos entre o educativo e o genial que a BBC sempre soube fazer tão bem, Civilização leva-nos da antiguidade clássica aos tempos pré-contemporâneos do historiador de arte Kenneth Clark, ou seja, a viragem do século XIX para o XX. Um voo pelas intersecções entre arte e história, em busca de uma sempre inatingível ideia de civilização.
BD Portuguesa
Jayme Cortez, O Terror Negro
Nesta edição da Polvo podemos descobrir a obra de terror de Cortez. O destaque vai para a a história O Retrato do Mal!, que foi criteriosamente publicada nas suas duas versões, o que permite perceber o crescimento estético do autor. As restantes são mais estereotipadas, criadas para choque fácil de um público considerado menos sofisticado, mas mesmo assim visualmente muito interessantes. As assombrações e coisas do demo, os cemitérios soturnos e os crimes hediondos que são o pão nosso de cada dia do terror clássico ganham contornos surreais sob o traço de Cortez.
Marco Silva, Matthieu Pereira, Sofia Pereira, Uluru
Uluru é um projeto claramente ambicioso e muito bem estruturado. Mas mais do que isso, é uma boa história, que nos leva à ficção científica pós-apocalíptica.
Filipe Abranches, et al, Umbra #3
Esperemos que haja quarto número da Umbra. Nos três números que já nos chegaram, esta publicação independente mostrou trazer-nos vozes veteranas, criando um novo espaço de edição. Está focada no contar de histórias, trilhando a fronteira entre uma bd mais independente e de experimentalismo estético, e a vontade de criar narrativas coerentes.
Comics
Daniel Torres, El Futuro que no Fue
O título espelha na perfeição a estética de Daniel Torres: futurismo do passado, que nunca irão acontecer, mas são profundamente sedutores. O livro é uma ode ao retrofuturismo, a todos os níveis. Pela história que nos conta, pela sua iconografia, como se espera deste autor. Mas o próprio livro como objeto espelha esse hino às ideias dos futuros inexistentes. Torres dá-nos uma obra completa.
Harukichi, DJ Cat Gosshie - World Tour
A premissa é absurda, são as aventuras de um gato DJ que viaja pelo mundo, toca vinis, fuma umas cenas, cruza-se com diferentes pessoas. Não é suposto ser verosímil, é uma sublimação dos gostos de viajar, gatos e boa música. O livro é feito de episódios onde o gato-dj se descobre a tocar música nos mais inesperados cantos do mundo. Este livro tem entrada direta para a categoria dos mais surreais na biblioteca. Um manga inesperado, divertido, luminoso.
Tokushige Kawakatsu, Ilha dos Gatos
Ilha dos Gatos é uma daquelas obras que se delicia em ser ambígua. Em leitura linear, percebe-se com um conto de terror, com monstros, pessoas obcecadas, atrocidades hediondas e aquele sentimento fatalista e fuga à coerência do horror japonês. Mas, enquanto acompanhamos a linearidade deste horror, não podemos deixar de nos questionar se estamos a ler uma velada metáfora, onde o ponto de vista sobrenatural oculta uma história de crime pulp, com contornos psicológicos.