Henrique Galvão (1976). Kurika, Romance dos Bichos do Mato. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco.
A marca que este livro, originalmente publicado em 1944, deixou na literatura portuguesa tem mais a ver com as suas conotações políticas do que com a real qualidade literárias. Kurika ganhou fama por ser uma daquelas obras que, nos tempos opressivos da ditatura estado-novista, nos falava de liberdade. Sob o disfarce de uma história para crianças, um recordar do valor de ser livre. Li este livro sob essa perspetiva em final do secundário, décadas atrás, e agora regresso, curioso sobre como esta obra, que sinto estar a ficar esquecida, envelheceu.
Há sempre algo de intemporal nas histórias de animais antropomorfizados, embora em Kurika a antropomorfização se reflita mais no conferir aos animais sentimentos, pensamentos e emoções. O leão e restantes companheiros são de resto tão realistas como a raposa de Aquilino, aliás, é esse um dos pontos em que o romance de Galvão toca, uma descrição realista, se bem que romanticizada, da savana africana. Neste aspeto, a história do leãozinho que cresceu entre os humanos, conquista a sua liberdade mas tem uma enorme dificuldade em viver livre, por não ter crescido no seu meio e aprendido o que necessitava para sobreviver na savana, continua a ler-se bem. A linguagem sente-se arcaica, naturalmente, e eventuais leitores com profundas sensibilidades étnicas poderão ficar algo incomodados com os epítetos e descrição de africanos. É marca de época, e um curioso pormenor: Kurika simboliza a busca de liberdade pelo homem, a necessidade de escapar aos grilhões, mas no que toca à humanidade, há homens de primeira e homens de segunda. E é melhor nem aflorar a questão colonial.
Leãozinho apanhado por caçadores que lhe mataram a mãe, Kurika cresce numa fazenda, primeiro em relativa liberdade, depois acorrentado. Deleita os habitantes, e trava uma amizade com dois animais de estimação do fazendeiro, a macaca Paulina e o cão Janota. Num limbo entre a pulsão da vida selvagem e a domesticidade, Kurika foge, acompanhado por Paulina, partindo os dois à descoberta de uma vida que, por terem sido capturados muito bebés, nunca conheceram. A vida é dura, mas como leão que é, Kurika acabará por prevalecer e sobreviver. Primeiro com ajuda da macaca, e depois com uma companheira leoa, que lhe ensinará a caçar e viver como leão. Mas a memória dos humanos persiste, e num curioso reencontro com o seu antigo dono, Kurika acabará por se alienar dos seus. Acaba a viver só, na selva, visitando regularmente a fazenda colonial para se reencontrar com o cão, o seu único amigo. A liberdade nunca é fácil de adquirir e manter.
Confesso que nesta releitura do livro, dando de barato que a memória dos detalhes da primeira leitura se tinha esbatido com as décadas, um pormenor me surpreendeu. Kurika é sempre apontado como um romance que enganou os censores, ocultando uma mensagem defensora da liberdade sob a história infantil. O que me pergunto é como diabos os censores deixaram passar o livro, dado que não é nada subtil nos seus apelos e defesa da liberdade individual como o estado natural das coisas. A metáfora dos animais é mesmo muito óbvia. Não deixa de ser uma leitura interessante, pelo seu conteúdo, pendor histórico, mas também pelo retrato inconsciente que faz do ideário colonialista, ideia que em todos os seus discursos sobre liberdade o romance nem toca.