terça-feira, 18 de janeiro de 2022

All of the Marvels


Douglas Wolk (2021). All of the Marvels: A Journey to the Ends of the Biggest Story Ever Told. Nova Iorque: Penguin.

O ponto de partida deste livro soa a uma espécie de piada a gozar com a cultura Geek: o autor propôs-se ler todos os comics da Marvel, desde o início até aos dias de hoje. Declaração fértil para terminar em piadas sobre danos cerebrais, ou masoquismos pop. Mas o propósito é sério, um mergulho a fundo na mitologia da editora de comics, que permite perceber que as aventuras dos seus personagens não são conjuntos isolados de histórias, mas sim uma enorme narrativa, abrangente e de renovação contínua.

Wolk assume esta continuidade pela observação, do alto da sua experiência. Que, observe-se, não recomenda; boa parte das leituras estão datadas, e num processo de mergulho profundo deste género podemos perder a lógica essencial - acima de tudo, ler comics tem de ser uma experiência divertida, é essa a sua lógica. Lê-los por obrigação não nos permite perceber o seu encanto.

Analisar o longo historial de edições Marvel como uma narrativa contínua pode, à primeira vista, levar a pensar numa intencionalidade, num arco narrativo planeado desde o início. Wolk sublinha bem que não é o caso. A estrutura evolui de forma orgânica, fruto do trabalho de um exército de argumentistas e ilustradores. Cada um traz a sua visão específica, levando os personagens pelos caminhos que decidem traçar. Mas cada criador que trabalha para a Marvel também traz a sua erudição sobre o historial das personagens, vai colocando referências e, mais vezes do que se esperaria, regressando a arcos narrativos anteriores. Os crossovers, que envolvem todos os títulos numa história única, são uma variante planificada disto, mas o que torna interessante é perceber que esta polinização cruzada ultrapassa em muito o lado editorial.

Mais do que uma análise temática e histórica, este livro é uma longa carta de amor aos comics. Ao prazer de os ler, de mergulhar em mundos ficcionais assumidamente simplistas. Mas mais complexos do que aparentam. Refletem as condicionantes, as ideias, e ideologias de cada época. Representando mundos irreais e personagens impossíveis, não se alheiam da realidade que rodeia os seus jovens leitores. Por entre as aventuras de finais previsíveis, têm-se atrevido a tocar em assuntos delicados e temas fracturantes. A corrente atenção que a Marvel dedica a temas de igualdade de género e multiculturalidade é apenas a mais recente versão dessa tendência, que já passou por temas sociais  e políticos. 

A proximidade com a vida dos seus leitores sempre foi o grande trunfo da Marvel. Os seus heróis, apesar dos extraordinários poderes, são muito humanos. Não são tão icónicos quanto os da DC, atraem os leitores precisamente pelo seu lado mais humano, frágil e sujeito ao tipo de problemas que todos sentimos. Gostamos do Homem Aranha porque é Peter Parker, sempre em busca do seu lugar na vida. Ou dos X-Men pela forma como representam o ser diferente numa sociedade. Do Capitão América não por ser um símbolo do patriotismo elementar, mas porque Steve Rogers se dedica a lutar por ideais de liberdade e igualdade. Poderia continuar, todos os personagens Marvel, até mesmo os vilões, têm esse lado de proximidade com os universos pessoais dos leitores.

Este livro celebra os comics, o longo historial da Marvel e o seu papel como força cultural. Não foge aos pontos mais delicados desta história - as relações complexas entre Stan Lee e Jack Kirby, sempre tratado com injustiça por uma editora que não existiria sem o seu trabalho,  ou ideias sociais de que, felizmente, evoluímos como sociedade (grande parte dos temas e fórmulas clássicas da Marvel chocariam o lado mais woke da cultura contemporânea, mesmo dando de barato que são facilmente chocáveis). Lê-lo ajuda a perceber o porquê de se ser fã, o saber que mesmo já com alguns anos a pesar sobre os tempos de juventude que são o público-alvo deste género, sabe bem não só regressar às histórias clássicas, como acompanhar as actuais. É entretenimento, é certo, mas por detrás do aparente simplismo há complexidade temática e narrativa, um longo historial e contínua evolução, sempre em sintonia com a evolução dos seus leitores.