Miguel Torga (2018). O Senhor Ventura. Lisboa: D. Quixote.
Quase me atrevo a dizer que Miguel Torga escreveu o que para a sua obra seria um anacronismo, uma novela de aventuras. Ou, a bem dizer, de desventuras, que a vida do Senhor Ventura foi rica em animação, farta em desaires, e culminada em desilusões. Originalmente publicada em 1943, é uma história picaresca de astúcia e emigração, bem como regresso às raízes, porque apesar de andarmos a construir vidas nas sete partidas do mundo, é a aldeia onde nascemos que nos chama ao coração. Também a história do português aventureiro, mas não a do português emigrante, esta não é uma novela de desalento, saudade e duros esforços.
Tudo começa quando um jovem analfabeto deixa a sua aldeia nas penedias e herdades do alto alentejo para se vir tornar militar em Lisboa. Depressa se torna notório pela sua capacidade para expedientes de lucro fácil e sensibilidade para se meter em apuros, e é despachado num regimento para Macau. Onde a vida de quartel lhe parece tão sensaborona, com um amor pela filha do comandante à mistura, que se faz à estrada como desertor. O resto são aventuras dignas de um romance de aventura, entre restaurantes portugueses em Pequim que são encerrados depois da embaixada americana protestar contra o facto de grupos de marinheiros americanos desordeiros serem impecavelmente surrados por dois portugueses, a negociatas que levam o indomitável senhor Ventura e um amigo aos desertos da Mongólia, onde se tornarão, porque não, traficantes de armas a vender aos dois lados de uma rebelião anti-governamental. Todas as suas empresas são bem sucedidas para acabar mal, e em mais um regresso a Pequim encontra a mulher por quem se irá apaixonar, uma russa dissoluta que lhe trará a ruína moral e um filho.
Os seus sucessos mais ou menos legais encontram um travão quando o governo chinês se desagrada com o seu mais ambicioso empreendimento, uma fábrica de heroína. Forçado ao regresso à pátria, deixando mulher, filho e fortuna numa China a que espera regressar mal a memória das suas façanhas se desvaneça, volta à sua aldeia natal e mete-se num projeto quase infrutífero de cultivar terras ao abandono. Aí descobre que, apesar das suas aventuras e inquietude, tem no fundo alma de camponês, nunca deixou de o ser. Quando o filho lhe é entregue quase como de encomenda, percebe que a esposa o traiu, lhe está a desbaratar a fortuna asiática, e decide regressar à China para a reencontrar. Consegue-o, agora arruinado e a morrer de cancro. Será sepultado nas terras longínquas, mas o ponto final das aventuras e desventuras do Senhor Ventura dá-se com o seu filho, expulso do colégio por falta de pagamento de propinas por esvaimento da fortuna do pai, e que, ainda menino, irá para a aldeia tornar-se pastor, tal como o seu pai o era quando era menino.
Um círculo de ironia que encerra esta história algo atípica para Torga. Lendo o prefácio do próprio autor, percebe-se que foi uma obra inicial, de que Torga se envergonhou durante bastante tempo. Percebe-se o porquê, esta não é uma história da poesia rude da vida dura nos campos e serranias, é uma história muito linear de sabores e dissabores. Lê-se um estilo literário ainda em formação, uma narrativa contada de forma muito liminar. Outro tipo de autor teria detalhado os pormenores das aventuras de Ventura, que Torga apenas alude, e aí sim, teríamos um romance de pura aventura. O final do livro, com o seu regresso ao Alentejo, já nos mostra o tipo de escritor que Torga se iria tornar (ou talvez, uma vez que o autor reviu o que escreveu antes de editar, seja a voz madura a melhorar o entusiasmo juvenil). Um livro surpreendente, leve, divertido, algo inesperado face ao autor, irónico, mas também a mostrar que não há fuga possível às nossas raízes, por muito mundo que as sete partidas nos preguem.