segunda-feira, 29 de março de 2021

Seis Drones

 

António Ladeira (2018). Seis Drones: Novas Histórias do Ano 2045. On y va.

A dica para esta leitura veio do Rascunhos, que há algum tempo atrás descobriu este livro. Uma surpresa inesperada no panorama da ficção científica portuguesa, por ter surgido de um recanto desconhecido. Normalmente os autores e aspirantes a autor de FC e fantástico cruzam-se nas mesmas redes de eventos e atividades, onde discute e divulga os seus projetos. A comunidade é pequena, típica de um nicho reduzido numa atividade, a cultura, que por cá é de nicho, independentemente do subgénero. Daí a surpresa deste livro, claramente de FC, mas vindo de um autor desconhecido e, tanto quanto sei, fora destes círculos. Nada de errado com isso, muito mal iríamos se pertencer a um determinado círculo fosse a condição essencial para a criação literária. Encontrei-o recentemente, e não lhe resisti, numa distópica ida ilegal a Lisboa para me abastecer de material de leitura. O aliviar do confinamento não retirou o dever de recolhimento, e como não-residente em Lisboa, suspeito que numa eventual interpelação pelas autoridades, dar a justificação "vou a uma livraria" não se enquadra na lista de exceções ao recolhimento. Enfim, dias atípicos.

Seis Drones é um livro discreto de excelente ficção científica, alicerçado em profunda ironia e especulação sobre futuro próximo que, claramente, assenta numa análise profunda sobre as correntes tendências da digitalização da sociedade. Não é a FC das aventuras no espaço, que nos encanta e nos deixa a sonhar com os horizontes do eventual futuro longínquo. É a FC de especulação informada, que usa a narrativa para nos deixar a pensar sobre os impactos sociais da tecnologia. Não sei se foi escrito com esta intenção, nem tal me parece, os contos são literários e não artifícios didáticos. Mas é essa a impressão que este livro nos deixa. A sua especulação, o seu futurismo de discreta distopia de aspeto doce, são meditações sobre as tendências que estão a modelar o nosso futuro. É esse um dos poderes da ficção especulativa. Podemos ler dezenas de livros de análise e divulgação sobre tendências e impactos tecnológicos, mas uma boa história irá sempre causar impressão mais duradoura.

Surpreendeu-me a causalidade do mundo ficcional deste livro. Os contos passam-se num Território, não se percebe se é nação ou outro tipo de organização, uma zona tremendamente distópica mas que se imagina como uma utopia benévola para os seus cidadãos. É uma zona onde não convém sair à rua sem seus drones individuais de defesa (embora a avaria de alguns possa dar origem a uma história de amor). Onde os livros são multimédia e as histórias se atualizam para melhorar o estado moral da nação (e onde D. Quixote, acompanhado do fiel Pança, se dedica à destruição dos livros perniciosos que o mal formaram). Onde conduzir um automóvel é um ato de rebeldia (e não é lógico que o veículo nos conduza onde queremos, mas sim para o destino decidido pelos algoritmos sociais). Onde o controlo de passageiros em aeroportos se torna tão afinado que o próprio conceito de passageiro é abolido, e passa a ser efetuado apenas por uma classe profissional específica, tudo em nome da segurança dos cidadãos. Onde em caso de guerra cibernética, as pessoas se refugiam ordeiramente em cavernas, vivendo uma vida pré-digital e praticamente pré-histórica (talvez criando novos conflitos com pedras lascadas). Ou onde o dilema entre a vida tangível e a vida digital se resolveu mergulhando as pessoas numa ilusão cibernética cuja consensualidade assenta numa mentira.

No seu cerne, estes contos são ácidos, profundamente distópicos, narram situações revoltantes. Mas são contados num tom deliberadamente leve, num perfeito double think em que a sujeição, a restrição e o controle são apresentados como benéficos e impostos com intenções benévolas. É esta ironia ácida que torna Seis Drones um incisivo livro de ficção especulativa.