segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Terras do Demo

 

Aquilino Ribeiro (2019). Terras do Demo. Lisboa: Bertrand Editora.

Ao longo desta leitura, foi-me impossível não pensar na atualidade deste texto.. Obra originalmente de 1918, nesta edição mais que centenária conta com ilustrações de João Abel Manta.  As terras e gentes que Aquilino Ribeiro imortalizou neste seu romance são hoje mais prósperas e de vida menos dura e isolada, mas essa é uma prosperidade recente. Não é difícil visitar aldeias do interior e cruzar com gentes que herdaram esses longos tempos duros. Tempos em que uma vida se media entre duas ou três aldeias, em que a pobreza era endémica e os costumes milenares se fundiam com o poder da religião, mas cujos homens de deus não deixavam de gerar prole.  Não escrevo isto com nostalgia, ou desprezo pelos tempos e gentes de outrora. Apenas com a sensação que, na sua essência, a alma do povo que Aquilino, no seu realismo regionalista, descrevia, ainda continua arreigada no nosso carácter.

Por um punhado de moedas. Quando o bem sucedido e bom anfitrião estalajadeiro da aldeia sabe que um dos seus hóspedes foi roubado, nem quer acreditar. Até porque a coisa se passou numa noite de folguedos, e não há suspeitos. Fala-se numa das filhas do estalajadeiro, mas a inocência prevalece. O assunto é arrumado, e a via nas aldeias serranas continua, sempre dura e difícil,  de pobreza e trabalho duro no campo, de costumes arreigados entre a religião e superstição. A filha do estalajadeiro faz a sua vida, e náo há vidas felizes nas terras do Demo, uma vida de sacrifícios e dureza. O genro, deserdado pelo pai usurário, desconfia que a velhota guarda um segredo. Talvez um punhado de moedas? 

O ciclo fecha-se no final desta história, mas o olhar de Aquilino não se centra sobre o mistério das moedas. Se é o segredo da vida de uma personagem, a riqueza do texto está na forma como nos leva a um verdadeiro mergulho etnográfico. O olhar de Aquilino é de fino observador, e a sua prosa, apesar de rebuscada, leva-nos às paisagens e vidas duras das terras entre serras, no interior profundo de um Portugal que ainda hoje é esquecido.

Nas terras duras, o amor é um luxo, mas as pulsões humanas são mal refreadas pelos costumes. O casamento é coisa para a vida, para se ter uma vida. A sexualidade recata-se em namoricos, porque mais que isso é arriscar o opróbrio. Outras vezes, é a força bruta masculina que toma aquilo que quer. Na segunda parte do romance de Aquilino, o amor quase que vence. A história olha agora para outros personagens, o pequeno fidalgo local, uma das jovens raparigas da aldeia, e uma velha alcoviteira. O fidalgo sempre teve amores pela rapariga, mas o fosso social entre um agrónomo descendente de pergaminhos de terceira ordem e uma jovem analfabeta do povo era demasiado grande. Isso, e a pressão da mãe do fidalgo. Mas quando a jovem procura casamento com um homem da terra, o fidalgo ganha coragem e, com ajuda de uma alcoviteira, consegue reatar o seu amor. E assim ficam as coisas, com o homem cada vez mais disposto a ignorar as barreiras sociais e a casar-se com a jovem. Mas há outros homens na aldeia, e para alguns o amor é algo que arrancam à força do corpo das mulheres que apanharem a jeito. 

O final deste romance apaixonante é brilhante, duro, incómodo. E também uma lição de intemporalidade, de vidas e gentes que se sucedem numa paisagem agreste, vivendo essencialmente como sempre viveram. "Como há um ano, há vinte, há séculos, a aldeia bárbara saía a campo, morria uns, nasciam outros, o fado de viver passava nela insensivelmente; o homem cumpria a sua missão de filho da terra", lê-se num dos parágrafos finais. Passam as histórias, fica a aldeia, os ribeiros e penedias, e as serras.