segunda-feira, 15 de junho de 2020

A Galxmente


Luís Filipe Silva (2016). A Galxmente. Estoril: Editora Épica

Ao primeiro embate, parecemos mergulhar numa utopia futurista. Numa sociedade livre de males, onde as pessoas se dedicam ao ócio por entre luminosas arquiteturas. Onde cada um, livre de necessidades, procura o melhoramento pessoal. Mas há medida que as páginas correm, percebemos que se trata de uma utopia de profunda decadência, de uma sociedade onde os seus habitantes, capazes de saltar de corpo em corpo graças à tecnologia, ocultam o seu profundo tédio com o deleite pelo sofrimento. Um mundo pós-humano, que se dá ao luxo de recriar humanos para que estes criem arte para deleite, espanto ou choque de elites ávidas de sensações.

Uma sociedade de seres artificiais, padrões informáticos sentientes, decorrentes da evolução de tecnologias de inteligência artificial que permitiram, no passado, transferir a consciência humana para espaços virtuais, assegurando uma espécie de imortalidade à humanidade, mas também o seu afastamento das sensações, emoções e aspirações humanas. Seres virtuais capazes de encarnar fugazmente, mas que vivem numa enorme virtualidade com aspetos de mente coletiva, embora preserve a individualidade através de um sistema de castas. Mas nem todos estes seres estão certos da justiça do mundo em que vivem, e instrumentalizam os poucos humanos que existem para uma inesperada revolta, que virá implodir a sociedade e lançar as sementes de uma nova humanidade.

Recordo ler, de passagem num livro sobre arquiteturas utópicas, que o totalitarismo está no cerne de todas as utopias. Como visões de perfeição, requerem um consenso entre aqueles que nelas habitam. E se há coisa que é contranatura na humanidade é a sujeição a visões únicas, à falta de diversidade de pontos de vista e formas de viver. Uma ideia que esteve muito presente ao longo da minha releitura deste clássico da FC portuguesa, que pega numa visão algo retrógrada das utopias futuristas de perfeição social, e a desmonta de forma implacável, revelando o seu potencial de decadência e negação de tudo o que dá valor à experiência humana. É simbólico que tenha escolhido os artistas como instrumentos da destruição, aqueles cuja capacidade de questionar e criar - no romance, gerados artificialmente com falsas memórias e problemas de saúde para dar mais intensidade ao seu trabalho, provocam as rachaduras no consenso da perfeição.

A Galxmente, sempre com um pé no virtual e outro no real, indo beber a sua estética às visões clássicas de bucólicas utopias onde o homem se libertou dos grilhões das necessidades económicas, é também um livro profundamente sensual e sensorial. Há um deleite literário nisto, mas também um sublinhar do que se perde quando se mergulha em paraísos artificiais. Mais de trinta anos passados sobre a sua edição original,  em 1993 na clássica coleção Caminho de Ficção Científica, não perdeu a sua força. A reedição numa chancela da Saída de Emergência foi alvo de uma revisão do texto pelo autor, que aprimorou o original. Este é outro dos grandes livros da FC portuguesa, esse género minúsculo mas teimoso.