segunda-feira, 10 de junho de 2019

Granta em Língua Portuguesa 3: Futuro


Pedro Mexia, Gustavo Pacheco (ed.) (2019). Granta em Língua Portuguesa 3: Futuro. Lisboa: Tinta da China.

Devo dizer que num primeiro momento, fui injusto com esta Granta. Quando vi a imagem de capa, com um robot a ler, fiquei a pensar como é que o que me parecia ser um braço robótico da ABB poderia ler, se não dispõe de sensores visuais. Uma calinada sintomática da dicotomia entre intelectualismo e conhecimento duro que tantas vezes domina a discussão cultural sempre que temas ligados à ciência e tecnologia se cruzam com literatura, pensei. Mas estava enganado. Afinal, essa imagem evocativa faz parte de uma série de imagens digitais criadas por Miguel Soares. Nelas, um robot bípede descobre um fascínio pelo humano, enquanto os homens mergulha nos fascínios pelo virtual. Tirando aquele simplismo do tom estamos a perder humanidade rodeados de tanta tecnologia das imagens, estas representam o melhor que esta edição da revista tem para nos oferecer. Provavelmente, são o único momento em que a leitura tem mesmo a ver com o tema que a equipe editorial se propõe abordar.

Quando a cultura mais mainstream se mete com temas ligados à tecnologia, futurismo ou ficção científica, normalmente a coisa não costuma correr bem. Em parte, devido a algum desconhecimento dos códigos culturais do género. Se se pedir a um escritor mainstream que escreva algo sobre FC (e há algumas antologias portuguesas que o fizeram, com resultados... sejamos simpáticos, desastrosos), o que sai raramente passa de um conjugar de jargão e conceitos apanhados no ar. Mas encher um conto de ideias icónicas não chega para criar ficção científica, por detrás das iconografias há uma reflexão profunda que é pouco reconhecida por quem não conhece o género literário.

Em grande parte, e aqui arrisco-me a ser injusto, porque há um fosso entre a cultura intelectual e a cultura técnica por cá. Colocando a questão de outra forma, quando o lado cultural mais erudito tenta falar destes temas, esbarra com duas barreiras. Falta de conhecimento técnico, e recusa em olhar para a necessidade de compreender impactos tecnológicos, tendências futuras, ou imaginários do fantástico. Algo que geralmente reduzem ao campo das utopias, citando sempre os mesmos autores, cegos perante tudo o que se escreve nestes campos. Quando muito, deixam entrar a obra de algum escritor mais literário, como Ballard ou P.K. Dick, escolhendo especificamente aqueles livros que mais se afastam dessa coisa incómoda que é a Ficção Científica. E por aí se ficam, apregoando uma aparente abertura de ideias.

Vou escrever algo muito banal. Vivemos num mundo em rápidas transformações. A interseção entre tecnologia e sociedade está a mudar-nos, e muito depressa. Ideias e costumes, economia e sociedade. Adotamos tecnologias que nos transformam. E essa transformação acontece a uma velocidade inédita na história humana (um parêntese, nesta história da "aceleração": aposto que se for reler Toffler, a falar dos idos dos anos 70 do século XX, estão lá as mesmas sensações). Compreender o futuro implica perceber os impactos das tecnologias digitais, transformações culturais trazidas pela internet, alterações climáticas, conjugação da robótica e inteligência artificial com a produção económica, entre outros temas. Refletir sobre isto não é exclusivo à Ficção Científica, embora ela se chegue à frente nestes temas. Sociologia, economia, ciência e tecnologia também são excelentes lentes de análise. Podemos falar de impactos da inteligência artificial com Harari, ou Charles Stross. Os prismas são diferentes, a lógica a mesma, perceber o que se passa pela extrapolação de tendências ou voos de imaginação informada.

Qualquer destas vertentes está ausente de uma Granta que assume o futuro como tema. Pronto, têm robots na capa, e mais lá para o meio. Inclui o inevitável ensaio académico sobre as utopias. E até dedica páginas à obra de um escritor de Ficção Científica. Mas, tirando algumas referências muito oblíquas, o conteúdo desta Granta está muito distante do tema que pretende abordar. A décadas luz, diria.

A revista termina com textos de um autor de FC, mas escolhe aqueles que colocam no papel delírios de sanidade duvidosa e alucinações místicas. A Exegese de P.K. Dick talvez não seja a melhor credencial do autor como marco literário da FC, observam quem conhece quer a sua obra quer o género, mas o entendimento académico é o oposto. Ballard é analisado num ensaio interessante, mas que não passa daquele espírito de futurismo modernista dos anos 60/70 do século XX. Esse mesmo, o dos abstratos não-lugares de auto-estradas ladeadas por betão e sobrevoadas por aviões a jato.

Há mais alguns polvilhos de reflexão sobre o futuro. O conto Um Casamento de Anita Brookner, sobre uma matrona novecentista que procura manter a linhagem familiar, pode ser uma forma de olhar para maneiras de conceber o futuro. Isto não tem tudo que ser computadores e foguetões. Um conto de Eugene Lim aborda a inteligência artificial, de uma forma que revela uma profunda incompreensão do tema por parte do autor. Para além das imagens de síntese de Miguel Soares, do ensaio fotográfico de Claudia Jaguaribe (uma justaposição de iconografias clássicas e contemporâneas), talvez o texto que mais me fez refletir sobre o tema da revista seja O Grande Mal, do escritor brasileiro Joca Terron. Nele, num futuro muito próximo, uma tribo de índios amazónicos ameaçados de extinção pela conjugação das alterações climáticas e a pressão predadora dos madeireiros é exilada para florestas mexicanas. É um conto que dá muito em que pensar, certeiro sobre algumas das tendências de futuro contemporâneas.

E fica-se por aí. Apesar da qualidade literária, seria injusto não a apontar, esta Granta sobre o futuro consegue fugir quase completamente ao tema. Se querem refletir sobre as tendências que estão a modelar o futuro contemporâneo, não encontram por aqui praticamente nada sobre esse... que é apenas o tema da revista. Isto representa o academismo da literatura mainstream no seu pior. Encerrada nas dialéticas da sua torre de marfim, enfiando alegremente a cabeça na areia e recusando que o mundo está a mudar radicalmente. Até se percebe a atitude de avestruz, compreender estas mudanças obriga a arregaçar as mangas e vir até ao mundo das coisas complicadas com botões e software e mecanismos.

Resta ainda o pormenor do editor português, Pedro Mexia, luminária intelectual mediática (lamento não vejo televisão), ter escrito no seu editorial que o teletransporte veio da série de televisão Espaço: 1999. É um pormenor, é certo, mas ilustrativo daquela ideia que quando se fala de futuro ou ficção cientifica, basta atirar umas palavras alusivas e a coisa fica logo boa, algo como investigar e perceber não é preciso.